OFICIALIZAÇÃO

TRISAL: Por que cartórios foram proibidos de registrar relações poliafetivas no Brasil? Entenda

Tema ganhou repercussão após família de Novo Hamburgo ter esses direitos reconhecidos judicialmente

Publicado em: 07/10/2023 06:00
Última atualização: 13/10/2023 16:19

Os moradores Novo Hamburgo Denis Ordovás, de 45 anos, Letícia Pires Ordovás, 51, e Keterlin Kaefer de Oliveira, 32, precisaram entrar na Justiça para garantir o direito de oficializar a união estável entre eles e dar ao filho a oportunidade de ter o nome dos três pais na certidão de nascimento. 

No caso do trio hamburguense, que vive junto há dez anos, consta no processo que cartórios e tabelionatos já haviam sido procurados na intenção de oficializar a relação, e que a solicitação havia sido negada.


Demanda social para formalizar união estável de relacionamentos poliamorosos aumentou, mas ainda não é significativa Foto: Freepik

Mas o que é preciso para que pessoas em relacionamentos poliamorosos possam ter acesso a esses registros? 

O registrador civil e de imóveis de Veranópolis e Bento Gonçalves Gerson Tadeu Astolfi Vivan, que é representante do Colégio Registral do Rio Grande do Sul, explica que houve um momento no Brasil em que era possível fazer escrituras públicas de união estável entre três pessoas. No entanto, os registros foram proibidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2018. (Veja abaixo os detalhes da decisão).

"O CNJ proibiu essa prática, pelo menos temporariamente, até que estivéssemos em outro momento social ou histórico evolutivo. Então, não se pode fazer nem escritura, muito menos o registro da união estável no livro E [exemplar em que é feito esse tipo de registro]", justifica. "Porém, não se nega a possibilidade de judicialmente haver esse reconhecimento, como aconteceu nesse caso."

Assim, atualmente, a única maneira de integrantes de um relacionamento poliamoroso terem a união oficializada seria por meio de um processo judicial — que, como qualquer outro, pode ou não ter resultado favorável ao pedido. 

"Se isso for determinado, o registro será feito com certeza. O juiz tem esse poder de fazer o reconhecimento. O que não acontece é a possibilidade de fazer o registro [de união estável] a partir de uma escritura pública, ainda dependemos de uma decisão judicial", diz Vivan.

Segundo o representante do Colégio Registral, há um aumento da demanda social para formalizar a união estável de relacionamentos poliamorosos, no entanto, essa busca ainda não é significativa. "A gente houve em vários tabelionatos que já houve procura disso."

Multiparentalidade na origem

Já quanto à multiparentalidade, a partir da ideia da filiação socioafetiva, Vivan comenta que é muito comum — e fácil — colocar o nome de três pessoas como pais de uma criança na certidão de nascimento. 

Contudo, também por normativa do CNJ, esse tipo de registro só pode ser feito no cartório quando a criança tiver no mínimo 12 anos, já que ela também é ouvida nesse processo. 

Mas, assim como na situação da família hamburguense, caso a criança não tenha completado a idade mínima, é possível levar o pedido à Justiça. "Da mesma forma [que o registro de união estável poliamoroso], nada impede que o juiz determine que seja incluído o nome dos três no assento de nascimento", reforça, ressaltando que a ação é chamada de "multiparentalidade na origem".

"Então, em ambos os casos, se houver autorização judicial, sem duvida é possível, e a gente vai fazer o registro conforme isso acontecer", afirma o registrador. "As duas demandas são uma realidade social. Tanto o trisal – em menos quantidade, em face de alguns conceitos sociais e culturais que nos temos – quanto a socioafetividade com multiparentalidade, que é muito comum."

A aposta de Vivian é que, em breve, esses casos sejam regularizados. "O que antes era muito difícil de acontecer, hoje já está normatizado. Nós podemos fazer casamentos homoafetivos, podemos reconhecer a socioafetividade diretamente no cartório, mesmo com essas limitações", exemplifica. Ele destaca ainda que esse é o processo de um momento no qual o direito vem permitindo a formalização das novas realidades sociais.

Decisão do CNJ

Foi atendendo a um pedido da Associação de Direito de Família e das Sucessões que o CNJ votou e decidiu, em 2018, que os cartórios brasileiros não poderiam mais registrar uniões poliafetivas em escrituras públicas. Oito integrantes do conselho votaram a favor da proibição, e cinco, contra. Além disso, um membro votou pela improcedência do pedido.

Presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF) à época, a ministra Cármen Lúcia chegou a fazer uma ressalva para delimitar o objeto da discussão. "Não é atribuição do CNJ tratar da relação entre as pessoas, mas do dever e do poder dos cartórios de lavrar escrituras. Não temos nada com a vida de ninguém. A liberdade de conviver não está sob a competência do CNJ. Todos somos livres, de acordo com a constituição", disse.

Segundo a mestre e professora Maria Alice Rodrigues, que leciona Direito na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, na ocasião, a decisão foi bastante debatida. 

"Muitos consideraram que não caberia ao Conselho vedar que as pessoas compareçam ao tabelionato e queiram fazer declarações", destaca. "Então, acabou sendo uma decisão com um viés conservador, em desacordo com os princípios constitucionais do Direito da Família, do artigo 226 [da Constituição Federal] — que diz que 'a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado'", observa.

Maria Alice reforça que o artigo, do modo como está colocado, permite interpretação ampla, no sentido de inclusão dos vários formatos de família que existem na sociedade, sem estabelecer qualquer restrição à forma como as pessoas constituem suas próprias famílias. 

Se expressa um preconceito quando se nega esse tipo de família.

Segundo a professora, ainda são poucas as decisões judiciais que permitem o registro de relacionamentos poliafetivos. A sentença que favoreceu o trisal de Novo Hamburgo, ressalta, "rompeu um paradigma de reconhecimento das relações poliamorosas".

"Essa sentença é importante porque tem por fundamento que a família que está lá protegida [por lei] não é o único formato existente e que a relação dos três se constitui pelo afeto. Se reconhece que eles preenchem todos os requisitos de uma união estável: é pública, continua, duradoura, com o objetivo de constituição de família e fundada na afetividade", elenca.

Apesar de poucos avanços no tema nos últimos cinco anos, a professora cita que há grupos de pessoas e entidades que seguem lutando por esse reconhecimento. "Não é o fato de a lei não reconhecer que vai fazer com que as pessoas deixem de viver esses relacionamentos. Elas não estão violando nenhum direito", observa. "A tendência é que, no futuro, sim, elas também sejam reconhecidas."

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