Opinião
A Venezuela, a esquerda e a direita
Uma eleição venezuelana cercada de polêmicas demonstra a linha tênue entre a ética e a moral quando se fala de democracia e ditadura
Última atualização: 04/08/2024 21:59
A semana foi marcada por discussões sobre a (auto)proclamação da vitória do presidente Nicolás Maduro, que perpetua uma sucessão de 25 anos do Regime Chavista (entre eleições democráticas e outras nem tanto, golpes, polêmicas e acusações). A oposição, que teve o candidato Edmundo González, alega que houve fraude na eleição e diz que Maduro perdeu o pleito. O atual presidente teria se utilizado do seu amplo poder governamental (que de forma autoritária domina Executivo, Legislativo e Judiciário) para manipular o resultado eleitoral e se perpetuar no poder.
Autoproclamado como uma "Revolução Bolivariana", o Regime Chavista usa como sua linha de pensamento e ação os ideais de Simon Bolívar, revolucionário venezuelano que liderou a luta das Américas contra o domínio colonialista, no caso, europeu. O Chavismo só deslocou essa "luta" da Europa para os Estados Unidos, alinhando-se a setores de esquerda que atacam o 'imperialismo estado-unidense".
Muitos veem esta perpetuação do Chavismo através de Maduro como uma ditadura, apesar de ocorrerem eleições, que são ditas democráticas, "pero no mucho". Afinal, como chamar de democrática uma eleição na qual oposicionistas ao governo Maduro são muitas vezes impedidos de concorrerem? E, além disso, a apresentação das urnas sempre fica envolta em um sistema pouco transparente na cada vez mais caótica Venezuela, que viu milhões de compatriotas abandonarem o país nos últimos anos em busca de uma vida mais digna.
A maior parte esquerda brasileira, ao lado de países socialistas e autoritários, como China e Rússia, apoiam Maduro nesta "luta" contra o "imperialismo".
Já a cada vez mais enfurecida direita brasileira, assim como governantes direitistas como o argentino Javier Milei, atacam Maduro e seus apoiadores como "ditadores comunistas".
Semelhanças nas diferenças
O curioso nesta jogatina política polarizada são as "semelhanças antagônicas" de defensores da esquerda e da direita.
A esquerda brasileira (a maior parte) defende o autoritário governo venezuelano e faz vista grossa a práticas de repressão e perseguição que são próprias de ditaduras - e olha que a esquerda brasileira sentiu na pele isso nos anos 1960 e 70. A alegação é de que as acusações de atrocidades cometidas por Maduro são propaganda "imperialista americana".
Já a direita brasileira, que ataca o atual governo venezuelano, e, por sua vez, a esquerda brasileira, reiteradamente defende que o Brasil deveria voltar aos tempos da ditadura militar, que foi caracterizado pelo controle das eleições, com domínio governamental do Legislativo e Judiciário, e que reprimia e perseguia seus opositores (como a "socialista" Venezuela faz).
E ambas ditaduras nacionalistas - a do governo militar brasileiro e a atual na Venezuela - são defendidas pelos seus "amantes" como populares, em defesa do povo, quando se sabe que, tanto na Venezuela como no Brasil, foi a força militar que possibilitou a perpetuação dos regimes autoritários através de muita manipulação das informações, com forte censura dos meios de comunicação.
Analisar todo o contexto em torno de tudo isso daria um livro, com profundas questões que cercam toda a discussão ideológica, e que também envolve o interesse nas reservas petrolíferas venezuelanas.
Mas o que se coloca na mesa é que tanto esquerda como direita têm em seus ataques e defesas a sistemas ditatoriais nacionalistas, variando conforme a sua conveniência, a predominância da sede pelo poder, pela dominação como o grande cerne de suas atuais ideologias, expondo seus posicionamentos de forma ferrenha como forma de convencer seus seguidores ou de atacar seus detratores.
Sim, é claro, estar no poder é a única forma de se implantar a sua ideologia. E, portanto, a luta dos dois lados é para ter a governança.
Mas aí é preciso dizer que não dá para se falar de democracia quando se defende um poder autoritário que não é transparente, envolto em esquemas de golpes e opressão, seja ele de direita ou de esquerda.
A Venezuela é apenas um dos muitos pontos de discussão entre esquerda e direita, mas é evidente que a defesa ou o ataque a ela fazem parte de movimentos hipócritas que convergem apenas em uma visão de poder dito nacionalista.
O que é isso, companheiro?
Até o presidente Lula, em suas últimas falas (algumas até contraditórias, em certos momentos, como dizer que foi tranquila a eleição venezuelana), demonstra desconforto com a situação que mancha o que se defende como um Estado transparente e democrático.
A posição de Lula em relação ao processo do companheiro Maduro tem sido até elogiável quando busca mediar os ódios de parte a parte (leia-se aqui Venezuela e Estados Unidos, diretamente, e seus aliados). O Brasil, inclusive, insiste que o governo da Venezuela divulgue as atas eleitorais, e não legitima a eleição de Maduro mesmo após o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) venezuelano ter reafirmado na sexta-feira (2) a reeleição governista como válida.
Vale dizer que, a bem da verdade, como Maduro manda até no Conselho Nacional Eleitoral, esta apresentação das atas pode até ser forjada, afinal, já se passou uma semana e nada foi apresentado - Maduro diz que o sistema foi hackeado por golpistas (mais uma semelhança com a jogatina política brasileira, aqui, no caso, de direita).
O curioso é que mesmo com o suposto ataque Maduro afirma ter vencido. Mas, ora, se o sistema foi atingido, como ele têm os resultados? E como tem segurança para afirmar a vitória? Um verdadeiro circo de um ditador cada vez mais patético.
E há quem diga, ainda, que esta exigência de apresentação das atas da eleição é uma intervenção externa na Venezuela. Na verdade, o que se busca é a transparência para legitimar um governante, e não um ditador (apesar de termos ditaduras pelo mundo afora para as quais muitos países - inclusive o Brasil - fecham os olhos).
Até Lula, mesmo em sua simpatia ideológica à Venezuela, entende que é preciso legitimar a eleição de Maduro para que se apaziguem os ânimos e para que haja margem para negociar uma reconstrução na caótica situação venezuelana.
Estragos da polarização
Bom, para não entrar naquele isso é certo ou isso é errado, a questão é que a Venezuela revela que o conceito de ideologia está cada vez mais ligado a ideias de dominação que tanto esquerda como direita defendem por trás de um ideal de agir a favor desta ou daquela camada social ou tendo em vista a justiça social. E vale tudo nesta briga por poder. Até sabotar o próprio país.
Vale lembrar que o democrático sistema brasileiro, em pouco mais de 30 anos de eleições diretas, teve dois presidentes derrubados. Os afastamentos - de dois presidente legitimamente eleitos, no caso, Collor e Dilma - foram através de subterfúgios, com uma orquestração política inflamada pelo grito popular de "justiça" e provas construídas para apontar atos de corrupção ou de improbidade administrativa nos dois governos. E o mais incrível é que foram dois golpes constitucionais de impeachment, embasados legalmente, gostem ou não os defensores dos presidentes derrubados.
Por isso, preocupa ver como a polarização doentia têm causado estragos no desenvolvimento do nosso País.
Entre defesas da esquerda e ataques da direita, a Venezuela escancara que é preciso repensar e refletir melhor os nossos conceitos, e os políticos precisam ser mais coerentes com o que defendem do que com a conivência partidária, financeira ou ideológica. Algo nada simples, e até utópico, mas que é preciso ser (re)pensado.
Autoproclamado como uma "Revolução Bolivariana", o Regime Chavista usa como sua linha de pensamento e ação os ideais de Simon Bolívar, revolucionário venezuelano que liderou a luta das Américas contra o domínio colonialista, no caso, europeu. O Chavismo só deslocou essa "luta" da Europa para os Estados Unidos, alinhando-se a setores de esquerda que atacam o 'imperialismo estado-unidense".
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Autoproclamado como uma "Revolução Bolivariana", o Regime Chavista usa como sua linha de pensamento e ação os ideais de Simon Bolívar, revolucionário venezuelano que liderou a luta das Américas contra o domínio colonialista, no caso, europeu. O Chavismo só deslocou essa "luta" da Europa para os Estados Unidos, alinhando-se a setores de esquerda que atacam o 'imperialismo estado-unidense".