abc+

LITERATURA ENGAJADA

"Meu papel é lutar contra o fascismo", diz Marcelo Rubens Paiva durante visita a Novo Hamburgo

Autor foi um dos convidados da Feira do Livro da cidade

Eduardo Amaral
Publicado em: 17/10/2023 às 18h:08
Publicidade

Em 1982 Marcelo Rubens Paiva se apresentou ao mundo como escritor. No autobiográfico Feliz Ano Velho, um jovem de apenas 23 anos contava de forma crua e direta a experiência do acidente que o deixou tetraplégico. O livro foi um sucesso de vendas e de críticas, e catapultou a carreira literária.

Marcelo Rubens Paiva conversa com público da 39ª Feira do Livro de Novo Hamburgo | Jornal NH



Marcelo Rubens Paiva conversa com público da 39ª Feira do Livro de Novo Hamburgo

Foto: Eduardo Amaral/GES-Especial

Nesses mais de 40 anos desde o lançamento do primeiro livro, o mundo em que Paiva iniciou seu trabalho mudou bastante, mas o escritor de 64 anos não se mostra temeroso com as mudanças. Usuário assíduo das redes sociais, ele enxerga as novas tecnologias com bons olhos, embora ao mesmo tempo considera que elas vão deixar muitos desempregados.

O escritor olha para esse cenário com a preocupação de que ele sirva como um fermento para uma reinvenção da ideologia fascista. A política, aliás, sempre esteve presente na vida de Paiva.

Filho do ex-deputado Rubens Paiva, uma das vítimas da Ditadura Militar, se viu obrigado a crescer longe do pai em razão do regime político da época. Anos depois, já um artista conhecido e consagrado, se viu diante de um presidente que fez da sua família, e especialmente do seu pai, um inimigo pessoal.

Mesmo assim, Paiva lembra das rusgas com o governo, e a família do ex-presidente Jair Bolsonaro, com uma dose de bom humor. “Tive azar”, resume ele ao lembrar as dificuldades durante os quatro anos de mandato de Bolsonaro.

Paiva não chega a ser leve e divertido quando fala sobre as dores do passado, seja o desaparecimento do pai, o acidente que o deixou tetraplégico, ou mesmo o atual cenário social e político. Mas também não há um ressentimento latente na sua fala.

O escritor se posiciona como um analista social, longe de ser isento já que seus lados sempre foram gritados para o mundo. Mas fica a marca de uma leitura um tanto ácida da vida de um homem que cresceu em um ambiente da esquerda perseguida pelo regime, integrou o movimento punk e precisou aprender a viver com novas dificuldades depois que um salto de uma pedra levou a lesão na quinta cervical, que o deixou tetraplégico aos 20 anos.

Paiva foi um dos convidados da 39º Feira do Livro de Novo Hamburgo, e esteve na cidade na última quarta-feira (11). Na oportunidade, ele atendeu com exclusividade a reportagem do Jornal NH. Nesta entrevista ele fala um pouco sobre os projetos de futuro, faz um olhar para a sociedade atual e garante não temer as tecnologias.

Confira a entrevista:

O Walter Salles está adaptando o teu livro Ainda estou aqui, mas agora com enfoque na sua mãe. Como está sendo esse processo de levar essa história para as telas?

Marcelo Rubens Paiva – Tanto ele (Walter) quanto eu somos muito supersticiosos de não falar muito não. O que posso falar é o que já saiu, é um filme filmado parte no Rio de Janeiro, parte em São Paulo. Fernanda Montenegro faz a minha mãe com Alzheimer, a Fernanda Torres faz a minha mãe mais jovem nos anos 60, e o Selton Melo faz o meu pai. É um recorte do Ainda Estou aqui, porque é muito difícil fazer uma adaptação cinematográfica de um livro, e eu acho as escolhas que ele fez muito felizes. E de certa maneira eu me sinto também dono do projeto, porque cada tratamento ele manda para mim. Ele tem lembranças do meu pai, da minha mãe e das irmãs. Uma vez fomos em um festival da canção no Maracanãzinho, e ele lembra direitinho do Simonal cantando, meu pai era fã do Simonal. Ele queria contar essa história até um pouco para falar dele.

A política é um tema central na tua. No governo anterior isso virou uma questão pessoal e de atrito. É possível traçar um paralelo ao que vocês passaram nas décadas de 70 e 80?

MRP – Foi parecido, eu fui boicotado, todos os meus projetos cinematográficos foram engavetados, projetos que estavam na fila da Ancine foram recusados, dificilmente a Ancine recusava um projeto. E meu nome ficou marcado como inimigo da família Bolsonaro, e eu tinha 6 anos quando convivia com ele. Por um azar ele é da mesma cidade que meu avô tinha terras e a mesma cidade que teve a guerrilha do Vale do Ribeira.

Ele atacava muito meu pai, injustamente porque meu pai mal ia naquela região. Então foi uma coisa pessoal dos bolsonaristas, da família Bolsonaro contra a minha família, cuspiu no busto do meu pai. Eu não sabia da existência desse deputado, quando saiu um livro do filho dele dizendo que eu tinha esnobado ele na praça, eu tinha seis anos. Ele deve ter se confundido com um primo meu.

Depois saiu uma grande matéria na BBC a família Bolsonaro confundiu muito meu pai com meu tio, e eu com meus primos mais velhos, porque eu não convivia nessa fazenda, morava no Rio. Férias eu passava em Petrópolis, Cabo Frio, Angra. Quando li esse livro achei estranho essa fixação que ele tem pelo meu pai, daí fui dar um Google e desde 1996 ele fazia discursos periódicos e cada vez aumentando associando meu pai aos guerrilheiros, (dizendo) que meu pai cedeu metralhadoras e deu dinheiro, o que não fazia o menor sentido, porque meu pai não se envolvia com a luta armada, ele era até contra a luta armada. Dei azar, eu tive amigos presidentes e tive um cara que era meu inimigo presidente.

Falando sobre escrita, você é um usuário do Twitter, como escritor e mesmo cronista do dia a dia, como você avalia esse espaço como interessante de diálogo?

MRP – Era mais interessante, Twitter está muito contaminado pela cultura do ódio. Era um espaço de debate mesmo. É engraçado que até hoje eu lembro de quando entrei no Twitter falei ‘mas esse lugar que celebridade fica falando bom dia acordei’, mas depois virou um instrumento para as grandes agências de jornalismo e os grandes jornais colocarem os links das matérias, foi aí que entrei no Twitter. E então virou um debate midiático, o Twitter tem mais esse lado carregado e influenciado pelo jornalismo, é esse universo que faço mais parte.

Eu vi que estava tendo um número gigantesco de seguidores, tinha aquela lista dos mais influentes e eu sempre estava nela, e aí vi que eu gostava de acordar de manhã e ficar ali lendo aquilo que realmente estava acontecendo no momento. Lembro que quando começou a operação de caça ao Bin Laden tinha gente no Paquistão tuitando que tinha uma operação de helicóptero e (um espaço) de denúncias também muito interessante. É o juiz não sei da onde recusa o atestado médico de advogada que está parindo porque gravidez não é doença. Você começa a ver também os absurdos que acontecem no Brasil, nesse sistema judiciário que não é tão justo. E também os vazamentos que começam no Twitter.

Então para você não há uma crise entre a modernidade contra outra forma de produzir como alguns escritores ou autores tem essa briga às vezes?

MRP – De jeito nenhum, até porque eu também fui ativo em uma modernidade que foi aquele livro ali (aponta Feliz Ano Velho), foi bem disruptivo esse livro. Estou bem acostumado, fui do movimento punk, também um movimento disruptivo. Por exemplo, Chat GPT eu não temo ele, ao contrário eu vou ver o que é. Meu filho tem nove anos de idade e faz trabalho pelo Chat GPT, eu não proíbo, a mãe dele acha que tinha que ter proíbido. Mas não vou proibir, vou ensinar ele que o trabalho que o Chat GPT faz é ruim, que os adjetivos usados pelo Chat GPT são ruins, falar para ele usar como um instrumento de pesquisa, mas não como criação de um produto, trabalho, livro ou conto.

Eu mesmo, agora tenho uma banda que faço tradução de letras de Bob Dylan, Neil Young, Lou Reed, letras muito bem escritas. Tem a tradução do Google, dos sites de música, do Youtube e do Chat GPT, e às vezes eu comparo. Primeiro faço a minha tradução, uma expressão ou outra tenho dúvida e vou ver a tradução do Chat GPT e não tem nada a ver, está muito longe de ser um escritor autônomo. Mas eu sei que tem gente perdendo emprego para o Chat GPT.

Esses tempos eu tuitei uma sacanagem naquele site Mubi, que dizia que um filme era de humor ácido, sarcástico como todos os filmes do rapaz. E era uma linguagem muito próxima do que o Chat GPT faria, então alguém foi lá e falou assim ‘Chat GPT resuma em quatro linhas o filme’ o Chat GPD fez um resumo que não tinha nada a ver com com o filme. Aí eu falei ‘o Mubi, contrata um jornalista’. E aí você começa a ver currículo enviado por Chat GPT, e eu já começo a sacar o que é linguagem de Chat GPT. Até o livro do meu filho, ele acha que vai ganhar dinheiro fazendo livro infantil pelo Chat GPT. E eu vi o livro infantil dele e você já percebe que tem uma linguagem Chat GPT, o Chat GPT não sabe usar adjetivo, ele é péssimo de metáfora.

Eu acho que não tem que temer, essas coisas aparecem elas são bengalas, eu como deficiente físico sou prova disso. Sentei em cadeiras de roda absolutamente antiquadas e fui cada vez mais me apropriando da nova tecnologia, cadeiras de roda de titânio, ligas leves.

"Meu nome ficou marcado como inimigo da família Bolsonaro", disse Rubens Paiva | Jornal NH



“Meu nome ficou marcado como inimigo da família Bolsonaro”, disse Rubens Paiva

Foto: Eduardo Amaral/GES-Especial

Você fala que foi do movimento punk, mas chama atenção que muitos dos que participaram do movimento rock nos anos 80 hoje reproduzem um discurso mais reacionário. Como você convive com essas pessoas que mudaram tanto?

MRP – Olha, do movimento punk especificamente não mudaram de lado não. Quem era meu amigo mesmo também não mudaram de lado, pessoal do Titãs, da Legião Urbana, Agora, quem eu era amigo superficial aí sim mudou de lado, por exemplo eu não conheci o Lobão, que virou guru do Olavo de Carvalho, conheci ele superficialmente.

Foi temeroso ouvir as coisas que ele falava, porque ele tinha um desprezo pelo passado das famílias que sofreram das famílias que sofreram na Ditadura Militar, que dava vontade de olhar para ele ‘você acha que foi fácil para mim, para minha mãe e minhas irmãs’, não foi. E outros muitos que acho que ficaram obsoletos, que se magoaram um pouco com o boom do movimento sertanejo. Não gostaram de ficar em segundo plano, e bolsonarismo é um pouco isso, não quer ficar obsoleto.

Você é obsoleto, uma máquina agora faz o que você faz, você está desempregado. O fenômeno do bolsonarismo, que é um fenômeno da extrema direita mundial, é muito retrato da revolução tecnológica da informação, assim como o fascismo e o nazismo nasceram da revolução industrial. Quando tiveram trens, automóveis, aviões, telefones, uma leva de pessoas ficou excluída socialmente e esta leva de pessoas ao desemprego em massa que levou ao fascismo. A mesma coisa está acontecendo com o governo de extrema direita mundial, de uma leva que não sabem programar um computador que vai ficar obsoleto.

E qual você quer que seja o seu papel nesse cenário?

MRP – Meu papel é lutar contra o fascismo, sempre foi e sempre será.

Rio e São Paulo, ao mesmo tempo que são grandes centros do país, são também centros de muitos preconceitos e até uma certa xenofobia. Qual seu olhar sobre as cidades a respeito disso?

MRP – Essa birra é mais do carioca em relação ao paulista, o paulista ama o Rio de Janeiro, vai passar férias no Rio, compra apartamento no Rio. O carioca não passa férias em São Paulo, passa férias no Rio. Acho que essa birra começou numericamente o Rio.

Mas para além da disputa entre as duas cidades e estados, falo da relação dessas duas com outras regiões do país. Você diz que luta contra o fascismo, e, por exemplo, o governador Romeu Zema (Novo) tem falado em uma união da direita do Sul e do Sudeste contra o resto do país. Como você vê essa relação destes centros com o restante do país?

MRP – Você sabe que o Bolsonaro perdeu em São Paulo, o Lula teve maioria e o Haddad também já tinha tido na cidade de São Paulo. O fenômeno do bolsonarismo é do interior do Estado, aquelas cidades pequenas que não tem teatro, não tem cultura, de uma gente muito conservadora. O Rio de Janeiro, o Freixo quase ganhou, o Gabeira quase ganhou.

Acho que a gente não pode generalizar o paulista e o carioca como alguém de direita, ou o sudestino, como diria o Porta dos Fundos, o Lula ganhou em Minas Gerais. Então acho que existe ali, sim, uma elite poderosa agrícola e industrial que vem de Rio, São Paulo, Minas, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que se sentiu muito ameaçada com a ascensão Norte e Nordeste.

Foram feitos muitos investimentos nos governos petistas para descentralizar um pouco a economia. Essa frente é de governadores de direita, mas que não significa que a população também está nesse projeto, a população vai passar férias na Bahia, no Rio, ama música pernambucana. É uma questão mais econômica mesmo, de sentir uma certa inveja do boom econômico do Nordeste, é um fenômeno econômico, serrado, do semiárido, inclusive agrícola.

Dois dos seus livros são autobiográficos, e lembro de uma entrevista sua há cerca de 10 anos respondendo às críticas de que você utilizava sua deficiência adquirida como forma de vender. Isso chegou a te incomodar?

MRP – Não, nunca pensei nisso, pelo contrário até me surpreende vender livro falando da minha deficiência. E só falei ela no Feliz Ano Velho, no Ainda Estou Aqui nem citei.

E em qual momento você decidiu entrar de cabeça na literatura?

MRP – Acho que nenhum, eu fazia rádio e tv, e nunca parei de fazer televisão, roteiro, teatro, acho que nunca teve esse corte, sempre fiz tudo. Agora tenho uma banda de música, quando fiz Feliz Ano Velho eu estudava rádio e TV, e fazia programa de televisão na TV Cultura em São Paulo, e eu roteirizou especiais de televisão. Depois fiz teatro, continuei escrevendo livro, fiz um programa de televisão ao vivo na Cultura, sempre fui ligado a cinema, fazia roteiros de cinema. Acho que nunca me bastou a literatura, sou um homem de comunicação e não apenas um escritor.

Também durante muitos anos da minha vida eu assinava jornalista, apesar de não ter o diploma de jornalista, mas de rádio e TV. Fases da vida, tem épocas que a gente está mais focado ou apaixonado pelo jornalismo, e pelo poder que ele tem de transformação.

Uma vez eu recebi uma carta de uma associação de policiais militares cadeirantes. Me lembro que quando fiz fisioterapia na AACD tinham os PMs, e a gente brincava muito com eles ‘olha a Rota’, que é aquela polícia mais violenta de São Paulo, e a Rota quando sai com o ‘bração’ para fora do carro, gostam de mostrar o bíceps, no Rio é o fuzil que colocam para fora. Então lá tinha deficiente maconheiro, de todo tipo, eu me lembrava disso, desde aquela época tinha cadeirante deficiente que era da PM, e agora vocês estão me convidando para falar em uma associação.

Quando cheguei lá tinham 1.400 PMs cadeirantes, eu olhei aquilo e falei ‘o que tá acontecendo?’ Não tinha colete à prova de balas para eles. Eu era jornalista da Folha de S. Paulo, daí fui no comando da polícia militar de São Paulo, tinham acho que 70 a 85 mil PMs, e 700 coletes à prova de balas. Cheguei na Folha e disse ‘isso é um escândalo’, daí foi capa. Em questão de seis meses, todos os PMs estavam usando coletes. Eles simplesmente eram jogados na troca de tiros sem colete.

Foi tão interessante que uma vez estava em uma agência bancária e o segurança falou para mim ‘eu sei que você que ajudou a PM a comprar colete, você não quer fazer o mesmo movimento porque nós não temos colete’. Nesse dia eu senti a utilidade e a importância do jornalismo, então dessa fase eu passei a me importar mais com jornalismo do que com literatura, mas depois eu volto.

Publicidade

Matérias Relacionadas

Publicidade
Publicidade