Dez dias após a estudante Anna Pilar Cabrera, de 7 anos, ser morta a facadas em casa pela mãe, Kauana Maiara Nascimento, 31, surgem novas revelações intrigantes sobre o crime no apartamento onde as duas moravam, no Centro de Novo Hamburgo. Uma diarista de São Leopoldo de 59 anos, que trabalhava há quase três meses para Kauana, relata situações anormais na véspera do assassinato e traz indícios de premeditação que remetem ao possível motivo.
“Eu fazia faxina às terças e sextas no apartamento. Na quarta, um dia após ter ido lá, a Kauana pediu para antecipar para quinta. Eu não via motivo, pelo curto espaço de tempo, e ela não explicou o porquê da alteração, mas acabei fazendo como ela queria e notei um comportamento diferente naquele dia. Quando voltei para o serviço, na semana seguinte, fiquei sabendo que ela tinha matado a Anninha na sexta em que eu era para estar lá”, conta a diarista, em tom de espanto.
A testemunha, que ainda não foi chamada pela Polícia para depoimento, corrobora os relatos de surpresa de moradores da Galeria Central, na Rua Joaquim Nabuco, ouvidos pela reportagem já no dia do crime, 9 de agosto. Todos afirmam que mãe e filha tinham uma relação de muito afeto.
“Ambiente lúdico”
“Elas se tratavam com muito amor. A Kauana acordava a Anninha com beijos e a chamava de princesa. Participava ativamente da vida escolar e dava do melhor para a filhinha. A menina era uma queridinha, cuidadosa com os brinquedos e muito interessada nos trabalhinhos da escola. Amorosa com a mãe e meiga com todos. Aquele apartamento era um ambiente lúdico, de paz.”
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Na prateleira de um armário, havia um “altarzinho” para orações, com duas imagens de santas. “Não consigo entender como nem por que essa monstruosidade foi acontecer lá dentro. Essa mãe demonstrava ser uma pessoa completamente diferente do que se revelou.”
“Não dormi direito”
Quando chegou para trabalhar naquela quinta-feira, por volta das 8h30, percebeu a cliente ansiosa, dispersa e preocupada. “Não dormi direito porque estou com uns problemas”, comentou Kauana à diarista, ao pedir desculpa por não dar atenção. “Não perguntei o motivo. Prefiro não me intrometer, até porque todos têm seus dias ruins. Gostava muito da Kauana. Era muito atenciosa e amável comigo. Me recebia com lanche, elogiava meu trabalho. Naquele dia ela continuava querida, mas estava estranha.”
Mas o que mais chamou a atenção da diarista foi a louça para lavar. “Sempre era uma ou duas xícaras, da mãe e da filha. Naquela manhã havia umas quatro ou cinco. Mais pessoas tinham estado naquele apartamento à noite.”
“Marido imaginário”
Ela recorda que outro objeto diferente era um violão na sala. “Perguntei de quem era, e a Kauana respondeu que era do marido. Ela falava muito sobre o marido e, mesmo que eu nunca o tivesse visto, não questionava. Eu imaginava que ele saía mais cedo. Também nunca vi mais de duas escovas de dente e roupas masculinas. Só agora, depois de tudo o que aconteceu, penso que era um ‘marido imaginário'”, observa.
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Kauana estava separada do pai de Anna, o técnico em informática argentino Andrès Cabrera, 42, e tinha um amigo muito próximo no prédio. “Esse vizinho foi um dia me ajudar a remover a geladeira para eu limpar. Em outros dois, bateu na porta e me deu almoço, sem eu pedir. Eu disse que não precisava e não trouxe mais.” O homem, de 36 anos, costumava passear com Kauana, ambos de mãos dadas com Anna. O homem se diz apenas “um amigo” da vizinha.
A véspera do crime era aniversário do pai da menina. Segundo familiares e amigos, Andrès era muito apegado à filha. A Polícia suspeita que Kauana tenha matado a criança para atingir o ex-marido. Em choque, ele enterrou a filha no Dia dos Pais. A reportagem entrou em contato com o técnico em informática, mas ele não quis falar.
“Ela foi linda para a aula”
A diarista recorda, emocionada, do último contato com a menina, que estudava à tarde na escola Municipal São Jacó, no bairro Hamburgo Velho. “Anninha estava com muita tosse. A mãe pediu para eu fazer uma trança nela e, antes de eu fazer, sugeri que não lavasse o cabelo no banho para não sair com ele molhado na rua. Ela foi linda para a aula. Nunca vou esquecer.” Conforme a testemunha, a imagem da menina vem à mente com frequência. “Eu ainda sonho com a Anninha. Não consigo dormir direito, nem trabalhar.”
“Dias corridos”
Quando entrou em contato com a diarista, em junho, por indicação de uma amiga, Kauana disse que precisava do serviço sob argumento de que “os dias estavam corridos”. “É meu trabalho, mas mesmo assim questionei se precisava ir duas vezes por semana para faxina em um quitinete de 30 metros quadrados.”
Em uma mensagem, Kauana reiterou a necessidade e disse que se propunha a pagar a mais. “Ela pagava 150 reais a diária mais o deslocamento, no caso o Uber. Parece que necessitava ter alguém presente, interagindo com as coisas da casa.”
A rotina oculta
A diarista acreditava que Kauana trabalhava. “Ela saía de manhã e muito raramente voltava quando eu ainda estava lá.” A leopoldense menciona outros hábitos atípicos. “Eu não tinha a chave do apartamento. Ela sempre mandava recado, quando ia embora, pelas 16 horas, para avisá-la ao entrar no Uber. Cheguei a perguntar se não era perigoso deixar a porta destrancada e ela dizia que não tinha problema. Minha impressão é que ela ficava ali por perto, talvez em outro apartamento durante a faxina. Até porque, quando saía, não levava bolsa ou carteira. Não reparo nos clientes, mas em um quitinete isso fica evidente.”
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Kauana morava há muitos anos no apartamento. Apesar da boa interação com vizinhos, nenhum soube dizer se ela trabalhava. O ex-marido seria o encarregado das despesas básicas, em razão da filha. E o apartamento, apesar de não ser próprio, não despenderia custo com aluguel. O dono, que estaria no exterior, teria deixado o imóvel para Andrès cuidar.
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O último contato e o Pix
A diarista traz outras memórias sobre atitudes atípicas de Kauana naquela quinta-feira. “Quando eu estava terminando de passar o pano para ir embora, pelas 4 da tarde, ela chegou e disse que desceria comigo. Já na rua, fui para um lado e ela, para outro. Parecia apressada. Entrei no uber e fui para casa.”
A leopoldense lembra de mais uma alteração na rotina. “Ela insistiu para eu retornar na segunda e não na terça, como era combinado. Disse que me pagaria adiantado e respondi que não precisava. Quando cheguei em casa, vi o Pix. Quando voltei lá, na segunda, fiquei sabendo da tragédia. Fui amparada por um senhor que mora no prédio. Meu marido foi me buscar.”
Um crime sob relatos estarrecedores
O prédio da Rua Joaquim Nabuco, conhecido pelas galerias comerciais no térreo, é formado por apartamentos nos dois pavimentos superiores. Foi no terceiro andar, às 18h15 do último dia 9, que pedidos de socorro apavoraram a parte residencial.
Moradores saíram correndo de casa para ver o que era e se depararam com uma vizinha deitada no chão do corredor, abraçada à filha. As duas estavam ensanguentadas, com um rastro que vinha do apartamento delas. “Socorro. Alguém me ajuda”, repetia a mulher.
“Eram gritos muito altos”, conta a primeira vizinha a chegar. Ela faz um relato com informações cruciais sobre o crime: “Eu peguei no pulso da criança. Estava gelado. O corpo já estava rígido. O sangue estava seco nas roupas”. Ou seja, a menina não teria sido morta naquele momento. No entanto, nada de anormal foi percebido no apartamento no decorrer da tarde.
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Com mais moradores no entorno, chamando Samu e Polícia ao mesmo tempo, a mãe tentava explicar a morte da filha: “Ela caiu da escada”. Quando os socorristas chegaram, todos viram que a versão da mulher, até então duvidosa pela quantidade de sangue, era impossível. Os profissionais de saúde constataram perfurações profundas na criança, principalmente no tórax e abdômen. A mãe também tinha pelo menos uma lesão de faca, no meio do peito.
“A porta do apartamento estava entreaberta. Vimos que estava tomado de sangue, no chão, na cama e até no pegador da geladeira”, acrescenta a vizinha. O pai da menina foi avisado. Chegou em seguida e entrou em desespero. “Não pode ser!”, dizia, com as mãos na cabeça. Ele estava separado de Kauana.
Anna foi enterrada na manhã de domingo. Um Dias dos Pais desolador para Cabrera. Autuada em flagrante na sexta à noite e com preventiva decretada no domingo, Kauana segue internada sob custódia policial. Na última sexta, foi transferida do Hospital Municipal de Novo Hamburgo para o Hospital de Charqueadas. Ela teria tentado o suicídio após matar a filha.