LEGADO VARGAS

Getúlio Vargas, o homem que moldou a República

Mesmo passadas sete décadas de sua morte, Vargas segue como personagem central da política brasileira

Publicado em: 23/08/2024 07:00
Última atualização: 30/10/2024 15:13

Quem é Getúlio Vargas? Passados 70 anos do tiro disparado pelo então presidente da República em seu peito, a imagem e símbolo seguem vivos na memória do país, nas leis daquele tempo ainda em vigor e nos sentimentos de amor e ódio que ele desperta até os dias atuais. Um personagem repleto de nuances, complexidades e incoerências que não deixou de existir no imaginário popular mesmo após o tiro fatal da noite de 24 de agosto de 1954.

Das mãos revolucionárias em 1930, Vargas comandou aquela que ainda hoje é apontada por alguns historiadores como e curiosos como a única revolução real do Brasil com final positivo aos revolucionários. Ali, um novo grupo ascendeu ao poder e promoveu colocando a velha ordem para trás, mas também sem deixar que a elite do país fosse ferida de morte.

Logo depois veio a versão ditatorial, na qual Vargas se cercou de simpatizantes do nazifascismo em ascenção na Europa, sem deixar de negociar apoio de setores mais ao centro e à esquerda. Foi deste período entre governo provisório, Revolução de 1932, nova Constituinte e Estado Novo que veio talvez o maior legado varguista que o mantém na memória até hoje como "Pai dos Pobres", quando institui legislações trabalhistas que garantiram condições mínimas de melhoria na regulação trabalhista.

Também foi neste período que Vargas negociou por um longo período a posição brasileira na Segunda Guerra Mundial. Por um longo período jogou com seu estilo enigmático e silencioso o lado pelo qual entraria, sem desagradar totalmente a ala simpática ao nazifascismo de seu governo, mas também sem abrir espaço para retaliações vindas dos Estados Unidos e mesmo dos comunistas que tentaram um golpe em seu governo antes dele.

Quando a guerra chegou ao fim, a continuidade do governo ditatorial do Estado Novo já não se sustentava, e Vargas se retirou do poder, mas não da política. Além de ter sido eleito senador pelo Rio Grande do Sul e deputado federal por São Paulo, aproveitando as incomuns brechas da lei brasileira, também teve papel fundamental para eleger Eurico Gaspar Dutra, seu apagado sucessor que precisou do pedido explícito de votos para o candidato do PSD, o partido mais à direita criado por Vargas, contra o brigadeiro Eduardo Gomes, representante UDN, que naquele momento se apresentava como representante do conservadorismo e da extrema direita brasileira.

Enquanto duas correntes mais à direita se confrontavam, Getúlio se candidatava pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), outra legenda criada pelo gaúcho que mantinha um pé em cada espectro político, mesmo abominando os comunistas que começavam a erguer a cortina de ferro. Foram quatro anos de reclusão em sua Fazenda em São Borja, até que em 1950 Vargas volta ao poder, desta vez através do voto popular.


No Rio Grande do Sul Getúlio desfila ao lado de João Goulart em 1951. O futuro presidente também foi também a desculpa de uma das crises do último governo Vargas Foto: Arquivo Nacional

Dois golpes em um: revolução e Estado Novo

A chamada Era Vargas é caracterizada pelos historiadores como o período dos primeiros governos, compreendido entre 1930 e 1945. Nestes 15 anos Getúlio teve pelo menos três fases como presidente. O revolucionário, que destituiu o presidente Washington Luís e impediu que Júlio Prestes assumisse o poder, colocando assim um fim à República Café com Leite, e instituiu o governo provisório.

Depois de abafar, com muita violência, a Revolução Constitucionalista de 1932, comandada por São Paulo, foi a vez do governo constitucionalista. A nova carta constitucional brasileira foi aprovada em 1934 e previa eleições diretas em quatro anos, mas existia um Olímpio Mourão e o desejo de Vargas se manter no poder.

Veio à tona o chamado Plano Cohen, uma suposta conspiração para implementar um regime comunista no Brasil. Embora Luís Carlos Prestes alimentasse sonhos de tornar o Brasil uma espécie de União Soviética dos trópicos, o plano todo não passava de uma alucinação que caiu como uma luva para a implantação do Estado Novo, com uma inspiração nos modelos autoritários que cresciam em todo a Europa.

Jornalista e historiador, Juremir Machado da Silva considera que a veia autoritária de Vargas, que se viu presente de forma extremamente violenta durante todo o Estado Novo sob o comando de Filinto Müller, não se diferenciava do caminho da política mundial naquele momento. “Getúlio soube encarnar contradições da época, era implacável com os adversários quando precisava, mas também era capaz de reconciliações e novas alianças, era acima de tudo um pragmático.”


Uso extensivo de propaganda com sua imagem foi artifício utilizado durante a ditadura do Estado Novo para reforçar a imagem de Pai do Povo Foto: Arquivo Nacional

Uma das facetas mais intrigantes de Vargas pode ser resumida em uma frase lembrada por Juremir. “Não tenho inimigos que não possa me aproximar, nem amigos que não possa me afastar”, uma máxima que pode ser vista no caso do próprio Prestes, que anos depois de ter visto a esposa ser enviada ao regime nazista alemão para ser morta pelos asseclas de Adolf Hitler, subiu ao palanque de apoio a Vargas.

“A esquerda em geral recusava o Getúlio dizendo ‘ele era simpatizante do nazifacismo’, mas no final ele escolheu os aliados do campo americano. Então mesmo que ele tenha tido no governo dele militares abertamente simpatizantes do nazifascismo ao final ele escolheu o campo do liberalismo e da democracia americana e colocou o Brasil no lado certo da história”, ressalta Juremir que ainda pondera que Vargas “atuou mais contra o nazismo dentro do país do que a favor, embora quando a gente olhe os participantes do governo muitos eram abertamente nazisfascista”, destaca Juremir, apontando como Vargas conseguia transitar entre inimigos e amigos ao mesmo tempo, tendo sido o responsável por proibir o ensino de alemão nas escolas brasileiras e perseguiu o partido nazista brasileiro, que então era a maior representação da ideologia fora da Alemanha.

Uma nova ideologia

Enquanto o mundo iniciava o processo de divisão que culminaria com a Guerra Fria e a disputa entre capitalistas e comunistas, Vargas apresentou ao Brasil uma espécie de meio termo. “O Getúlio buscou essa conciliação aparentemente improvável e impossível de ser feita que é típica do trabalhismo, que é a conciliação entre capital e trabalho”, explica Juremir, sobre o trabalhismo, uma corrente política que nasce em meio a disputa comunista contra o capitalismo.

Para representar essa corrente, Vargas criou o PTB, partido que abrigou algumas das figuras políticas decisivas para o País nos anos seguintes. Entre elas duas ganham destaque: os também gaúchos e herdeiros diretos João Goulart e Leonel Brizola. Após voltar do exílio imposto pela ditadura militar, Brizola tentou recriar o partido, mas acabou sendo ultrapassado por Ivete Vargas Martins, sobrinha de Getúlio. Mesmo levando a mágoa para o túmulo, Brizola criou sua própria legenda, o Partido Democrático Trabalhista (PDT).

Presidente gaúcho da legenda, Romildo Bolzan Jr. entende o legado trabalhista como o eco ainda vivo do sentimento revolucionário de 1930. “(O trabalhismo) Uma ideia de país, de nacionalidade, de soberania, identidade nacional, preservação dos valores do trabalho e ideia de convivência de desenvolvimento com o capital nacional privilegiando, criação de estruturas que fossem provedoras do processo de industrialização do país através de empresas públicas.”

Quais foram as principais marcas?

Quando chegou ao poder, Vargas encontrou um país totalmente rural o qual entendia precisar ser industrializado rapidamente, o que não seria possível com o setor privado. “Ele entendia que tanto a industrialização como as melhorias sociais não ocorreriam espontaneamente, mas precisavam ser induzidas por parte do poder público”, explica o professor do curso de Direito da Universidade Feevale, Emerson Mattje.

Mattje também enxerga em Vargas como um conciliador de classes, que não pretendia necessariamente acabar com as diferenças entre as mesmas. “Tinha como uma das bases o desenvolvimento nacional a partir de uma política de colaboração de classes que é um princípio de organização social baseado na crença de que a divisão da sociedade numa hierarquia de classes sociais é um aspecto positivo e essencial da civilização”, explica ele, revelando uma ligação com o positivismo, corrente de pensamento que dominou a política gaúcha.

Já Romildo Bolzan Jr. defende que o latifundiário que criou leis trabalhistas e o salário mínimo, assim como liberou a atividade sindical ao mesmo tempo em que amarrava esta atividade à sua vontade, como um pensamento humanista. “Os conceitos são nacionais, próprios do trabalhismo, não faz exclusão de ninguém, pode encontrar um trabalhismo de centro, às vezes vinculados a centro direita, a centro esquerda de esquerda.”

Mesmo após a morte de Vargas, a sua era não chegou ao fim, o que pode ser visto era que seu legado não foi destruído. Em 1994, ao se despedir do cargo de Senador para assumir a presidência, Fernando Henrique Cardoso (FHC), já vestido em uma nova roupa mais liberal, afirmou que era necessário acabar com a Era Vargas.

Juremir Machado aponta como o estilo marqueteiro de Getúlio foi fundamental para sedimentar sua imagem enquanto vivo. “Ele apostou no culto à personalidade, certamente um pouco porque isso satisfazia o ego dele, mas também porque era uma estratégia da época que permitia a reprodução e manutenção do poder. Para se legitimar no poder era preciso ter essa consagração popular, não era instantânea. Ele percebeu a importância do rádio, Getúlio é um ditador do período do rádio, e depois na imprensa escrita”.

Utilizar o rádio foi determinante para que Getúlio Vargas consolidar sua figura no imaginário brasileiro em uma época em que o veículo crescia e boa parte da população ainda era analfabeta. “Na Era Vargas foi introduzido um programa radiofônico “Hora do Brasil”, que era transmitido por todo e mostravam-se as realizações do governo e eram reproduzidos os discursos de Vargas em ocasiões solenes. Foram produzidos filmes, mostrando, de forma heroica, a obra e a vida de Getúlio Vargas, que eram exibidos nas salas de cinema e nas escolas”, ressalta Mattje destacando o uso das ferramentas da época para consolidar a imagem mitológica em torno de Vargas.


Já eleito diretamente, Vargas discursa para o programa A Hora do Brasil Foto: Arquivo Nacional

O suicídio em 24 de agosto de 1954 ajudou de forma definitiva encerrar o capítulo que tornou Getúlio Vargas um mito

Um golpe desenhado

O agosto de 1954 marcou um dos momentos mais críticos de toda a trajetória pública de Getúlio Vargas. Envolto em denúncias de corrupção, viu seu maior crítico, o jornalista e governador do então estado da Guanabara, Carlos Lacerda, ser vítima de um atentado comandado pelo segurança pessoal do presidente, Gregório Fortunato.

Tudo indicava para a deposição de Vargas através de um processo de impeachment. Mas Quando se encerrou em seu quarto no Palácio do Catete, no centro do Rio de Janeiro então capital federal, Getúlio tomou uma medida que não apenas seria decisiva para a criação do mito, mas também mudaria o roteiro da vida do país que se desenhava até ali.

Para Juremir, as acusações de corrupção e a possibilidade de ser obrigado a depor em uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) eram inadmissíveis para Vargas, que já havia demonstrado uma tendência para atos do tipo. “Ele tinha uma concepção de vida e de honra muito singular, que era se alguma coisa manchasse de fato a honra dele ele teria de pagar com a vida.”

Com a morte, a população foi às ruas e demonstrou sua revolta contra os opositores ao presidente. Mas a sanha golpista não tinha acabado, apenas sido adiada e os militares, que tentaram novamente após a eleição de Juscelino Kubitschek em 1954, e depois em 1961 quando tentaram impedir a posse João Goulart (Jango), depois de uma desastrosa renúncia de Jânio Quadros.

O sucesso veio em 1964, com a deposição de Jango que jogou o Brasil em uma ditadura por 21 anos. “Costuma-se dizer que 32 mais 32 dá 64, isso porque muitos dos militares que participaram da revolução constitucionalista de 1932 foram os que ensejaram o golpe de 1964”, explica Juremir. Este teria sido a primeira tentativa de acabar com a Era Vargas, o que seguiria ao longo das décadas, especialmente em relação às leis trabalhistas.

Mas ainda assim, nenhum dos governos que sucederam conseguiu eliminar totalmente o legado Vargas, que chega em 2024 ainda sendo uma figura presente na política e na vida brasileira, seja direta ou indiretamente.

Quem era

Mas afinal, quem no fim das contas era o verdadeiro Getúlio Vargas. O ditador, o revolucionário, o Pai dos Pobres? Qual destas facetas realmente representavam estre personagem cheio de contrastes e contradições? Juremir Machado aponta que todos estes contrastes conviviam muito bem dentro de Vargas. “Ele é tudo ao mesmo tempo, tem uma faceta autoritária típica da época, foi um ditador. Teve uma faceta modernizadora, mas era conservador, teve seu lado revolucionário, tentou se manter no poder sem constitucionalizar o País”, resume Juremir ao retratar o personagem que classifica comoshakespeariano.

Para Juremir, acima de tudo, Vargas era alguém capaz de estar à frente de amigos e inimigos. “Eu acredito que as personalidades dos indivíduos a inteligência de cada um manda muito nas coisas. Getúlio tinha uma inteligência política excepcional, e uma capacidade enorme de fazer a leitura das circunstâncias e buscar a solução possível para aqueles momentos.”

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