AMEAÇA NAS REDES
Adolescente de Novo Hamburgo sofre estupro virtual e mãe desabafa: "A gente quer ver esse pedófilo preso"
Menina de 13 anos enfrenta crise traumática e especialista orienta sobre riscos da exposição em relacionamentos pela Internet
Última atualização: 28/06/2024 06:48
Uma hamburguense de 13 anos, estudiosa e alegre, repentinamente entrou em surto, tentou o suicídio e foi internada em uma clínica psiquiátrica. Ela não conta aos pais o que desencadeou a mudança de comportamento e a crise traumática. Desconversa.
A mãe, uma operadora de caixa de 47 anos, foi investigar e descobriu que a menina sofreu estupro virtual. Registrou o caso na Polícia Civil, onde um inquérito tramita sob sigilo.
“Vou lutar para que quem fez isso com minha filha seja identificado. A gente quer ver esse pedófilo preso. Quantas outras meninas estão sofrendo essa tortura psicológica, silenciosamente, para abusadores da Internet?” O crime, que aconteceu na madrugada de 12 de abril, trouxe sequelas emocionais que a menina e a família tentam superar.
Para a mãe, as respostas estão no celular da filha. “Na madrugada do surto, ela jogou o aparelho com raiva no chão, da sacada do quarto andar, e ele caiu na rampa da garagem do prédio. Mandamos para conserto, mas não ficou bom. E ela tinha excluído as mensagens. Estamos aguardando que seja feita perícia.”
Conteúdo íntimo
A operadora de caixa apurou que a filha se envolveu pelas redes sociais com um homem que se identificava como estudante de 15 anos. Depois de enviar fotos e vídeos íntimos para o criminoso, a adolescente teria sido chantageada para que continuasse a se expor daquela forma, sob ameaça de vazamento do conteúdo. Ou seja, teria virado refém do homem.
A adolescente já recebeu alta hospitalar e retornou à escola. Passa por acompanhamento psiquiátrico e psicológico, sob medicação de uso controlado.
“É uma menina que se iludiu sem discernimento do perigo. Antes disso acontecer, nunca teve qualquer sinal de depressão. Chegava da escola e brincava com o pai dela. É inteligente e sempre tirou boas notas, com elogios dos professores, tanto que os colegas querem fazer trabalho de aula com ela”, comenta a mãe.
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“Tenho medo que volte a acontecer e eu de novo não consiga evitar”
Houve mudança de comportamento?
Mãe - Depois que aconteceu, a gente ficou pensando em algumas situações. Duas semanas antes, começou a andar de calcinha e sutiã dentro de casa. Ela nunca ficava assim. Quando eu perguntava, ela dizia que estava com calor. Como não era frio ainda, a gente acabava deixando. Nos três dias anteriores, não estava se alimentando direito. Parecia ansiosa.
Ficava mais ao celular?
Mãe - A gente nunca proibiu ela de usar o celular. Mas tinha regras. No máximo até 11 horas da noite tinha que estar dormindo, mesmo só estudando à tarde. Ela tinha o hábito de acordar cedo, pelas 7h30. Eu olhava o whats dela para ver se estava on-line.
Ultimamente, estava ficando até mais tarde acordada. Dizia que ficava falando com uma amiga, porque estava sem sono. Eu não sabia que ela tinha Instagram. Isso só fui saber depois do surto, pela melhor amiga dela.
Como foi o surto?
Mãe - Tomou o último comprimido de um remédio forte que o pai dela usa para o coração e começou a andar pelo telhado do prédio. Uma vizinha percebeu que tinha alguém lá em cima e acordou o marido. Ele viu o vulto, percebeu que era a (nome da adolescente) e falou para a esposa.
Chamaram ela pelo nome, mas não parou. Continuou andando e começou a balançar, como se fosse se atirar. Meu vizinho fez uma escada com cadeiras, pela sacada, subiu e chamou de novo. Minha filha nunca diz palavrão, mas naquela vez olhou para ele com ódio e começou a xingá-lo.
Ele foi devagar, para não assustar, e conseguiu pegar ela pelo braço. Pediu para ela sentar. Ela sentou e começou a chorar. Conversaram com ela. Estava com medo de voltar para casa.
Como você ficou sabendo?
Mãe - Eram duas horas da madrugada. Eu e meu marido estávamos dormindo. Quando ela entrou pela porta, nossos cachorros começaram a latir. Minha filha estava no sofá, ensanguentada nos pés, cortados pelas telhas de zinco. Depois vimos que ela tinha jogado o celular dela no chão, pela sacada, antes de subir no telhado. Estava perturbada. Devia estar com muita raiva. Os vizinhos nos relataram o que tinha acontecido.
E o que você fez?
Mãe - Fui conversar com ela. Falou que era por causa da aparência, das espinhas, que sofria bullying no colégio. Que não gostava dos dentes, essas coisas de adolescente. Levei ela à UPA (Unidade de Pronto Atendimento) do Centro, depois à Unimed e foi baixada em uma clínica psiquiátrica em Porto Alegre. Ficou 20 dias internada.
Como você descobriu o verdadeiro motivo?
Mãe - Dois dias depois do surto, a melhor amiga dela me contou tudo. Que minha filha estava conversando com um homem na Internet que queria relações sexuais com ela. Essa colega disse que esse bandido não mostrava o rosto e falou que chegou a ver ele só de cueca nas conversas. Enviava mensagens eróticas.
Foi bem no período que minha filha passou a andar de roupas íntimas em casa. Esse homem dizia ter 15 anos e ser de São Paulo. É um adulto pedófilo se passando por adolescente. Conseguiu conquistar minha filha, uma menina de 13 anos sem noção do perigo, e depois se tornou abusivo com ameaças.
E como ela está?
Mãe - Quando voltou para casa, parecia um robozinho, tadinha, bem dopada. Agora vem reduzindo as doses de medicamentos. Está com medos que não tinha. Antes pegava Uber sozinha para ir aos avós, claro, sempre me avisando quando chegava, mas agora não suporta esperar a van para a escola. Parece que se sente ameaçada. Às vezes, vem um gatilho forte de ansiedade.
Você ainda pergunta a ela sobre o que aconteceu?
Mãe - Ainda perguntamos de vez em quando, e ela muda de assunto, insistindo que foi por bullying. Ela não quer admitir, por medo ou vergonha, porque meu esposo é muito severo quanto a isso. Ela diz a mesma coisa ao psiquiatra.
Quando levei o telefone dela ao conserto, tive que pedir a senha a ela para desbloquear, porque ela tinha trocado. A gente compartilhava a mesma senha nos celulares. Uma usava o da outra, sem problemas. Ela perguntou por que eu queria a senha e falei que era para arrumar. Quando eu disse que estava com a polícia, ela ficou assustada. Sei que está tudo no celular, mas não conseguimos recuperar.
Ela ganhou novo celular?
Mãe - O psiquiatra e a psicóloga pediram para supervisionar o celular. Ela está usando só em casa o meu celular e do meu esposo, para joguinhos, para falar com colegas, e só até as 20h30. É minha única filha. Tenho medo que volte a acontecer e eu de novo não consiga evitar.
A gente providenciou aparelho nos dentes, óculos novos, já que não está se gostando. Sabemos que há várias famílias que sofrem com esse crime virtual. Quando minha filha entrou na clínica, havia outras 19 meninas lá, dos 11 aos 17 anos de idade. Do total, 17 tinham tentado o suicídio. Isso é muito sério.
“É mais frequente do que se imagina”, expõe especialista
Para a psicóloga Renata Guterres, o diálogo em casa, com pais ou responsáveis, é a base tanto para evitar como para auxiliar no tratamento de abusos virtuais. Ela é responsável pela Unidade de Crianças e Adolescentes na Clínica São José, em Porto Alegre, onde a estudante de Novo Hamburgo foi internada.
“É mais frequente do que se imagina. Ao atender pacientes que sofreram esse tipo de violência, a gente vê um sofrimento muito grande, associado ao sentimento de vergonha, de culpa, que afeta a autoestima e a visão de futuro. Muitas meninas tentaram o suicídio ou de alguma forma houve automutilação.”
A psicóloga observa que o ideal é não proibir o acesso às redes sociais. “É muito legal a Internet, onde a gente pode fazer amigos para a vida inteira, mas é claro que há muitas pessoas que estão lá para fazer o mal, como em qualquer lugar. Um diálogo aberto é fundamental, e os pais devem estar atentos a sinais, como alteração no comportamento dos filhos.”
Segundo Renata, quando os pais tomam conhecimento do estupro virtual, reagem com surpresa.
“Pelas experiências que tive, as famílias sempre foram muito parceiras, compreensivas, o que é muito importante. Claro que nenhuma mãe vai querer que a filha tenha se exposto, mas é preciso acolher. A adolescente já está passando por uma situação de extrema vulnerabilidade e não deve ser colocada em sentimento ainda pior com a falta de apoio. Ela precisa contar com a ajuda, sem julgamentos.”
A especialista salienta que o tratamento não tem como mudar o fato, e sim a carga emocional posta em cima dele.
“Muitas vezes a vítima lida com muita culpa, remorsos. Pela terapia, a gente trabalha para que ela tenha uma observação mais compassiva consigo. É possível fazer a construção de uma mente mais saudável depois de um evento como esse. E é claro que, além do tratamento, a família precisa ir atrás das vias legais, procurar a polícia, porque estamos falando de crime.
A lei e a prática nos tribunais
Não há lei no Brasil que tipifica “estupro virtual”. Um projeto tramita no Senado para criar essa modalidade de crime. Na prática, porém, ele já existe. Juízes vêm condenando abusadores da Internet com base na interpretação de mudanças feitas em 2009 na legislação que trata de delitos sexuais.
O texto fala em “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Os termos “grave ameaça” e “ato libidinoso” permitiram que o estupro virtual passasse a ser considerado e punido nos tribunais.
Quando a vítima é menor de 14 anos, configura o estupro de vulnerável, que prevê pena de oito a 15 anos de prisão. Se resulta em morte, vai de 12 a 30 anos.
Onde procurar ajuda?
O Centro de Valorização da Vida (CVV) realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, e-mail e chat 24 horas por dia.
O CVV tem cerca de 3 mil voluntários e atende aproximadamente 8 mil ligações por dia.
Telefone do CVV: 188