É como se os personagens não tivessem marcado um período singular da história recente entre os países. Os ex-presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump foram “esquecidos” em um livro e uma exposição lançados para celebrar o bicentenário de relações entre Brasil e Estados Unidos.
Embora o período de 2019 a 2021 (quando eles estavam no poder) seja abordado nas obras do projeto comemorativo, as referências nominais a Bolsonaro e Trump restringem-se a somente uma, na última página de conteúdo histórico – a cronologia. Nas demais, o triênio é registrado somente por meio de termos genéricos.
A exposição e o livro fazem parte de uma parceria entre o Ministério das Relações Exteriores, a Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), a Câmara Americana de Comércio para o Brasil – Amcham e a Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), tendo como patrocinadores multinacionais de ambos os países. Os valores não foram informados, mas segundo a Amcham foi todo custeado com recursos privados.
Na prática, os nomes de Bolsonaro e Trump foram omitidos da obra, reduzindo o registro do protagonismo político dos ex-presidentes. A despeito de processos e condenações judiciais em seus respectivos países, que podem ter repercussões eleitorais, ambos são atores políticos relevantes e os principais rivais dos atuais presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Joe Biden.
Bolsonaro e Trump cultivaram uma relação de proximidade ideológica e amizade pessoal, que levou a um alinhamento sem precedentes de Brasília a Washington.
O Itamaraty abandonou ou inverteu posições tradicionais na política externa brasileira – em relação a Cuba e Israel, por exemplo; houve lançamento de iniciativas bilaterais com impacto comercial e no turismo, como o apoio ao ingresso do Brasil na OCDE e o programa Global Entry para agilizar os trâmites de imigração de brasileiros ao entrar nos EUA; a isenção de vistos para os norte-americanos no País; a designação do Brasil como aliado principal extra-Otan; além de uma adesão brasileira a tentativas dos EUA de desestabilizar o governo do ditator Nicolás Maduro, na Venezuela.
A edição do livro teve tiragem de 1 mil exemplares, distribuídos em eventos e a bibliotecas públicas, a critério dos organizadores. A exposição vai até 29 de junho, no Palácio do Itamaraty.
A concepção da exposição e do livro Encontros 200 anos de Amizade Brasil – Estados Unidos é do Itamaraty, com curadoria do embaixador Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão.
De autoria do embaixador, o principal texto do livro descreve os 200 anos de relações ao longo de 60 páginas. O embaixador dedica apenas um parágrafo ao governo Michel Temer (2016-2018) e refere-se ao período do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022) somente como “o governo que se lhe seguiu” – ao de Temer. Não há uma única menção ao nome de Bolsonaro, tampouco a Trump – somente ao seu ex-vice, Mike Pence.
Apesar disso, o embaixador-curador do projeto registra críticas a quebras de paradigma e tradições na política externa brasileira, em virtude da relação entre ambos ex-mandatários, durante seu período de governo. “Os diversos gestos de simpatia com relação ao governo de Washington não trariam, contudo, benefícios maiores às relações bilaterais”, escreve Mello Mourão.
Lapso
Trump e Bolsonaro também não apacerem na seleção de fotos, reproduzida na exposição atualmente aberta ao público no vão livre do Itamaraty. De uma visita da ex-presidente Dilma Rousseff ao ex-presidente Barack Obama, em 2015, o livro salta para reuniões em Brasília de governo e CEOs de empresas, já em 2023 e para uma reunião entre Lula e Biden em Nova York, em setembro passado.
A visita havia sido adiada por dois anos, como o embaixador recorda no texto, por causa da espionagem a Dilma e autoridades brasileiras pela NSA (Agência Nacional de Segurança), revelada em 2013 com o vazamento Wikileaks.
No lugar do que poderiam ser páginas dedicadas aos anos de Trump e Bolsonaro, seguindo a cronologia, aparecem uma foto do arranha-céu Empire State Building com as cores verde e amarela, em 7 de setembro de 2022, e a comemoração do Brazilian Day, também em Nova York.
Os nomes de Trump e Bolsonaro só aparecem na cronologia, a seção final do livro com resumo de atos oficiais desde 1824, para registrar a visita de Estado do brasileiro a Washington, em março de 2019, a primeira bilateral de seu governo. Na ocasião, eles assinaram o Acordo de Alcântara, para exploração da base espacial no Maranhão.
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O livro tem distribuição gratuita e foi presenteado a convidados durante o jantar de gala que deu início às celebrações do bicentenário, em 26 de maio, no Palácio do Itamaraty. Segundo a publicação, as opiniões são de responsabilidade dos autores e não representam posição oficial do governo brasileiro.
O Estadão procurou as entidades privadas envolvidas e o governo para saber por que os nomes de Trump e Bolsonaro foram omitidos da história nas obras criadas para celebra os 200 anos de relacionamento entre os países, seja em texto ou fotografias.
Somente o Itamaraty respondeu diretamente à pergunta: “Tratando-se de relacionamento bilateral de 200 anos, seria impraticável a inclusão de fotografias sobre todos os episódios que o marcaram, entre visitas de autoridades, eventos culturais e esportivos e relações econômicas”.
O ministério afirmou que o texto do curador aborda as relações bilaterais durante os governos dos ex-presidentes em duas páginas – embora eles não sejam citados nominalmente.
“A cronologia que encerra o livro não apenas faz referência nominal aos dois ex-presidentes, como lista outros marcos daquele período, a exemplo da visita oficial do então presidente brasileiro aos EUA, da realização do Diálogo da Parceria Estratégica e da entrada do Brasil no programa ?Global Entry?”, citou o Itamaraty.
“A curadoria e organização da exposição foram realizadas pela FAAP, a partir da concepção do Ministério das Relações Exteriores, com recursos integralmente privados e apoio institucional da Amcham Brasil”, firmou a Câmara. “Ressaltamos que a Amcham Brasil é uma entidade apartidária, que há 105 anos busca contribuir para o desenvolvimento das relações entre o Brasil e os EUA, mantendo um histórico de engajamento construtivo e diálogo com todos os governos de ambos os países.”
A FAAP não se pronunciou.