Opinião

Jesus não tem dentes no País dos banguelas

30 anos após última apresentação conjunta, Titãs retornam ao Rio Grande do Sul para festejar os 40 anos da banda

Publicado em: 05/05/2023 17:57
Última atualização: 06/03/2024 10:13

Várias bandas marcaram os anos 1980, quando o rock brazuca explodiu nas revistas, rádios e TV e tomou de assalto todos os cantos do País. A indústria fonográfica brasileira vivia um momento ímpar de milhões e milhões de discos vendidos com hits pops, algo que só seria superado depois pela onda sertaneja dos anos 1990. Bom, mas aí é outro papo...

Pois, eis que neste sábado (show à noite, que era para ser no Beira-Rio anfiteatro, mas, apesar de centenas de reclamações, foi para o "descampado" da Fiergs...) os gaúchos poderão rever na capital a mais eclética banda de rock dos anos 1980/90: Titãs, que desde 1992, com a saída de Arnaldo Antunes, não se reunia oficialmente para uma turnê. Aliás, foi a partir da saída de Arnaldo que a banda começou um processo de saídas que resultou a reformulação da banda até chegar a um trio nos últimos anos. 

Mas agora é de novo Tudo ao Mesmo Tempo Agora, aliás, título do último disco deles  juntos lançado em 1991. Arnaldo Antunes, Branco Mello (vivo, como ele diz, após um tumor na faringe que debilitou sua voz), Charles Gavin, Nando Reis, Paulo Miklos, Sérgio Britto e Tony Bellotto estarão no palco com o reforço de Liminha, músico e produtor musical que já integrou a banda temporariamente e já foi o dito "nono elemento". Ele ficou incumbido de fazer a guitarra do saudoso Marcelo Fromer, que faleceu em 2001 após um atropelamento. 

Titãs 2023 Foto: Divulgação
Titãs nos anos 1980 Foto: Divulgação

Eles revivem, principalmente, a fase mais explosiva da banda, formada pelos discos Cabeça Dinossauro (lançado em 1986), Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas (1987) e Õ Blésq Blom (1989), mas também trazem canções de outros rebentos de uma carreira que atravessa quatro décadas. A qualidade das letras e das melodias era e é algo absurdamente incrível para a época e a atualidade  dos temas se estende por todos estes anos. 

É uma catarse cantar aos berros "polícia para quem precisa", "porque aqui na face da terra só bicho escroto é que vai ter", "diversão, é solução sim" ou "quem quer manter a ordem? Quem quer criar desordem?", só para citar alguns dos refrões que se tornaram clássicos e ainda reverberam hoje. Família, Igreja, Comida, Sonífera Ilha, Televisão, Lugar Nenhum, Marvin, Go Back, Querem Meu Sangue, Pra Dizer Adeus, Flores, Não Vou me Adaptar, Miséria, Homem Primata, Epitáfio e por aí vai... São mais de 30 músicas neste (re)Encontro.

Entrevistei a banda, ainda octeto, no final dos anos 1980, para um show histórico na Sociedade Ginástica de Novo Hamburgo. No Jornal NH, um caderno de oito páginas comemorava a passagem da banda no Vale do Sinos, que nesta época era caminho obrigatório para o rock nacional.

Na época, a gente se admirava e se perguntava como o grupo funcionava na hora de compor estas canções sensacionais. Afinal, oito cabeças com uma criatividade explosiva, nevrálgica e urgente. Quando questionei sobre o assunto, a resposta se baseava na amizade e respeito que os oito tinham um pelo outro. E também no resultado que aquela salada de estilos (o Titãs ia do pop ao punk e do reggae à MPB em um estalo de dedos) e pensamentos críticos era capaz de proporcionar (nada escapava a eles, da religião a política, da família a bichos).     

Existem curiosidades nos Titãs, que já foram Titãs do Iê-Iê no princípio, quando ainda tinham na bateria André Jung (que acabaria no Ira! após gravar o primeiro LP com os Titãs e ser substituído por Charles Gavin, que chegou a ser dos embriões  do Ira! e do RPM) e o guitarrista Ciro Pessoa (falecido em 2020), que saiu da banda por "diferenças criativas" e de rumo antes mesmo do primeiro disco. São aquelas notas de página que , para quem curte a história do rock nacional, se tornam dignas de registro.  

Este reencontro titânico pode até parecer mercadológico (afinal, são ingressos esgotados para todos shows), mas a verdade é que ele está envolto em uma questão afetiva que vai desde os membros do grupo (todos já sessentões) ao mais velho e mais novo dos fãs. Ver estes - desculpe o trocadilho como o nome de outra banda - heróis da resistência no palco é ver que ainda há vida inteligente pulsando em nossa música, em meio a hits de bundas rebolantes, cornos angustiados ou vingativos e sexualização banalizada.

Sim, os Titãs chocam, mas não é gratuitamente. É para você pensar, refletir sobre questões sociais, como em Miséria que lembra que "índio, mulato, preto, branco, miséria é miséria em qualquer canto".        

Ah, e sobre o título: reza a lenda que a música surgiu da expressão utilizada por uma amiga do Nando Reis (que é quem canta a letra de uma frase só). Ela teria se referido ao Brasil, devido à pobreza, como um país de banguelas. Então, se o povo é banguela, Jesus também é.

E trinta e cinco anos depois, seguimos em uma país cada vez mais banguela, seja de dentes, de ética e moral.

Mas, no fim de tudo, a gente vê que "avida até parece uma festa" e "em certas horas isso é o que nos resta". E que isso seja festejado ao som fenomenal de Titãs, com tudo e todos ao mesmo tempo agora.

Vida longa aos que derrubaram a monotonia dos deuses decadentes de seu Olimpo insosso.

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