Opinião
Crianças em um mundo doente
Mortes incompreensíveis ocorridas nos últimos tempos, a maioria tendo mães como as acusadas, angustiam e acendem um alerta gigantesco sobre o declínio da saúde mental
Última atualização: 17/10/2024 23:24
Kerollyn Souza Ferreira, 9 anos, morta e com corpo descartado em um contêiner de lixo em Guaíba, no dia 9 de agosto. Anna Pilar Cabrera, 7 anos, morta a facadas no condomínio onde morava, em Novo Hamburgo, também em 9 de agosto. Manoela e Antonia Pereira, irmãs gêmeas, 6 anos, mortas (supostamente por envenenamento) em Igrejinha, respectivamente, nos dias 7 e 15 de outubro. Endrick, recém-nascido, arrancado do útero da mãe que foi morta por uma mulher que queria roubar o bebê em Porto Alegre, no dia 14 de outubro.
A sequência macabra de recentes assassinatos de crianças no Rio Grande do Sul assusta, revolta, desorienta.
E se torna ainda mais horrível quando se vê que as principais acusadas nos casos são mães. Pessoas que deveriam ser a primeira e mais amorosa linha de defesa das crianças.
Dados do Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil, estudo divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), apresentados em agosto deste ano em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado brasileiro, são chocantes: entre 2021 e 2023, o Brasil registrou morte violenta intencional de pelo menos 1.272 crianças de 0 até 14 anos (legalmente a partir de 12 já seria adolescente, é verdade, mas o estudo não faz esta distinção). E estes números são crescentes de um ano para outro.
É uma média de uma criança morta por dia. No caso de 0 a 9 anos, que são crianças ainda mais vulneráveis, uma morte a cada 3 dias, sendo a metade delas no próprio lar. As causas principais são homicídio e lesão corporal seguida de morte. É o grupo no qual entram a maioria das vítimas listadas acima.
As investigações estão em andamento nos casos. Mas nos casos das meninas, com idades entre 6 e 9 anos, a suspeita principal de causar a morte são as mães. Motivos? Segundo as apurações iniciais, pelo menos dois casos tiveram algum tipo de relação com vingança ou raiva. Em todos a saúde mental (a falta dela, no caso) das mães foi colocada como ingrediente que resultou nas mortes.
E é aí que chegamos à conclusão que o nosso mundo está doente, muito doente.
Quando nossas crianças, indefesas e frágeis, estão à mercê de adultos doentes, vemos que há uma clara deterioração da nossa sociedade. Alguns dizem que a pandemia piorou isso; e, depois, as perdas dramáticas das cheias de 2023 e, ainda mais, as de maio deste ano. Sim, podemos dizer que estes momentos afetaram nossa saúde em diversos aspectos.
Mas não dá para aceitar que nossas crianças paguem por isso. Que paguem pela insanidade dos adultos, pela perda de esperança, ou, pior, por relações conjugais mal resolvidas. Não dá para aceitar que crianças sejam vítimas da crueldade dos adultos, ainda mais de suas mães e pais.
Há alguns dias, comentei na redação do jornal de que nos anos 1980, quando comecei no jornal, uma morte violenta era algo fora do normal. Virava até manchete principal da capa de um jornal impresso. Mas isso foi mudando, porque as mortes violentas passaram a se tornar cada vez mais "comuns", principalmente nos últimos anos. Uma capa de impresso se transformaria num macabro obituário se cada morte fosse destacada.
Os sites de veículos de comunicação e as redes de TV e rádio, por exemplo, acumulam quase que diariamente notícias de violência, seja mundo afora ou mesmo aqui na nossa região, perto da gente. Tudo fruto de um mundo cada vez mais violento. Não se trata de buscar "cliques", mas de retratar a crescente onda de insanidade que toma conta de nossos dias, de nossas comunidades.
Só que não podemos mais contabilizar estas mortes hediondas como "mais uma tragédia".
Crianças não podem ser descartáveis ou ameaçadas. Elas têm que ser protegidas e, se necessário, inclusive, dos pais e da própria família.
Por isso temos que estar atentos a crianças que são maltratadas. Das surras descabidas e dos xingamentos insanos. Não se trata de uma "palmada". De um "xingão". É violência que tem consequências na cabeça de uma criança.
É descabido dizer que ela mereceu apanhar porque é "uma peste". Se uma criança se comporta mal a culpa não é dela, mas do ambiente no qual ela vive, e os exemplos aos quais ela é submetida, normalmente dos pais ou do meio no qual os pais estão inserindo ou deixando seus filhos.
Educação não se dá na base da violência, da intolerância.
É preciso proteger as crianças, dar carinho, caminhos para ela seguir de forma sã. Se a família apresenta sinais de insanidade mental é preciso tirar a criança deste ambiente. Não é justo ela ser vítima de um lar tóxico.
Sempre penso: para se dirigir um veículo a gente faz tantos testes e precisa de habilitação, valendo o mesmo para uma profissão. Mas para ser pai ou mãe não há nada de testes. Qualquer um pode.
Não que esteja sugerindo uma "habilitação para pais", mas as crianças, definitivamente, não podem ficar nas mãos de quem não está apto para cuidar de uma vida frágil e que necessita de amor e cuidados para crescer sã.
Mas vivemos em um mundo doente, cada vez mais doente.
Cada criança morta violentamente é um degrau abaixo na nossa condição de sociedade civilizada e sã.
É preciso urgentemente um remédio para que as crianças não sejam vítimas inocentes desta doença que é a violência desenfreada, cruel.
É nossa obrigação, como sociedade, proteger as crianças. Seja moralmente ou legalmente. Enfim, de todas formas e maneiras possíveis.
Se falharmos nisso, faremos parte desta doença que corrói a sanidade de qualquer pessoa racional. E, tragicamente, nossas crianças serão vítimas desta cruel realidade.
A sequência macabra de recentes assassinatos de crianças no Rio Grande do Sul assusta, revolta, desorienta.
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A sequência macabra de recentes assassinatos de crianças no Rio Grande do Sul assusta, revolta, desorienta.