A tragédia humanitária provocada pelas chuvas ganha ares de um apocalipse urbano nas águas. Os desabrigados se organizam em rondas próprias para defender as propriedades contra saqueadores e o poder público se adapta a uma nova realidade operacional. O policiamento agora é feito de barco em áreas residenciais e comerciais. Tiros quebram o silêncio da noite. Em meio ao caos de furtos e roubos, o governador Eduardo Leite anunciou, nesta terça-feira (7), reforço de 400 homens da Força Nacional de Segurança.
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“Ontem à noite foi muito tenso. Os vizinhos estão se revezando de barco, dia e noite, porque os bandidos tentam entrar nas nossas casas e comércios alagados. Alguns moradores, que têm segundo piso, ficaram. Fazem a vigilância e avisam os demais sobre a movimentação dos criminosos”, declara uma comerciante de 39 anos, apreensiva com a residência e loja que deixou para trás no bairro Rio dos Sinos, em São Leopoldo.
“Meu medo”
“Fomos resgatados pela janela, e não conseguimos trancar. O que deu para salvar deixamos no segundo andar e no forro. Meu medo é entrarem por ali. E temos um pequeno comércio na esquina, também debaixo d’água, à mercê dos bandidos”, acrescenta ela, abrigada na casa de um filho no bairro Feitoria. “Está bem complicado na nossa região, ao redor da Vila Progresso, Chácara dos Leões e Santos Dumont.”
A comerciante conta que a união da vizinhança, organizada em um grupo de WhatsApp, evitou a invasão a uma loja de bicicletas na madrugada desta terça. “O aviso veio pelo grupo e a gente chamou um brigadiano que mora perto. Ele acionou a Brigada, que chegou a tempo de evitar a invasão.” Os ladrões teriam conseguido fugir. Pela rede do celular, os membros também combinam o recebimento e doação de água e comida.
Saques a lojas e tiros assustam
A proliferação dos saques chegou a lojas alagadas na Rua Independência, no Centro de São Leopoldo. A Polícia confirma relatos de uma quadrilha com oito homens em um barco arrombando janelas dos prédios. Atônitos, moradores ouvem tiros, sem saber a origem. No bairro Mathias Velho, em Canoas, um confronto entre brigadianos e traficantes causou pânico no fim da noite de segunda. Não há notícia de feridos.
A violência em meio à inundação vai do Vale do Sinos a Porto Alegre. Roubos de embarcações e assaltos a voluntários são relatados. A barbárie e a selvageria promovida por criminosos, enquanto o mundo se volta para ajudar os flagelados, prejudica os atos de solidariedade.
Com medo de assaltos, barqueiros voluntários se tornam seletivos nos socorros. Estão exigindo acompanhamento policial para chegar a áreas de maior risco à segurança. Nesta terça, um barco foi furtado em uma casa na Rua Santa Catarina, na Scharlau, em São Leopoldo. Em Canoas, motos aquáticas foram roubadas.
Desalojados acampados até em carros, em plena BR-116, buscam informações sobre a situação de propriedades alagadas. Trocam informações com amigos e desconhecidos que se prontificam a ir até onde as águas permitem para uma vigília panorâmica. Tudo num misto de solidariedade com desconfiança.
“Estamos atendendo ocorrências e prendendo”
“Até domingo eu estava dentro da água resgatando pessoas. A prioridade era salvar vidas. Depois, com a maioria das pessoas já retiradas dos locais de risco aqui na cidade, nosso foco passou a ser o policiamento, para preservar o patrimônio e a propriedade”, declara a capitã Bibiana Beck Menezes, do 25º Batalhão de Polícia Militar (BPM) de São Leopoldo.
“A Brigada Militar está trabalhando de forma incessante para evitar atos de vandalismo, arrombamentos e todo tipo de crime. Estamos atendendo ocorrências e prendendo gente. Tudo normal no policiamento, só que dentro da água”, acrescenta a oficial. A corporação conta com barcos e motos aquáticas emprestadas.
O comandante do 25º BPM, tenente-coronel Flori Chesani Junior, também salienta os esforços. “A segurança e o bem-estar da população são prioridades inegociáveis para a Brigada Militar. Neste momento desafiador, estamos dedicando recursos significativos para garantir que nossa comunidade sinta-se protegida e apoiada.”
Em nota emitida nesta terça, a corporação frisa que efetuou 32 prisões no Estado em operações contra vandalismo, invasões e danos ao patrimônio. “Durante as ações, seis pessoas foram presas em Montenegro, quatro em Canoas, seis em São Leopoldo, seis em Novo Hamburgo, uma em Ivoti, duas em Bento Gonçalves e sete pessoas em Porto Alegre.” O comunicado diz ainda que foram resgatadas, até o momento, 18.870 pessoas e 2.871 animais.
Governador confirma reforço na segurança
O governador Eduardo Leite confirmou, na tarde desta terça-feira, que o Estado ganhará novo contingente da Força Nacional de Segurança. “Recebi a informação de que o nosso pedido para reforçar o policiamento foi atendido. A partir de amanhã, começa a chegada desse importante apoio, inicialmente com 120 homens e, em seguida, com mais 300”, divulgou nas redes sociais.
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O Estado já conta, desde o fim de semana, com 100 militares da Força Nacional. Com a autorização ontem do ministro da Justiça e Segurança, Ricardo Lewandowski, o efetivo chegará a 220 nesta quarta e deve passar de 500 nos próximos dias.
Em entrevista à TV Brasil, o superintendente da Polícia Federal no Rio Grande do Sul, Aldronei Rodrigues, informou que a maioria dos saques foi registrada na região metropolitana de Porto Alegre. De acordo com ele, grupos táticos de Santa Catarina e do Paraná chegarão à capital gaúcha para reforçar o patrulhamento das cidades, junto com as forças policiais locais, como a Brigada Militar. “Estamos dando um suporte e fazendo a segurança dos grupos de civis que estão atuando em resgate”, disse.
Dois são presos em abrigos por suspeita de crime sexual
Dois homens resgatados de inundações foram presos em abrigos no Vale do Sinos, nos últimos dois dias, por crime sexual. Mas são casos isolados e ainda sob investigação, conforme os órgãos públicos, preocupados com a disseminação de falsas informações de estupros em locais de acolhimento. “Estamos atentos e vigilantes em todos esses ambientes”, afirma o diretor da 3ª Delegacia de Polícia Regional Metropolitana, delegado Eduardo Hartz.
Por volta das 2h20 desta terça, um homem de 20 anos foi preso no abrigo montado na Fenac, no bairro Ideal, em Novo Hamburgo. Conforme a Brigada Militar, ele estava com uma namorada de 11 anos. Os dois afirmaram que são um casal, mas, mesmo com o consentimento da menina, se trata do crime de estupro de vulnerável.
O caso foi para a Delegacia Especializada no Atendimento a Mulher (Deam), onde a adolescente afirmou que tem 14 anos, idade que desconfiguraria o crime. “Como o sistema de consultas está fora do ar, a gente não consegue confirmar a idade. Está sendo apurado. Talvez a mãe seja encontrada e apresente documento de identidade da adolescente”, explica o delegado Hartz.
A outra prisão aconteceu em um pavilhão na Rua Christopher Levalley, no bairro Jardim América, em São Leopoldo. Um abrigado de 23 anos, conforme relato da BM, praticava “atos obscenos” em meio a famílias. O caso foi registrado como crime sexual pela exposição a crianças. O homem, resgatado das inundações na periferia da cidade, é um traficante que já esteve preso.