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Opinião

Dez anos depois, seguimos arriscando vidas

Passada uma década da tragédia da boate Kiss, leis de segurança que surgiram já foram afrouxadas, assim como alvarás e fiscalizações. É a prova de que se vê o futuro repetir o passado...

Guilherme Schmidt
Publicado em: 27/01/2023 às 16h:48
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O domingo de 27 de janeiro de 2013 nunca será e nunca deverá ser esquecido, seja em Santa Maria ou por nós, gaúchos e brasileiros, ou mesmo pelo mundo. O incêndio na Boate Kiss é o trágico resultado do que a negligência e a imprudência podem causar quando se tem vidas envolvidas em qualquer situação.

As 235 mortes só naquele domingo e as 7 ocorridas nos dias e semanas seguintes à tragédia, sem falar nas sequelas para os mais de 600 feridos e as outras centenas de pessoas que sobreviveram àquela noite de fogo, fumaça e desespero, são uma dura lição do descaso da nossa sociedade.

Uma lição que deveria servir para que os mesmos ou semelhantes erros não fossem repetidos. Só que, constante e negligentemente, a sociedade e, principalmente, as autoridades governamentais parecem não aprender. “Foi uma fatalidade”, ponderam alguns.  

Incapacidade e impunidade

Passados dez anos o que se vê é que as cobranças de responsabilidade na segurança de pessoas levantadas após a tragédia da boate Kiss tiveram seus efeitos abrandados. Bem diferente da dor de todos que revivem dia a dia a perda de amigos e familiares, principalmente filhos e filhas, naquela fatídica e evitável trágica madrugada.

As leis de segurança na prevenção contra incêndios que surgiram após o incêndio na Kiss, seja no âmbito federal ou estadual, parecem ter sido uma literal cortina de fumaça – foram rígidas logo após a tragédia, mas sem eficaz manutenção da cobrança com o passar dos anos – escondendo a responsabilidade da fiscalização ineficaz dos órgãos públicos.

Órgãos públicos que, aliás, apesar da obrigação de zelar pelo cumprimento das lei acabaram isentados de ir ao banco dos réus de um julgamento que após uma década ainda não teve desfecho, comprovando que impunidade e descaso são as marcas do nosso País. E pior: arrastando a dor insuperável das famílias e amigos das vítimas da tragédia em ter, pelo menos, um desenlace jurídico do caso, já que as perdas jamais serão sanadas.

“Progresso” x segurança

A cobrança dos tão discutidos PPCIs (Planos de Prevenção e Proteção Contra Incêndios), que nos anos logo após ao Caso Kiss eram fortes, foram se diluindo em meio à incapacidade de se fiscalizar e também pela questão econômica de impedir novos empreendimentos. Para não travar o progresso econômico, governantes e parlamentares afrouxaram, ano a ano, a cobrança das leis.

As exigências de segurança existem, sim, como uso de materiais apropriados no isolamento acústico e construção do prédio, identificação de lotação máxima do empreendimento, extintores, saídas de emergência…

O problema é que o afrouxamento/facilitação na concessão de alvarás para abertura de empreendimentos acaba deixando de lado a exigência de vistorias de órgãos competentes. E, assim, tudo fica na confiança de que o empreendedor está respeitando estas exigências.   

Certamente as pessoas envolvidas na tragédia da Boate Kiss não desconfiavam da falta de requisitos obrigatórios à prevenção contra incêndios no local. Ainda não tínhamos o tal de PPCI destes anos pós-Kiss, mas já havia um regramento de segurança contra incêndios exigido. Assim como recomendações técnicas de uso correto de materiais em construções.

Além disso, o uso do tal sinalizador (artifício inflamável utilizado pelo integrante da banda que tocava na noite e que deu início à tragédia) já havia sido condenado nos estádios de futebol, ou seja, em espaço abertos, sendo proibido desde 2003 no Estatuto do Torcedor (apesar de também aí a fiscalização ser cega, muitas vezes). Usar ele em local fechado era (e é), no mínimo, uma imprudência descabida e certamente desnecessária em um show musical. 

A falta de ação

Acrescente-se a tudo isso a falta de empatia e capacidade de ver em outras tragédias a possibilidade de que isso pudesse ocorrer conosco também. O velho problema de não aprendermos com os erros do passado.

Por exemplo: antes do incêndio da Boate Kiss, em dezembro de 2004, em Buenos Aires, um caso praticamente igual, com mais de 190 mortos e cerca de 1,5 mil feridos, ocorreu em uma casa noturna argentina. A causa do incêndio: uso de fogo de artifício durante um show musical no interior da edificação que teria inflamado o material de acabamento do teto. Problemas nas saídas de emergência e mortes causadas principalmente por inalação de fumaça (vale dizer que lá o julgamento ocorreu em até 5 anos após o ocorrido, mas que em 20 anos teve vários recursos e pedidos de liberdade aos condenados a até 20 anos de prisão).

A notícia da tragédia argentina foi divulgada no mundo inteiro e chocou a todos. Ela poderia ter servido de exemplo para medidas inclusive aqui no Brasil. Mas aí muitos devem ter pensado: “uma fatalidade com os argentinos; nunca deve acontecer aqui”. Talvez este seja o pensamento de muitos passados estes dez anos da tragédia na Kiss. “Foi uma fatalidade; nunca mais aconteceu nada parecido”…

Ignorância

E, assim, vamos deixando a negligência tomar conta do cenário até que um novo caso assombre e traga indignação a todos. Vamos novamente pedir Justiça e ela será, literalmente, tardia, porque ela já deveria ter funcionado antes e foi empurrada nos trâmites das nossas leis morosas e muitas vezes ineficazes.  

Seguimos arriscando vidas, apesar daquele domingo que assombra muitas pessoas e que deveria assombrar a todos, pois, da maneira negligente como ainda tratamos do assunto segurança em locais com aglomeração, certamente veremos esta roleta russa causar uma nova tragédia. Imprudentemente. Irresponsavelmente. Ignorantemente, lembrando uma fala durante a pandemia do governador Eduardo Leite: “ignorante porque ignora o que está acontecendo”. No caso, pelo que pode acontecer…

Para encerrar, uma citação da música O Tempo Não Para, de Cazuza e Arnaldo Brandão: “eu vejo o futuro repetir o passado”… infelizmente.

 

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