Investigações em aberto sobre um cartel de frigoríficos podem transformar o processo do homicídio do empresário Adélcio Haubert, ex-vice-prefeito de Santa Maria do Herval, em um imbróglio judicial.
A defesa do empresário catarinense Cristiano de Bem Cardoso, 44 anos, acusado de ser o mandante do assassinato, traz à tona detalhes enigmáticos e revela que vai pedir a suspensão da ação penal até que sejam apurados. Sustenta a inocência do cliente e sugere que a morte de Haubert tenha sido queima de arquivo encomendada por uma máfia da indústria de carnes.
“Por mais lógica que seja, essa possível motivação não foi devidamente investigada, o que nos causa indignação e perplexidade. Uma vez comprovada, ela exclui o Cristiano e lança suspeita sobre outras pessoas”, declara o advogado Cláudio Rodrigues Neto. Em meio a inconsistências apontadas no inquérito policial, ele afirma que houve até denúncia anônima falsa à Polícia para acusar Cardoso. A suspensão será pedida nesta terça-feira no fórum de Dois Irmãos, no recurso contra a decisão judicial do mês passado que transformou o empresário em réu.
O dia
Haubert foi baleado na sala de casa, em Santa Maria do Herval, na noite de 21 de outubro de 2020, e morreu cinco dias depois no hospital. Tinha 65 anos. A esposa, que assistia televisão ao lado, ficou ferida por fragmentos dos projéteis.
“Ora, na manhã seguinte ao atentado, a vítima seria ouvida pelo Ministério Público a respeito de uma investigação contra um cartel de frigoríficos. Tudo indica que prestaria um depoimento contundente. Resta ver no processo quem seria prejudicado no âmbito desse poderoso grupo, que certamente não era o Cristiano”, frisa Rodrigues Neto.
Máfia dos matadouros tramita em ação sigilosa
A investigação do cartel, iniciada em 2015 pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MP, virou processo judicial em outubro de 2021 na comarca de Lajeado. Há empresários e colaboradores do setor denunciados, de diferentes regiões do Estado.
A Promotoria trata do caso com absoluto sigilo. “Em relação a estas investigações ou processo, eles estão em segredo de Justiça. O MP não pode divulgar absolutamente nada em relação a esse assunto para não desacatar uma ordem judicial”, declarou o órgão à reportagem. Conforme testemunhas, o centro da acusação envolve a divisão de território (praças), rotas e preços de produtos. Ou seja, a típica prática de cartel.
“A defesa está fazendo o trabalho que deveria ser da acusação”
O advogado considera surpreendente e contraditória a decisão do MP de denunciar Cardoso e outros dois investigados no mês passado.
“Em fevereiro, com o aval do próprio Ministério Público, o juiz acatou nosso pedido de solicitar os autos do processo do cartel e ouvir os investigados no sentido de esgotar todas as possibilidades quanto à autoria e motivação. Difícil entender como, no mês seguinte, sem que nenhuma dessas diligências fosse cumprida, o Ministério Público resolve oferecer a denúncia”, observa Rodrigues Neto.
A denúncia, feita pelo promotor de Estância Velha, Bruno Carpes, que havia assumido há pouco tempo o processo, foi aceita no dia 19 do mês passado pelo juiz de Dois Irmãos, Miguel Carpi Nejar.
Cardoso foi denunciado como mandante do homicídio por causa de suposta dívida de R$ 10 milhões com a vítima, em razão da compra do frigorífico Boa Vista, em Santa Maria do Herval, em maio de 2018, quando a empresa de Haubert estava em recuperação judicial.
Conforme a denúncia, o catarinense ordenou a morte porque estaria incomodado com insistentes cobranças do ex-dono do negócio. A defesa considera “frágil e baseada em ilações” a tese.
“Essa dívida é discutível e os dois se davam bem. O Cristiano não teria nenhuma vantagem com a morte da vítima, porque qualquer débito ficaria para os herdeiros. Em relação ao cartel, o Cristiano nunca foi suspeito, até porque, quando iniciada a investigação, sequer conhecia ou pensava em adquirir o frigorífico da vítima.”
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Segundo Rodrigues Neto, o próprio MP tinha entendido, durante as investigações, que a vertente do cartel não estava sendo investigada. “Tanto que não foi. Assim, se faz necessária a suspensão urgente do processo para que se apure devidamente os fatos. Por incrível que possa parecer, a defesa está fazendo o trabalho que deveria ser da acusação.”
Conforme a denúncia, Cardoso contratou Silvio Soares das Chagas, 48, que recrutou Jôni André Haubert, 34, e outro homem, não identificado, para a execução. Jôni era primo de segundo grau da vítima.
“Sou inocente e vou provar”, declarou Chagas à reportagem. Jôni, por meio do advogado Fábio Adams, também nega envolvimento. “É absurda a acusação em relação a ele. E tem muita prova que direciona para outras pessoas que tinham motivação para cometer o crime. Durante a instrução do processo, com certeza essas situações serão demonstradas, principalmente uma prova que passou incrivelmente despercebida na investigação”, dispara Adams.
Denúncia anônima tem coincidência bizarras
Empresário da Grande Florianópolis que ostenta amizade com artistas sertanejos de sucesso nacional, Cristiano Cardoso teria entrado para a lista de suspeitos a partir de uma ligação anônima à Polícia que direcionava a ele a articulação do crime.
O telefonema, feito no curso das investigações, reúne coincidências estarrecedoras. O homem que ligou era o então investigado como executor de Haubert, considerado matador do cartel. No contato, disse que era morador do bairro Mathias Velho, em Canoas, e contou uma versão que o excluía do crime.
Usou um cadastro falso de linha telefônica, em nome de uma mulher que fornecia gado ao frigorífico Boa Vista, e acabou sendo descoberto pela própria Polícia como autor da denúncia anônima porque estava com o telefone grampeado, na condição de suspeito da execução. Nas interceptações, teriam sido captadas conversas dele com outras pessoas sobre o contato com a Polícia para despistar a investigação.