RELEMBRE O CRIME BRUTAL

Caso Beatriz: Há 20 anos, jornalista era queimada viva no dia dos namorados em Novo Hamburgo

Saiba o que aconteceu com o marido, condenado pela morte brutal com traços de ritual macabro

Publicado em: 12/06/2024 06:31
Última atualização: 12/06/2024 07:08

Em uma manhã fria e ensolarada do dia dos namorados, há 20 anos, uma jornalista era assassinada com sinais de ritual macabro em Novo Hamburgo. Foi queimada viva nas imediações de um lugar religioso dedicado às mães, que dava para ser visto da sacada do apartamento onde ela morava com o marido e o filho de 4 anos, a cinco quilômetros de distância.


Corpo de Beatriz foi encontrado carbonizado no carro do marido Foto: Arquivo GES

Na sacada do imóvel de alto padrão, havia uma luneta apontada para o local do homicídio. O viúvo, que sempre jurou inocência, foi condenado e já cumpriu a pena. Hoje mora em outro Estado, onde tem empresa de transporte.

A morte de Beatriz Helena de Oliveira Rodrigues, aos 43 anos, é o crime de maior repercussão da história de Novo Hamburgo, numa época em que a Internet e as redes sociais engatinhavam. O celular começava a se popularizar pelas “ligações de linha” e mensagens de SMS. Não havia recursos como o WhatsApp.

Beatriz e Luiz Henrique Sanfelice, então com 39 anos, eram um casal conhecido no Vale do Sinos, principalmente em Novo Hamburgo. Ela, especialista em jornalismo empresarial. Ele, dono de uma exportadora de calçados e engajado na política. Estavam juntos há 12 anos e frequentavam a chamada alta sociedade.

Crise conjugal

O motivo do crime, conforme conclusão da Polícia e Ministério Público, foi passional com componente patrimonial. Os dois tinham amantes e estariam passando por dificuldades financeiras em meio à vida de luxo. Beatriz estaria querendo se separar, pois teria ficado enojada ao encontrar 24 fitas de vídeo, gravadas pelo marido, em que ele aparecia em relações sexuais com outras mulheres.

A Polícia apurou que Sanfelice tinha providenciado grampo telefônico para monitorar a esposa e havia contratado, quatro meses antes do homicídio, um seguro de vida para a jornalista, sem ela saber, no valor de R$ 350 mil. Ele era o beneficiário.

O sujeito oculto

Apesar da convicção de que o marido foi o mentor e executor, a investigação não conseguiu chegar a um outro envolvido. Indícios no local do crime e informações colhidas no decorrer da investigação indicavam a participação de pelo menos duas pessoas. É o sujeito oculto do caso.

Perícia confirmou que Beatriz Rodrigues foi queimada viva

Carbonizados - A jornalista foi queimada no carro do marido, um Megane, entre 9h30 e 9h50 de 12 de junho de 2004, um sábado, em um terreno baldio perto do Santuário das Mães, no bairro Roselândia. O carro também ficou carbonizado. À tarde, Sanfelice registrou ocorrência do desaparecimento da esposa.

Corpo de Beatriz foi encontrado carbonizado no carro do maridoArquivo GES
Carro queimado da BeatrizArquivo

Sedada - O corpo foi encontrado na manhã do dia seguinte. A perícia apontou que ela foi queimada viva. Conforme sustentado pelo Ministério Público, foi sedada com Dormonid e chegou a acordar com o corpo em chamas. A presença de fuligem na garganta confirmou que aspirou fumaça e o banco retorcido indicou que relutou ou se contorceu.

O suspeito - Sanfelice, que chorou aos prantos no local do crime e no enterro, era considerado o principal suspeito desde o dia do desaparecimento. Ele ainda participou de uma passeata pela paz com uma foto emoldurada da vítima.


Capa do Jornal NH na época do crime Foto: Reprodução

Versão - O empresário tinha um roteiro para o que havia feito naquela manhã. Dizia que, até por volta das 9h35, estava com Beatriz no Megane. Relatou que desceu do veículo ainda na área central e que passou por uma locadora de vídeo e uma farmácia até retornar para casa, na Rua Heller, a pé. Sustentava que a esposa tinha sido vítima de um assalto.

A testemunha - Até dois dias após o assassinato, a Polícia não sabia o horário do crime. Foi quando um homem procurou a reportagem do Jornal NH e afirmou que viu o carro em chamas por volta das 9h45. Como é área de desova de veículos roubados, disse que ficou com medo e foi embora, sem se aproximar.

O elo - Esse homem se tornou testemunha-chave, pois revelava o crime apenas dez minutos após o viúvo ter dito que estava com a vítima. Ou seja, era improvável que Beatriz tivesse sido dominada por ladrões e incendiada em tão pouco tempo até aquele ponto acima da RS-239.

Pistas - Além disso, uma irmã da jornalista afirmou ter visto o marido chegando em casa, com a roupa suja de fuligem, perto das 10 horas. “Estava meio abobado e não costumava andar assim”, declarou a parente, na época. Nas buscas no apartamento do casal, os agentes depararam com uma luneta de longo alcance na sacada. Estava voltada para o ponto onde Beatriz foi assassinada.

“Surpresa” - A Polícia foi descobrindo detalhes da vida conjugal, como as 24 fitas de sexo. Elas foram entregues aos investigadores pelo amante da vítima, a quem ela havia confiado o material. As mulheres aparentavam estar sedadas durante as gravações. O homem também contou que, na manhã do crime, recebeu um telefonema de Beatriz em que ela dizia não poder se encontrar com ele porque o marido havia preparado “uma surpresa”, que envolvia compras em Dois Irmãos.

A prisão - Sanfelice foi preso em casa no fim da manhã de 19 de junho de 2004, exatamente uma semana após o crime. A Polícia organizou operação com direito a um sósia dele para despistar a imprensa e não informou o nome do detido. A reportagem do Jornal NH foi a única que registrou a chegada de Sanfelice ao xadrez, na 1ª Delegacia de Polícia de São Leopoldo.


Jornal ABC publicou sobre a prisão do marido pelo assassinato de Beatriz Foto: Reprodução

A condenação - Na madrugada de 17 de dezembro de 2006, após quatro dias de júri em auditório lotado na Universidade Feevale, Sanfelice foi condenado a 19 anos e três meses de reclusão. Em março de 2007, ganhou direito ao regime semiaberto e, em abril do ano seguinte, fugiu.

A fuga - Em maio de 2010, o empresário foi capturado em um condomínio em Bollullos de la Mitación, perto de Sevilha, na Espanha. É neto de espanhol e tem cidadania daquele país.

Nova vida - Extraditado para o Brasil, terminou de cumprir a pena na metade de 2022. Há cinco meses abriu empresa de transporte no Paraná, onde mora com a esposa - a amante da época do crime - e o filho que tem com ela. O filho com Beatriz, que ficou com a família materna no Vale do Sinos, é estudante universitário.

“Todos nós sofremos, mas ninguém mais que o filho”

A família da vítima tem convicção que foi Sanfelice o matador. “Desde o início achamos a pena muito branda. É um sentimento de impunidade, ainda mais que teve fuga. Ficou muito barato para ele, mas pelo menos ficou um tempo preso”, comenta o irmão da vítima, Flávio Rodrigues, 66 anos.

Ele observa que a mãe, Gecy de Oliveira Rodrigues, de 88 anos, nunca se conformou. “Todos nós sofremos, mas ninguém mais que o filho. Imagina perder a mãe daquela forma e o pai, como assassino. Sofreu uma perturbação muito forte e desde criança precisou de acompanhamento especializado.”

“É um caso emblemático”, recorda promotor

O promotor de Justiça Eugênio Paes Amorim, que atuou na acusação, comenta a simbologia ritualística por trás do crime. “Foi o fato mais marcante da minha carreira. O réu elabora um plano para matar a mulher, que ele julgava infiel, que ia abandoná-lo, e o consuma no dia da celebração do amor, próximo ao Santuário das Mães. E mata a companheira pelo fogo, que é o ritual da purificação, como era feito com as bruxas na antiguidade. Tudo leva a crer que foi calculado pela mente de um psicopata.”

A pena é “ridícula e insuficiente”, conforme define Amorim. “O fato de já estar solto hoje é porque não havia a lei dos crimes hediondos, que faz cumprir 40% da pena. Na época era só um sexto.” O promotor ressalta que se trata de um caso emblemático. “Ainda não se falava em feminicídio. E é um réu de posses, da classe média alta, que foi condenado, o que não é comum.

“Se fosse hoje, ele não seria condenado”

Sanfelice não quer falar. Um dos advogados dele na época, Fábio Adams, contesta a investigação e afirma: “Se fosse hoje, com as regras processuais vigentes, certamente ele não seria condenado. Talvez sequer fosse levado a julgamento pelo Tribunal do Júri”. Para Adams, o empresário é inocente. “Até hoje eu confio e acredito piamente que o Henrique não tenha cometido esse crime.”

Ele sustenta que imagens de câmeras de segurança do Município foram apagadas. “Elas poderiam, ao menos em tese, ter ajudado a esclarecer os fatos e traçado uma dinâmica de toda a trajetória da vítima pelo centro da cidade no dia em que a Beatriz desapareceu.”

O advogado também questiona uma perícia no computador de Sanfelice. “Foi admitida como prova um suposto arquivo extraído do computador do réu que traçava um “roteiro” dos fatos, cujo computador foi simplesmente recolhido sem que nenhum lacre ou outra forma qualquer de acondicionamento pudesse comprovar que tais arquivos não tenham sido manipulados depois da apreensão. Isso hoje seria inadmissível, pois a lei agora estabelece parâmetros objetivos para tratamento das provas, detalhando quem, como, onde e de que forma devem ser tratados os elementos colhidos na investigação”, expõe.

E aponta outro fator que, segundo ele, foi decisivo para a condenação. “Também contribuiu muito para o resultado do julgamento a exposição midiática dada ao caso. Não que a imprensa tenha sido tendenciosa, mas certamente no afã de produzir conteúdo muitas vezes extrapolou ou exagerou na cobertura, dando a impressão de que o réu já estava condenado antes mesmo do fim das investigações. Como parâmetro, hoje em dia essa cobertura deve ser limitada, regrada expressamente pela legislação – Lei de Abuso de Autoridade – Lei 13869/2019.”

E conclui: “Enfim, a justiça foi feita, bem ou mal, e o certo é que o jogo foi jogado com as regras da época e disso a defesa não tem o que reclamar. Mas fica aquela sensação de que talvez, se investigados outros suspeitos – como o amante da vítima, por exemplo – e fosse realmente aprofundada a investigação, talvez a conclusão do caso teria sido outra.”

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