Crônica
Evoluir a óbito
Última atualização: 16/07/2024 21:12
Ao longo deste ano meio distópico, você já deve ter lido essa expressão algumas vezes no noticiário, que de uns meses para cá tem ficado cada vez mais parecido com um relatório de medicina forense. Fulano evoluiu a óbito. Isso quer dizer que morreu. Não dá para deixar de comentar que para nós, leigos, há uma aparente contradição em classificar como evolução qualquer situação que culmine em óbito. Compreende-se, claro, que é um jargão técnico. Mas o truque consiste, justamente, em entender como ele veio parar nos nossos ouvidos.
“Evoluir a óbito” segue uma lógica linguística que faz todo o sentido dentro do mundo dos infectologistas e praticantes de medicina clínica. Uma doença – ou patologia, já que estamos falando de nomenclatura –, do ponto de vista de um profissional que a estude ou analise para combatê-la, consiste numa progressão contínua. Tem princípio, meio e fim. O fim, no caso, pode ser a expulsão da doença pelo organismo ou, inversamente, a destruição do organismo pela doença. Preferencialmente, óbvio, não esta última. Em ambos os casos, trata-se de uma progressão. Daí o vocabulário pragmático dos médicos e enfermeiros, quando conversam entre si ou redigem relatórios. Uma ferida pode evoluir para uma inflamação, uma inflamação pode evoluir para infecção, infecção pode evoluir para septicemia e septicemia pode evoluir para óbito. A terminologia não tem nada a ver com insensibilidade. Ela faz parte da objetividade de quando não há tempo a perder com eufemismos.
Se você for um profissional da saúde, deve ter lido até aqui xingando mentalmente o cronista, porque deve estar fazendo o compreensível e justo raciocínio de que não cabe qualquer crítica ou leitura negativa em relação a uma expressão que, antes de mais nada, é uma questão técnica e cotidiana dos hospitais. Fique tranquilo, esta não é uma crítica aos médicos ou enfermeiros, mas ao jornalismo – ou, mais precisamente, à ausência dele.
Veja só, assim como combater doenças é tarefa dos profissionais de saúde, costumava ser atribuição dos jornalistas intermediar uma série de campos técnicos e científicos e traduzi-los para o grande público. Trata-se de verter para a língua comum, acessível aos leigos, o conteúdo principal e mais relevante que esteja sendo tratado nos assuntos mais prementes. Sejam descobertas científicas, acontecimentos médicos, elucubrações econômicas, obras de engenharia ou o que quer que seja.
O jornalismo não está na linha de frente da mesma forma que os heroicos agentes de saúde que enfrentam a pandemia, ou os cientistas que pesquisam as vacinas que ajudarão o mundo nesta hora difícil. Mas a nossa missão consiste em facilitar a compreensão mais ampla, contextualizar os acontecimentos, traduzir o jargão. Como há nobreza em qualquer profissão, nosso quinhão é pavimentar as bases do entendimento. Fazemos nossa pequena parte, uma história de cada vez, na busca das bases para um diálogo universal. Idealmente, é por intermédio deste diálogo possível que poderemos nos inteirar dos diferentes assuntos importantes e, com alguma sorte e boa vontade, progredir, ou seja, evoluir sem ser a óbito.
Há, porém, uma complicação, que é exatamente o motivo pelo qual você leu tantas vezes por aí a expressão “evoluir a óbito”. Muita gente – nem sempre ingenuamente – confunde jornalismo com informação. Jornalistas lidam com informação, mas como minério bruto a ser trabalhado, como algo sobre o qual se aplica reflexão, trabalho de checagem e bom senso. Se não fosse assim, todo poste com câmeras da EPTC seria um repórter. Infelizmente, por uma série de circunstâncias, acabou-se por chegar em uma situação na qual a informação é apresentada como sinônimo de jornalismo. É o que tentam fazer os empresários ansiosos por automatizar o processo de apuração das notícias, assim como os populistas que esperam convencer o eleitor de que vão se dirigir a eles sem mediação. Também alguns blogueiros iniciantes que passam a despejar informações das fontes diretamente sobre seus leitores sem juízo crítico ou contextualização. Todas essas instâncias, infelizmente, acabam enfraquecendo a imprensa, que tendo que se adequar a este ambiente informacional tende a se tornar menos crítica, mais imediatista e, em última análise, menos útil para a sociedade.
Por isso você leu tantas vezes que fulano ou beltrano evoluiu a óbito. Porque jovens repórteres, confrontados com exigências cada vez mais prementes de tempo e produtividade, às vezes podem inserir na matéria a íntegra literal do que ouviram das equipes médicas, isso quando não fizerem um copiar e colar direto do boletim on-line do hospital, já que nem tempo ou recursos para entrevistar a fonte podem ter tido. Tudo isso, lamentavelmente, não é jornalismo, porque não ajuda a esclarecer o leitor. Pelo contrário, só aumenta o ruído de fundo. Com tanta desinformação circulando, a imprensa vira presa fácil de maus políticos que tendem a classificar de “fake news” qualquer coisa que não aprovem. Você pode encontrar dezenas de casos para substituir o singelo exemplo do “evoluir a óbito”. Do ozônio e da cloroquina ao imposto sobre livros, em muitos deles o tecniquês é tão mal traduzido quanto a agenda ideológica por trás dele.
Lendo tudo isso por aí, você pode pensar onde anda o bom jornalismo. Palavra de quem passou a vida garimpando notícias, ele ainda existe, embora possa andar difícil de achar nestes últimos tempos. Tomara que não tenha evoluído a óbito.
Ao longo deste ano meio distópico, você já deve ter lido essa expressão algumas vezes no noticiário, que de uns meses para cá tem ficado cada vez mais parecido com um relatório de medicina forense. Fulano evoluiu a óbito. Isso quer dizer que morreu. Não dá para deixar de comentar que para nós, leigos, há uma aparente contradição em classificar como evolução qualquer situação que culmine em óbito. Compreende-se, claro, que é um jargão técnico. Mas o truque consiste, justamente, em entender como ele veio parar nos nossos ouvidos.
“Evoluir a óbito” segue uma lógica linguística que faz todo o sentido dentro do mundo dos infectologistas e praticantes de medicina clínica. Uma doença – ou patologia, já que estamos falando de nomenclatura –, do ponto de vista de um profissional que a estude ou analise para combatê-la, consiste numa progressão contínua. Tem princípio, meio e fim. O fim, no caso, pode ser a expulsão da doença pelo organismo ou, inversamente, a destruição do organismo pela doença. Preferencialmente, óbvio, não esta última. Em ambos os casos, trata-se de uma progressão. Daí o vocabulário pragmático dos médicos e enfermeiros, quando conversam entre si ou redigem relatórios. Uma ferida pode evoluir para uma inflamação, uma inflamação pode evoluir para infecção, infecção pode evoluir para septicemia e septicemia pode evoluir para óbito. A terminologia não tem nada a ver com insensibilidade. Ela faz parte da objetividade de quando não há tempo a perder com eufemismos.
Se você for um profissional da saúde, deve ter lido até aqui xingando mentalmente o cronista, porque deve estar fazendo o compreensível e justo raciocínio de que não cabe qualquer crítica ou leitura negativa em relação a uma expressão que, antes de mais nada, é uma questão técnica e cotidiana dos hospitais. Fique tranquilo, esta não é uma crítica aos médicos ou enfermeiros, mas ao jornalismo – ou, mais precisamente, à ausência dele.
Veja só, assim como combater doenças é tarefa dos profissionais de saúde, costumava ser atribuição dos jornalistas intermediar uma série de campos técnicos e científicos e traduzi-los para o grande público. Trata-se de verter para a língua comum, acessível aos leigos, o conteúdo principal e mais relevante que esteja sendo tratado nos assuntos mais prementes. Sejam descobertas científicas, acontecimentos médicos, elucubrações econômicas, obras de engenharia ou o que quer que seja.
O jornalismo não está na linha de frente da mesma forma que os heroicos agentes de saúde que enfrentam a pandemia, ou os cientistas que pesquisam as vacinas que ajudarão o mundo nesta hora difícil. Mas a nossa missão consiste em facilitar a compreensão mais ampla, contextualizar os acontecimentos, traduzir o jargão. Como há nobreza em qualquer profissão, nosso quinhão é pavimentar as bases do entendimento. Fazemos nossa pequena parte, uma história de cada vez, na busca das bases para um diálogo universal. Idealmente, é por intermédio deste diálogo possível que poderemos nos inteirar dos diferentes assuntos importantes e, com alguma sorte e boa vontade, progredir, ou seja, evoluir sem ser a óbito.
Há, porém, uma complicação, que é exatamente o motivo pelo qual você leu tantas vezes por aí a expressão “evoluir a óbito”. Muita gente – nem sempre ingenuamente – confunde jornalismo com informação. Jornalistas lidam com informação, mas como minério bruto a ser trabalhado, como algo sobre o qual se aplica reflexão, trabalho de checagem e bom senso. Se não fosse assim, todo poste com câmeras da EPTC seria um repórter. Infelizmente, por uma série de circunstâncias, acabou-se por chegar em uma situação na qual a informação é apresentada como sinônimo de jornalismo. É o que tentam fazer os empresários ansiosos por automatizar o processo de apuração das notícias, assim como os populistas que esperam convencer o eleitor de que vão se dirigir a eles sem mediação. Também alguns blogueiros iniciantes que passam a despejar informações das fontes diretamente sobre seus leitores sem juízo crítico ou contextualização. Todas essas instâncias, infelizmente, acabam enfraquecendo a imprensa, que tendo que se adequar a este ambiente informacional tende a se tornar menos crítica, mais imediatista e, em última análise, menos útil para a sociedade.
Por isso você leu tantas vezes que fulano ou beltrano evoluiu a óbito. Porque jovens repórteres, confrontados com exigências cada vez mais prementes de tempo e produtividade, às vezes podem inserir na matéria a íntegra literal do que ouviram das equipes médicas, isso quando não fizerem um copiar e colar direto do boletim on-line do hospital, já que nem tempo ou recursos para entrevistar a fonte podem ter tido. Tudo isso, lamentavelmente, não é jornalismo, porque não ajuda a esclarecer o leitor. Pelo contrário, só aumenta o ruído de fundo. Com tanta desinformação circulando, a imprensa vira presa fácil de maus políticos que tendem a classificar de “fake news” qualquer coisa que não aprovem. Você pode encontrar dezenas de casos para substituir o singelo exemplo do “evoluir a óbito”. Do ozônio e da cloroquina ao imposto sobre livros, em muitos deles o tecniquês é tão mal traduzido quanto a agenda ideológica por trás dele.
Lendo tudo isso por aí, você pode pensar onde anda o bom jornalismo. Palavra de quem passou a vida garimpando notícias, ele ainda existe, embora possa andar difícil de achar nestes últimos tempos. Tomara que não tenha evoluído a óbito.
“Evoluir a óbito” segue uma lógica linguística que faz todo o sentido dentro do mundo dos infectologistas e praticantes de medicina clínica. Uma doença – ou patologia, já que estamos falando de nomenclatura –, do ponto de vista de um profissional que a estude ou analise para combatê-la, consiste numa progressão contínua. Tem princípio, meio e fim. O fim, no caso, pode ser a expulsão da doença pelo organismo ou, inversamente, a destruição do organismo pela doença. Preferencialmente, óbvio, não esta última. Em ambos os casos, trata-se de uma progressão. Daí o vocabulário pragmático dos médicos e enfermeiros, quando conversam entre si ou redigem relatórios. Uma ferida pode evoluir para uma inflamação, uma inflamação pode evoluir para infecção, infecção pode evoluir para septicemia e septicemia pode evoluir para óbito. A terminologia não tem nada a ver com insensibilidade. Ela faz parte da objetividade de quando não há tempo a perder com eufemismos.