Assédio sexual, trabalho irregular e demissões conturbadas. Um caso que estremeceu uma das maiores paróquias das 49 vinculadas à Diocese de Novo Hamburgo, há dois anos, resulta agora na condenação de um padre influente na região. A sentença, que saiu no dia 1º deste mês, é mantida sob sigilo. O processo corre em segredo de Justiça.
O sacerdote Vanderlei Barcelos de Borba, 51 anos, pegou um ano, três meses e 29 dias de prisão em regime aberto. A pena foi convertida em multa de cinco salários mínimos. “A decisão foi injusta e equivocada e iremos recorrer”, declarou o religioso à reportagem, neste domingo (10). No interrogatório, ele admitiu carícias e deu a entender que havia se apaixonado, mas afirmou que nunca assediou a vítima.
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Vanderlei é acusado de empregar uma adolescente de 16 anos na secretaria da Paróquia Nossa Senhora de Lourdes, em Canela, no dia 23 de junho de 2021, e fazer chantagens para que a menina namorasse com ele. Era o chefe da igreja na cidade e conselheiro espiritual do Curso de Liderança Juvenil (CLJ), que a vítima frequentava com devoção. Segundo a jovem, o padre “passava a mão” e tentava agarrá-la à força. Ela afirma que repelia o homem.
Emprego
A mãe da adolescente, então com 39 anos, trabalhava como governanta da casa paroquial há quatro meses. Ela relatou à reportagem, na época, que começou a perceber comportamento indevido do padre e o abatimento da filha. Passou a cobrá-lo com veemência e ameaçou denunciá-lo, apesar do receio de perder o emprego. No dia 24 de fevereiro de 2022, as duas foram demitidas. Elas não tinham carteira assinada. A menina ainda foi excluída do CLJ. “A gente precisava muito do trabalho, mas minha filha não está à venda.”
A ex-governanta fez ocorrência na Polícia Civil, que não indiciou o padre. O Ministério Público, porém, o denunciou. O Judiciário aceitou a fundamentação da Promotoria e abriu ação penal. Na fase processual, entre outras provas, como imagens, conversas no celular e laudos médicos, mais de uma testemunha respaldou os relatos da adolescente.
A principal delas era a secretária anterior da paróquia, de 25 anos. Afirmou que também sofria assédio do padre. Narrou que, diante das frequentes investidas do chefe, reagia de forma áspera, deixando claro que “comigo não”. Foi demitida, conforme acredita, por causa das recusas.
O que diz a lei
A condenação é pelo artigo 216 do Código Penal, que prevê pena de um a dois anos de prisão. “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.”
“Visivelmente abusou de seu cargo para constrangê-la”
Na sentença, a juíza da 2ª Vara Judicial de Canela, Simone Ribeiro Chalela, fundamenta uma conduta criminosa do chefe contra a funcionária. “Visivelmente abusou de seu cargo para constrangê-la.” A magistrada menciona que a adolescente, de família de baixo poder aquisitivo, morava no meio rural e buscou emprego na igreja a fim de reunir dinheiro para ingressar na faculdade. “O réu, por sua vez, possuía curso superior e idade avançada, sendo líder religioso da congregação em que a vítima estava trabalhando.”
Simone relacionou a situação da adolescente com a da secretária anterior. “Uma harmonia nos relatos acerca de como o líder religioso tratava as funcionárias de igreja”, ilustra, exemplificando ofertas de idas ao apartamento dele e de bebidas alcoólicas, que as empregadas recusavam.
“Não bastasse tudo isso, a ocorrência dos fatos é incontroversa, já que o réu confessou que a vítima era ‘uma jovem bonita (mesmo sabendo que possuía apenas 16 anos) e que trocou beijos e carícias com ela’, ainda que seja fato público e notório o dever de celibato atribuído aos sacerdotes da Igreja católica. Ou seja, tanto moral, quanto legalmente, não há que se falar que o réu estava apenas querendo ‘aproveitar a vida’, o que ocorreu, no caso em concreto, é crime.”
A juíza cita sequelas psicológicas. “Chegou em estado de melancolia extrema durante a audiência”, comenta, classificando o depoimento da jovem como firme e coerente. “Ora, não é preciso ser expert para verificar que a vítima apresentava fortes indícios de trauma emocional.”
“Nada vai reparar o trauma à minha filha”
Segundo a família, o assédio colocou a jovem em depressão ainda quando trabalhava na paróquia. Com 19 anos completados no mês passado, segue em tratamento psicológico e psiquiátrico. A mãe da vítima comenta a condenação de forma sucinta: “Nada vai reparar o trauma sofrido pela minha filha, mas pelo menos vemos que a Justiça reconheceu o mal que ele fez”.
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Em laudo emitido no dia 17 de janeiro deste ano, uma psiquiatra pede para que a jovem faça prova prática de motorista com uma examinadora do sexo feminino. Sustenta que a paciente está com transtorno decorrente de assédio sexual e menciona tratamento com cinco medicamentos de uso controlado. “Ainda tem crises de ansiedade e flashbacks do evento traumático em situações que podem gerar gatilhos, como a proximidade de uma presença masculina em situações que sinta-se vulnerável”, observa a médica.
“Me sentia humilhada”
Em setembro de 2022, a jovem relatou à reportagem como se sentia no trabalho. Mostrou que chegava a receber do padre, por mensagens, imagens dela no balcão da secretaria, como se estivesse sendo vigiada.
“Eu não queria acreditar, pela crença que sempre tive na igreja. Eu via a igreja como um mar de flores. Me sentia abusada, humilhada, um objeto à venda. Ele me via como se fosse uma garota de programa. Propostas de dinheiro, viagens, presentes, joias. Convidava para sair. Queria me comprar.”
Também falou da decepção: “Não sou um objeto à venda. Tenho os meus pais, minha família. Jamais pensei que isso pudesse vir de um padre, uma pessoa que eu via como alguém que pudesse me aconselhar. Ele dizia que queria que o visse como homem, não como padre”.
E mencionou intimidações: “Me ameaçou várias vezes. Dizia que eu não era para contar, pelo que meu pai poderia fazer, e falava que nada ia acontecer com ele, porque é padre. Eu dizia que só queria trabalhar”.
Em duas versões, religioso nega o crime
O padre foi afastado da paróquia de Canela em 23 de setembro de 2022, quando o caso foi revelado pela reportagem, acabou retornando em pouco tempo e hoje atua na comunidade católica de Rolante. Nas duas versões que apresentou, negou o assédio.
Na época, em entrevista, ele rechaçou qualquer convite de namoro à adolescente. “Imagina se eu faria propostas dessas, eu que vou fazer 50 anos, para uma moça. Algo muito imaturo. Nunca passei por uma situação dessa na minha caminhada toda. É pura vingança e busca de dinheiro. Veio uma auditoria canônica, fizeram uma averiguação, 40 páginas, não comprovaram nada, não existe prova. É a palavra de mãe, de uma moça de hoje 17 anos. A Justiça vai provar.”
Já no interrogatório no fórum, sustentou que a acusação é uma inverdade. Relatou, porém, que cedeu aos juramentos de castidade porque era uma “moça bonita”. Disse que houve troca de carícias e beijos, mas que nunca assediou a vítima. Declarou que a menor não aparentava a idade, pois era uma “moça desenvolvida”.
Quanto ao trabalho informal, argumentou que a mãe não queria assinar carteira. No fim de 2022, foi selado acordo trabalhista proposto pela Diocese, que não se manifestou, neste domingo, sobre a condenação.