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Outubro Rosa

Os nós de Rosinha

A professora, pesquisadora e antropóloga urbana Margarete Fagundes Nunes escreve inspirada numa história real que acompanhou e ainda acompanha

Publicado em: 18/10/2023 às 10h:42 Última atualização: 25/10/2023 às 16h:15
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Tudo nela foi precoce: a curiosidade, a sagacidade, a maturidade, a maternidade. E agora isto, um nódulo na mama esquerda, invasivo e silencioso, aos 30 e poucos anos de idade.

Rosinha, que sempre teve fama de menina forte, foi mãe aos 17 anos e aprendeu a conciliar, ainda na adolescência, multitarefas: o trabalho fora, a lida da casa, o cuidado do filho, a administração financeira da família, a atenção ao marido, o estudo.

E, agora, estes pequenos nós: um na mama e outro – fruto da ansiedade – preso na garganta. Uma angústia lhe invadiu a alma. Justamente agora, já formada, filho criado, vida organizada. Injusto.
Primeiro veio a descoberta do nódulo pelo autoexame das mamas. Depois vieram a mamografia e a ecografia que confirmaram o nódulo e as microcalcificações com a temerosa e intrigante classificação Birads 4. Em seguida, Rosinha recebeu a avaliação médica de que seria impossível a biópsia por punção porque o nódulo – aquele maldito nódulo – estava duro, calcificado, rígido.

Quando Rosinha soube que iria diretamente para a cirurgia, uma névoa de tristeza e desânimo lhe acometeu por alguns instantes. Cabisbaixa, o olhar fixo na janela, conversou consigo mesma:
Mulher passa por cada perrengue nesta vida.

Mamografia por agulhamento, fios pela mama, dor, cirurgia. Depois da angústia da espera, o diagnóstico e o encaminhamento para remoção da mama. O pequeno nó – o nódulo – não estava só. Outros nós pequeninos arrodeavam o nó principal como se formassem uma constelação. Rosinha fixou-se nesta imagem de constelação para buscar forças. Era preciso constelar com as estrelas, com o universo, com o cosmos para destruir os nós desaforados, salientes, invasivos, espaçosos, intrusos, estrangeiros. Haveria por bem de expulsá-los, todos, um por um, e de uma só vez.

Em menos de 45 dias um diagnóstico de câncer e duas cirurgias. A última, de remoção da mama. Não deu tempo de pensar, compreender, assimilar. Era uma avalanche. Todas as pessoas diziam a mesma coisa:
Coragem, Rosinha!

Completamente desnecessária, a frase. Não lhe restava mais nada a não ser coragem. E Rosinha, fragilizada, mas travestida de mulher coragem, “fez das tripas coração” para se preparar física e psicologicamente para a remoção da mama.

Sabe-se lá por que cargas d’água apareceram os pequenos nós. A única coisa que Rosinha sabe é que às vezes é preciso desenrolar os nós para costurar a vida. E ela segue costurando, tratando das cicatrizes, enquanto aguarda, senão serena, aos menos passiva e pacientemente, a reconstituição da mama e as próximas avaliações da oncologia.

Rosinha levou vários dias para se olhar no espelho. Não lhe cabia nos olhos, tampouco no coração, a imagem nua do seu corpo órfão de uma das mamas. A possibilidade da imagem real, sem representação, crua, sem mediação nenhuma, dilacerava-lhe o coração. Passou por mais essa prova. Teve um dia que ela se olhou furtiva e ligeiramente. Foi quando descobriu que não estava apenas travestida de coragem, era realmente uma mulher forte e corajosa e sentiu vontade de ajudar outras mulheres que porventura estivessem passando pela mesma experiência.

Rosinha teve uma ideia. Toda a vez que o peito apertasse ou aquele nó na garganta teimasse em retornar, iria lembrar da imagem terna do marido e companheiro de tantos anos: -“Amada, nós vamos reconstituir uma mama tão ou mais bonita quanto a anterior.” Sorriu baixinho. São tantos e tão diversos os nós que nos compõem. Alguns pequenos, que se transformam em nódulos e, por vezes, nos atrapalham, e outros Nós tão grandes que não queremos desatar. E Rosinha sabe quais são os Nós que se transformam em laços e que dão suporte à vida. 

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