TRAUMAS DE INFÂNCIA

"Meu pai é um monstro": Serralheiro estuprava filhas e engravidou uma delas em Novo Hamburgo

Vítima relata sofrimento desde a infância, revela como contou ao filho que o pai dele é o avô e salienta a importância de denunciar

Publicado em: 19/12/2023 19:37
Última atualização: 22/08/2024 15:10

Um serralheiro aposentado de 65 anos é acusado de estuprar três filhas e engravidar uma delas. Já tinha sido obrigado a casar com a mãe das vítimas por violentá-la na adolescência. Também abusou de uma neta. As atrocidades, que afligem três gerações de uma família em Novo Hamburgo, vieram à tona quando a filha mais velha decidiu romper o silêncio. O caso foi parar na Polícia e o aposentado teve que sair de casa. No inquérito, em fase de conclusão, será indiciado por três crimes.

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Vítima recorda a tortura psicológica que sofria Foto: Reprodução

“Minha mãe estava sofrendo, querendo se separar. Temendo que algo pudesse acontecer, resolvi contar a ela um segredo que me atormentava: que meu filho nasceu dos estupros que eu sofria do meu pai”, relata a assistente administrativa de 36 anos. A mãe, de 51 anos, criou a coragem da separação e conseguiu medida protetiva.

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Abalado

“Ela ainda está assimilando. Imagina de repente saber que o neto é filho do próprio marido. O mais difícil foi dizer para meu filho que o avô é, na verdade, seu pai. O (nome do filho) me abraçou e disse que eu não tinha culpa, mas ficou muito abalado. Estou providenciando acompanhamento psicológico para ele.” O jovem, de 18 anos, é saudável. Não tem problemas congênitos em razão do incesto.

Desde que revelou a chocante paternidade, no fim de setembro, outros crimes do aposentado vêm sendo tirados do baú sombrio da família. “A gente cresceu assim e nunca nos falamos sobre essas coisas. Se fosse hoje, com uma realidade totalmente diferente de proteção, eu não me sentiria tão reprimida, envergonhada e conformada com os abusos que sofria em casa.”

Descobertas sombrias e ameaça de morte

O caso da assistente administrativa prescreveu, mas os estupros sofridos pelas irmãs e sobrinha seguem valendo para representações criminais. “Eu fiz boletim de ocorrência sem saber da perda da validade. Então acompanhei minha irmã do meio à delegacia e acabamos constatando que outra irmã nossa, mais nova, e uma sobrinha, filha do meu irmão, também foram abusadas a partir dos cinco anos de idade. Para completar, descobrimos que ele foi obrigado a ficar com a nossa mãe porque a estuprou na adolescência. É um ciclo triste.”

Todas estão com medida protetiva. “Há um mês, ele ficou sabendo por um vizinho que a Polícia foi à casa da mãe, me ligou perguntando o que era e enviou mensagem com ameaça de morte, que encaminhei à Polícia.” Ela diz não se surpreender se aparecerem outras vítimas de abusos do pai. “O fato de ser um senhor não significa que não vai fazer de novo.”

“Enquanto todos dormiam, ele deitava comigo”

Quando você começou a ser abusada pelo pai?

Vítima - Lá pelos cinco anos de idade. Eu não tinha noção da gravidade. No início, ele passava a mão, coisas assim, e mandava eu não contar para ninguém o que fazia. Muita coisa a gente bloqueia na mente. Já maiorzinha, como filha mais velha, eu tinha quarto separado. À noite, enquanto todos dormiam, ele deitava comigo. Eu era uma menina muito fechada. Não conseguia falar, interagir com amigas. Sentia vergonha, porque as partes íntimas mudavam e tudo aquilo acontecia. Me retraí. Queria fugir. Ele ameaçava. Dizia que, se eu contasse as coisas, ia matar todos e a culpa seria minha.

Com que idade ficou grávida?

Vítima - Aos 17 anos. Consegui esconder a barriga durante cinco meses. Ele (pai) não tinha como não saber. Disse para inventar que era de um colega de escola. Fiz o que mandou, porque eu não tinha opção. Não tinha para onde ir. Era totalmente dependente. Só estudava. Estava no fim do ensino médio. Fui muito julgada. Falavam que eu não apontava o verdadeiro pai porque era homem casado, que não queria assumir.

Os estupros acabaram?

Vítima - Passei a me sentir segura na gestação e depois do nascimento, porque tinha meu filho. Ele (pai) chegou a me aconselhar. Que era para trabalhar e cuidar bem da criança. Fiquei morando na casa da família por um tempo. Não tinha escolha.

Como era a convivência do seu filho com o pai?

Vítima - Relação de avô, mesmo ele sabendo que é filho. Meu pai é uma pessoa que quem conhecer pelas aparências vai pensar que é o melhor pai, avô. Mas ninguém desconfia do monstro que está por trás.

Você tem certeza que ele é o pai do seu filho?

Vítima - Tenho certeza que é dele. Eu não tinha ninguém, nenhum namoradinho. Demorei para ter relações. Ele me estuprava. Meu pai é um monstro.

Por que você demorou tanto para denunciar?

Vítima - Era outra época. Criação diferente. Ainda hoje muitos casos parecidos não são denunciados. As vítimas e pessoas próximas precisam criar coragem para denunciar, por mais difícil que seja. Eu já tinha contado para meu esposo. A gente é da igreja. Ele me deu força e disse para a gente orar bastante. E decidi ir à Polícia, depois de tantos anos, para salvar minha mãe, que era ameaçada por ele e não estava conseguindo sair dali. Ela conseguiu sair, para a casa de uma amiga, e depois voltou ao seu lar, porque nos unimos, descobrimos mais vítimas e quem teve que ir embora foi ele. É especialmente comovente o apoio que tive do meu filho, que me falou: ‘Quem mais sofreu foi você’. Ele ainda chora por tudo isso.

Antes não suspeitava dos abusos contra as irmãs?

Vítima - Não, porque temos diferença de dez anos. Quando ele teve filho comigo, pensei que não fosse abusar de outra filha. Minha psicóloga disse para perguntar para elas, mas não tinham coragem de falar. A do meio relutava e negava.

O que sente pelo seu pai?

Vítima - A gente se bloqueia e tenta entrar naquela mentira. Era mais fácil esconder. Depois de um tempo consegui perdoar pelo que passei, mas nunca a ponto de abraçá-lo. Nunca houve uma relação de pai e filha.

Justiça negou a prisão do acusado

O inquérito está em fase de conclusão na Delegacia Especializada no Atendimento a Mulher (Deam) de Novo Hamburgo, que pediu a prisão do homem. Ela foi negada pelo Judiciário. O motivo para indeferir a preventiva não é informado porque o procedimento tramita sob sigilo.

O delegado da Deam, Lucas de Moura Britto, revela que indiciará o aposentado por estupro e estupro de vulnerável, em razão dos crimes sexuais, e por coação no curso do processo, pela ameaça à filha. Há também um requerimento de teste de paternidade do avô em relação ao neto.

Para preservar as vítimas, o bairro da família e o nome do acusado não são publicados. A reportagem entrou em contato com o aposentado, mas ele não atendeu às ligações e não deu retorno. Ele teria se mudado para Santa Catarina.

Pesquisadora expõe a imposição do silêncio e a importância de denunciar

Para a jornalista Marina Mentz, doutora e pesquisadora da violência sexual na infância, há barreiras sociais e comportamentais que ocultam os abusos. “É uma situação marcada pelo silenciamento. Seja o silêncio exigido pelo agressor, por meio de ameaças, o silêncio da vergonha, ou mesmo o silêncio construído culturalmente sobre o problema ser um assunto privado, doméstico, porque a maior parte das agressões é cometida por familiares, 40% pais.”

Marina observa que, quando uma criança tenta denunciar, mesmo que de sua forma, e é desacreditada ou culpabilizada, ela se sente desprotegida. “Isso tudo ajuda a explicar a dificuldade em denunciar, além, claro, de estarmos falando de crianças e adolescentes sem as ferramentas emocionais para compreender o que está acontecendo.”

A pesquisadora salienta que, com o acumular do sofrimento, culpa e violência continuada, a vítima costuma demonstrar mudança no comportamento, no sono, agressividade ou apatia. “Algumas crianças vítimas de violências podem também ter regressão no comportamento, como não controlar xixi e cocô, por exemplo.” Marina frisa que qualquer pessoa pode denunciar anonimamente no Disque 100. “A Polícia Militar ou Samu devem ser acionados em situações de risco imediato ou socorro urgente.”

Canais de denúncia

  • Disque-denúncia 0800 510 2828
  • Disque 100 – Vítimas ou testemunhas de violações de direitos de crianças e adolescentes podem efetuar a denúncia através do Disque 100, serviço do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A ligação é gratuita, funciona 24 horas e pode ser feita de qualquer parte do Brasil, todos os dias da semana. Também é possível realizar a denúncia pelo site. Nos dois casos há a possibilidade do anonimato.
  • Conselho Tutelar – Deve ser acionado nos casos de violência, inclusive por familiares, de ameaça ou humilhação por agentes públicos, e de atendimento médico negado. O Conselho Tutelar é um dos órgãos de proteção e também recebe denúncias de violações dos direitos das crianças e adolescentes.
  • Disque 180 – Em casos de violência contra mulheres e meninas, seja violência psicológica, física, sexual causada por pais, irmãos, filhos ou qualquer pessoa. O serviço é gratuito e anônimo.
  • Polícias – A Polícia Militar deve ser acionada em casos de necessidade imediata ou de socorro rápido. O número 190 recebe ligações de forma gratuita em todo o território nacional. Também é possível acionar as Delegacias Especializadas de Proteção à Criança e ao Adolescente.

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