Neste ano que teve tantas tragédias, reviravoltas e superações e no qual aconteceram tantas coisas, há um detalhe pequeno porém curioso que vale uma reflexão. É uma daquelas coisas que acontecem em segundo plano mas que, como a cor de fundo de uma tela, ajudam a compreender toda a pintura.
Muita gente deve ter visto algum meme do viral Symphony. Trata-se de uma daquelas epidemias da Internet que ganham a adesão de milhões de usuários. Neste caso aqui, havia humor com uma contradição de ideias. O meme consistia em alguma imagem com golfinhos e arco-íris (não sempre a mesma) e o estribilho da música “Symphony”, do grupo Clean Bandit, que é uma melodia moderna com uma pegada fofa.
Já a parte textual, que mudava de um meme para outro, era a descrição de alguma atrocidade, truculência ou qualquer coisa negativa ou triste. No meme original, o autor escreveu “Estou deprimido”. Entre as versões posteriores criadas pelos usuários, geralmente jovens, estavam desde xingamentos contra provas de matemática até maldições de todos os tipos.
Só no TikTok, a febre do Symphony passou de 1 bilhão de visualizações, bem acima de trending topics políticos ou econômicos na ordem do dia. Neste ano de queimadas, enchentes, guerras, invasões e atrocidades contra crianças, mulheres e população civil, uma parte razoável do planeta estava rindo com uma piada de golfinhos.
Não se apresse em minimizar a importância do assunto. É preciso lembrar que o meme Symphony, assim como outros similares, faz parte do modo de pensar, à sua maneira muito rico, das chamadas gerações alpha e Z, a garotada nativa do século 21. O meio digital é uma característica básica, assim como o componente social que se nota no compartilhamento e na massificação de acessos. Mas tem muito mais do que isso.
O meme é uma forma pela qual muitos jovens metabolizaram as contradições do mundinho caótico que a gente deixou pra eles. Enquanto nós ficamos estupefatos com a estufa global provocada por anos e anos da nossa própria poluição, os guris resumem nosso lodaçal de paradoxos numa ironia audiovisual. Distribuem uma figura fofinha e escrevem por cima “Maldito clima desgraçado”.
Se você acha que a piada nos memes é uma forma de fugir da realidade, é porque não entendeu verdadeiramente a nova geração. As pesquisas apontam que meio ambiente, por exemplo, está entre as prioridades deles. Muitos são militantes de causas ecológicas. Se ao menos tivéssemos mais gente assim décadas atrás, não estaríamos nesse mato incendiado sem cachorro. Talvez a vaca não tivesse ido para o brejo das inundações que fizeram tantos mortos e traumatizaram o Rio Grande do Sul.
Enquanto a gente espera que a nova geração assuma o poder para remendar o que ainda for possível do mundo que ajudamos a estragar, podemos ir pensando em fazer nosso próprio meme para resumir o ano. Já que coletivamente ainda não conseguimos resolver os problemas que devíamos, vamos tentar pelo menos criar uma figurinha razoável para postar na trend da hora e garantir uns likes. Estamos precisando de alguns desses.
Anote aí e ajude a lembrar. Tivemos a enchente trágica no RS. Destruição. Muitas perdas. Queimadas históricas no resto do País. Crimes horríveis com crianças inocentes como vítimas. Abusos por parte de autoridades. Guerras, ações terroristas. Extremismo político e pancadaria em debates eleitorais. Violência em geral. O noticiário quase sempre dá vontade de chorar.
Já comece a procurar figurinhas de fadas, flores, joaninhas, unicórnios e os cogumelos mais coloridos que puder encontrar. Mano, vamos precisar de MUITO mais do que golfinhos e arco-íris.
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