"É MUITA MALDADE"

CATÁSTROFE NO RS: Vítimas de enchente agora sofrem golpe no Vale do Sinos

Saiba como vigaristas estão lucrando com a tragédia a partir de anúncios nas redes sociais

Publicado em: 28/05/2024 06:00
Última atualização: 28/05/2024 10:16

Com a residência destruída pela enchente no bairro Santo Afonso, em Novo Hamburgo, um casal de jovens ainda perdeu dinheiro para golpistas. “Quando a gente tenta recomeçar, nos tiram o pouco que temos”, lamenta Stefanie Silva Brizolla, 25 anos.

Atraída por um anúncio de eletrodomésticos nas redes sociais, ela pagou R$1.050,00 com o abono salarial do marido, Bruno Lisboa Moreira, 24, e não recebeu a mercadoria. Gastou mais R$ 200 com o caminhão contratado para o frete. A oferta era uma fraude para lucrar com a situação vulnerável das vítimas das cheias. Há outros desalojados caindo no golpe no Vale do Sinos.

Abrigados no Canil Municipal de São Leopoldo, onde trabalham como tratadores, Stefanie e Bruno se organizavam para readquirir, aos poucos, o que foi destruído pelas águas. No início da tarde do último dia 21, ela viu uma geladeira por R$ 800 no Facebook Marketplace.

“Entrei em contato e perguntei se ela ainda estava disponível. O vendedor respondeu que sim e pediu meu telefone de contato. Por WhatsApp, ele disse que tinha também um fogão e um botijão de gás por mais R$ 250. Para nós, por tudo que estamos enfrentando, era uma boa oportunidade”, relata Stefanie.

As duas pontas

A jovem pediu para ver os objetos e o homem até passou o endereço, no bairro Rincão. “Chamei o caminhão de frete e fomos.” Por volta das 14h30, ela, o marido e o padrasto já estavam lá. Na casa informada, havia um homem esperando com os eletrodomésticos.

É aí que aparece a outra vítima: o verdadeiro dono dos produtos. Assistente veterinário de 44 anos, que pede para não ser identificado, ele tinha anunciado os três itens por R$ 1.850,00 pela manhã, na mesma plataforma. O golpista fez contato, dizendo-se interessado, e se apropriou das fotos e dados dos produtos para fazer a publicação fraudulenta.

Como o vigarista enganou o vendedor e a compradora

O golpista criou um enredo que amarrou o vendedor dos eletrodomésticos e a compradora até receber o dinheiro e bloquear as duas vítimas. O prejuízo, que ficou com Stefanie, poderia ter sido do assistente veterinário caso tivesse liberado os produtos. Chegou a haver atrito entre as vítimas, que foram para a delegacia.

“Vinha relutando em vender objetos da casa da minha mãe, que faleceu no fim do ano passado. Incentivado por familiares, resolvi começar pela geladeira, fogão e botijão. Bati fotos e anunciei. Não deu 30 minutos, e o cara me chamou, se dizendo de Santa Maria e que queria comprar para a ex-mulher, que era daqui e tinha sido atingida pela enchente. Me chamou no whats e começou a perguntar tudo. Pediu fotos. Como disse que queria mostrar para ela a fim de ficar com tudo, enviei.”

Eram aproximadamente 10h30. “Fica no aguardo que vou falar com ela”, propôs o golpista ao hamburguense. Enquanto a primeira vítima esperava pela confirmação, o criminoso, depois de anunciar os produtos por R$ 1.050,00, negociava com a interessada.

Com as duas pontas amarradas, o vigarista combinou a entrega e o pagamento. Ao dono, disse que a sua ex-mulher chegaria com familiares para buscar e que não precisava se preocupar, pois ele faria o Pix, assim que fosse tudo carregado.

“Eu disse que estava envolvido na reforma da casa dos fundos da minha mãe, que pretendemos alugar. Ele usou essas informações no golpe. Disse que eu veria a ex-mulher falando com ele no celular. Ela, na verdade, era a outra vítima”, relata o vendedor.

“Para mim, o golpista disse que a mãe tinha falecido, que eram coisas dela e que o irmão dele estaria esperando, mas que esse irmão não tinha tempo para conversar, porque estava em arrumações na casa. O irmão mostraria os produtos para embarque no caminhão, mas o pagamento era para ser feito para o anunciante, que vinha falando comigo no celular”, conta a jovem. A figura do irmão citada pelo vigarista era o verdadeiro dono.

O golpista falava com o vendedor e a compradora ao mesmo tempo, principalmente por áudios. Era para ser tudo rápido, para não dar margem a uma parte descobrir a fraude antes do pagamento. Assim, a geladeira, o fogão e o botijão foram colocados no caminhão praticamente sem diálogo entre as duas vítimas.


Golpe de venda de móveis durante enchente Foto: Reprodução

Com o caminhão carregado, o assistente veterinário só aguardava o pagamento. “Quando ouvi ela comentar que mandou o Pix, olhei para ela, com cara de espanto, e disse que era para ser para mim. Na hora sumiu o perfil do golpista tanto no meu quanto no celular dela.”

O padrasto da jovem, muito nervoso e indignado, insistiu que já tinha pago e que iria levar. O clima ficou tenso. O vendedor e a compradora chamaram a Brigada Militar. Depois de ouvir as partes, os policiais falaram à jovem que o assistente veterinário também era vítima e mandaram descarregar os eletrodomésticos. A jovem caiu em desespero. Começou a chorar copiosamente.

“Eu mostrei a eles as mensagens. Vimos que, para ela, eu era o irmão do golpista. E que, para mim, ela era a ex-mulher dele. O bandido foi fazendo todo o meio de campo pelo celular. Assim que recebeu o Pix, nos bloqueou.”

O estelionatário usava telefone de DDD 55, do interior do Estado, e uma foto de gaúcho com chapéu. Também há três contas bancárias informadas pelo vigarista para o pagamento. A vítima só conseguiu o Pix na última, pois as duas primeiras pareciam bloqueadas, possivelmente em razão de outros golpes.

“É muita maldade o que fizeram com a gente”

Hoje em uma casa emprestada em São Leopoldo, o casal ainda não conseguiu entrar na residência em Novo Hamburgo, que segue alagada. “Sabemos que não tem como salvar nada. A gente já está abalado, tentando recomeçar, e perder o pouco que tinha num golpe é complicado. É muita maldade o que fizeram com a gente”, comenta Stefanie.

Ela e o marido viviam na casa da frente. Nos fundos, ficava a moradia da mãe dela. “Antes da enchente, a gente tinha feito planos com esse dinheiro do PIS do meu marido. Aí aconteceu tudo isso e a gente repensou tudo e ia usar esse dinheiro para tentar recomeçar.”


Casa da jovem ainda está alagada Foto: Arquivo pessoal

Delegado explica fraude e orienta precauções

O caso será investigado pela 2ª Delegacia de Polícia de São Leopoldo, que também ficou abaixo d'água. “O inquérito será instaurado o mais rápido possível, assim que a gente conseguir se estabelecer como delegacia, pois recém conseguimos entrar no prédio para retirar as coisas para formar uma base provisória. Vamos fazer diligências para chegar à autoria”, declara o delegado André Serrão.

Ele explica que se trata do golpe do intermediário, que funcionava basicamente com veículos e agora está se valendo da vulnerabilidade e necessidade das pessoas em resolver questões emergenciais. “O autor solicita que não mantenha contato com a pessoa que faz a venda, que não fale sobre valores.” O delegado orienta que, ao fazer o negócio, o comprador deve certificar de quem realmente está comprando e para quem está fazendo o pagamento.

Gostou desta matéria? Compartilhe!
Matérias Relacionadas