Enganoso: São enganosos posts com afirmação de que “Lula parou a guerra na Faixa de Gaza”. Declarações recentes do presidente contra a guerra ou pedidos pelo seu fim feitos no ano passado não tiveram efeito para acabar com o conflito. Atualmente, há mediação internacional para convencer Israel e Hamas a uma trégua, mas a situação segue indefinida.
Conteúdo investigado: Posts afirmam que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é o responsável por parar a guerra entre Israel e o Hamas na Faixa da Gaza. O fim da guerra teria sido anunciado pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, para 4 de março; outras publicações afirmam que Lula poderá acabar com a guerra da Ucrânia a partir de uma intervenção junto à China.
Onde foi publicado: X (antigo Twitter).
Conclusão do Comprova: São enganosos os posts no X que afirmam que o presidente Lula (PT) parou a guerra na Faixa de Gaza. O argumento usado nas publicações é de que o Brasil foi o primeiro país a propor, no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), um cessar-fogo, e que, após o anúncio feito pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, de que uma trégua poderia ocorrer em 4 de março, a conquista deveria ser atribuída ao petista.
No X, a expressão “Lula parou a guerra” ficou entre os assuntos mais comentados durante a semana passada. Além de publicações sobre a guerra na Faixa de Gaza, diversas postagens também levantaram a possibilidade de que Lula acabe com outro conflito, entre Ucrânia e Rússia. Isso porque o embaixador ucraniano no Brasil, Andrii Melnyk, disse em uma entrevista ao Poder 360 que pediu ao governo brasileiro uma intermediação junto à China, por acreditar que o país asiático tem capacidade de acabar com a guerra.
De fato, o Brasil pediu um cessar-fogo logo após o início do conflito em Gaza, em 18 de outubro de 2023, mas a proposta foi vetada pelos Estados Unidos na época – o país vetou mais duas propostas de lá para cá. Na semana passada, Joe Biden disse a jornalistas que esperava por um cessar-fogo até 4 de março, mas tanto Israel quanto o Hamas contestaram a declaração e afirmaram que ele se precipitou. Sobre a situação na Ucrânia, o Itamaraty disse não ter comentários a fazer.
Especialistas em Relações Internacionais ouvidos pelo Comprova afirmaram que Lula é um ator importante no cenário internacional e que suas declarações no sentido de chamar a atenção mundial para a situação de Gaza geram impacto. No entanto, um eventual cessar-fogo não seria mérito exclusivo do presidente brasileiro, nem os discursos dele, isoladamente, têm poder suficiente para contribuir para um cessar-fogo em qualquer que seja o conflito: o da Faixa de Gaza ou o da Rússia contra a Ucrânia.
Além disso, a guerra no Oriente Médio não parou. Em 29 de fevereiro, o Ministério da Saúde de Gaza, que é controlado pelo Hamas, divulgou que o número de palestinos mortos em decorrência de ataques israelenses em Gaza passou de 30 mil, enquanto as baixas do lado israelense são de 1,4 mil pessoas no dia 7 de outubro, além de 242 militares. Na mesma quinta, militares israelenses mataram mais de 100 palestinos durante entrega de ajuda humanitária, enquanto Israel disse que disparou tiros de advertência e que boa parte dos mortos foram pisoteados ou atropelados. A ONU condenou o ataque.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até 4 de março, apenas duas publicações no X somavam 584,1 mil visualizações.
Como verificamos: O primeiro passo foi buscar notícias sobre negociações por um cessar-fogo no conflito entre Israel e o Hamas, na Faixa de Gaza, e buscar dados atualizados que apontassem se houve ou não paralisação na guerra. Além disso, foram procuradas publicações que indicassem se houve uma tentativa da Ucrânia em pedir que o Brasil interceda pelo fim da guerra contra a Rússia.
Em seguida, foi consultado o Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) para saber qual a posição oficial do Brasil em relação ao primeiro conflito e sobre o pedido relacionado à guerra da Ucrânia.
Por fim, foram entrevistados dois especialistas: os professores Bruno Huberman e Rodrigo Amaral, ambos da Faculdade de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
A guerra parou?
Não. Desde o início do conflito entre Israel e o Hamas, pedidos de cessar-fogo vêm sendo votados em reuniões do Conselho de Segurança da ONU, mas nenhum deles foi aprovado até agora. O primeiro pedido foi feito pelo Brasil, ainda em outubro de 2023, e contou com 12 votos favoráveis dos 15 possíveis. Mesmo com a maioria, a proposta foi barrada pelos Estados Unidos, um dos cinco países com poder de veto – os demais são China, Rússia, França e Reino Unido, membros permanentes do Conselho.
A segunda proposta de cessar-fogo foi feita em dezembro, pelos Emirados Árabes Unidos, e mais uma vez foi vetada pelos Estados Unidos. Naquela ocasião, foram 13 votos favoráveis, mesmo número alcançado na votação do último dia 20 de fevereiro, quando ocorreu o terceiro veto dos norte-americanos, desta vez de uma proposta feita pela Argélia. O Brasil votou a favor do cessar-fogo nas três ocasiões.
A expectativa agora se concentra em uma proposta preliminar de cessar-fogo na guerra entre Israel e o Hamas, discutida em Paris com negociadores dos Estados Unidos, Catar e Egito, que prevê uma pausa de 40 dias nas operações militares, além da troca de reféns por prisioneiros palestinos. As informações foram divulgadas pela agência Reuters em 27 de fevereiro.
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Na véspera, 26 de fevereiro, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse a jornalistas que espera por um cessar-fogo até 4 de março. A trégua ocorreria durante o Ramadã, mês sagrado para os muçulmanos.
Tanto Israel quanto o Hamas questionaram o otimismo de Biden. Ao jornal britânico The Guardian, autoridades israelenses que não quiseram se identificar disseram estar surpresas com o comentário e afirmaram que o Hamas segue pedindo “demandas excessivas” para estabelecer uma trégua. Já o chefe da divisão política do Hamas, Basem Naim, disse ao jornal que as declarações de Biden eram prematuras: “Não condizem com a realidade do terreno”.
Até o início da tarde de segunda-feira 4, não foi anunciado cessar-fogo na região. Segundo a CNN, Israel optou por não enviar uma delegação ao Egito para negociações de cessar-fogo e libertação de reféns no domingo 3.
Opinião de especialistas
Ainda que o cessar-fogo ainda não tenha ocorrido, especialistas ouvidos pelo Comprova acreditam que os Estados Unidos têm protagonismo para colaborar nesse sentido.
Para o professor Rodrigo Amaral, do curso de Relações Internacionais da PUC-SP, é possível acreditar na voz de Joe Biden porque, hoje, quem permite que o conflito aconteça são os Estados Unidos. “Quem garante que a guerra em Gaza aconteça é o próprio governo norte-americano, porque são os Estados Unidos que dão suporte militar a Israel, são os Estados Unidos o único Estado que, dentro do Conselho de Segurança, vetou o pedido de cessar-fogo imediato. Então, se os Estados Unidos virarem a chave e falaram: ‘Não, a gente agora apoia um cessar-fogo’, Israel fica sem apoio, e sem apoio, encerra o conflito”, aponta.
Amaral diz que isso não quer dizer que Joe Biden abandonará Israel, que é um aliado. “Evidentemente que tudo isso é negociado, conversado diretamente no alto escalão diplomático israelense e norte-americano”, completa. Mas indica, de qualquer forma, um possível cessar-fogo, uma trégua, e não o fim do conflito de fato.
Também professor de Relações Internacionais na PUC-SP, Bruno Huberman destaca que as negociações de paz passam pela criação do Estado da Palestina, o que não está na mesa de negociações há anos. “O que acontece nos últimos anos, quando houve os bombardeios israelenses a Gaza e retaliações do Hamas, normalmente é troca de reféns por cessar-fogo, por trégua. É abertura de ajuda humanitária, abertura comercial, geralmente diminuição do bloqueio israelense a Gaza. Geralmente esses eram os pontos negociados no cessar-fogo entre Hamas e Israel nos últimos anos, que é o que tem sido negociado nos últimos meses”, diz.
Se a guerra parar, isso pode ser atribuído a Lula? Faz sentido tal afirmação?
Para os dois especialistas ouvidos pelo Comprova, o presidente brasileiro é um importante ator político no cenário internacional, mas dizer que ele parou ou que terá o mérito exclusivo caso a guerra seja interrompida é exagero. “Um eventual cessar-fogo, obviamente, não seria mérito exclusivo do Lula. O Lula é uma pessoa que vem buscando chamar a atenção mundial para o massacre, o genocídio que vem em curso em Gaza, e eu acho que se ele tem um mérito, é trazer a atenção mundial para isso através das suas declarações”, afirma Bruno Huberman.
Para o pesquisador, o presidente brasileiro é um dos líderes mais vocais nas críticas a Israel, dentre aqueles com relevância, mas as ações não têm a mesma força que as declarações. “O Brasil não tem um papel de mediação num cessar-fogo. Quem cumpre esse papel até o momento é Estados Unidos, Catar e Egito. Eu vejo a Rússia tentando participar de negociações, mas o Brasil, até onde eu vi, não foi convidado, não é parte de negociações por cessar-fogo”, observa.
Rodrigo Amaral, também professor da PUC-SP, acredita que os discursos do presidente brasileiro geram impacto, sobretudo pelo fato de ser uma liderança do Sul global e por estar em um momento de grande representação institucional internacional, como a presidência do G20, dos Brics e do Conselho de Segurança da ONU. Mas, isoladamente, estes discursos não têm poder para um cessar-fogo.
“Evidentemente que os discursos do Lula não têm poder suficiente, de forma isolada, de contribuir para um cessar-fogo em qualquer que seja o conflito, seja na questão da Ucrânia, ou seja na questão de Gaza”, diz. Apesar disso, Amaral acredita que a decisão de Lula em acusar abertamente Israel de genocídio e adotar um discurso anti-guerra acaba pressionando outros atores internacionais a buscarem uma solução emergencial para o assunto.
“Isoladamente não é suficiente, mas em termos de grande representação, o Brasil de fato é um ator importante, é um ator que fez, sim, uma proposta que foi a que chegou mais perto da resolução dentro do Conselho de Segurança da ONU por um cessar-fogo, estabelecimento de corredores humanitários. Foi um país que apoiou de forma explícita o processo iniciado pela África do Sul no Tribunal Penal Internacional que acusa Israel de estar cometendo genocídio. Dos países de grande porte que não são grandes potências, é o país que tem tomado uma posição ativa no sistema internacional e essa é uma característica da política externa do Lula”, diz Amaral.
Para ele, aliás, as últimas declarações do petista, acusando Israel de genocídio e comparando as atrocidades em Gaza com as do Holocausto, não representam um problema real para o Brasil do ponto de vista diplomático. “Não houve uma reverberação negativa, de maneira explícita, da comunidade internacional depois da declaração do Lula. A única reverberação negativa foi a própria crise diplomática com os israelenses. E aí é um ato desesperado, a gente pode colocar assim, do governo Netanyahu”, aponta.
Posição do Brasil sobre a guerra
Em 7 de outubro de 2023, mesmo dia dos ataques do Hamas em Israel, o Itamaraty divulgou uma nota condenando os ataques na Faixa de Gaza e se solidarizando com os familiares das vítimas e com o povo de Israel. Na nota, o governo brasileiro destacou sua posição histórica, que defende a existência de dois Estados independentes:
“O governo brasileiro reitera seu compromisso com a solução de dois Estados, com Palestina e Israel convivendo em paz e segurança, dentro de fronteiras mutuamente acordadas e internacionalmente reconhecidas. Reafirma, ainda, que a mera gestão do conflito não constitui alternativa viável para o encaminhamento da questão israelo-palestina, sendo urgente a retomada das negociações de paz”, diz a nota.
Com o decorrer do tempo e o avanço dos ataques por Israel em Gaza, o Brasil vem defendendo um cessar-fogo imediato na região. Procurado pelo Comprova, o Itamaraty apontou o discurso do ministro Mauro Vieira no Debate de Alto Nível do Conselho de Segurança da ONU sobre a situação no Oriente Médio, em 29 de novembro do ano passado, como o posicionamento mais recente do Brasil sobre o conflito.
Nele, o chanceler brasileiro voltou a defender a existência mútua de dois Estados, condenou o “horror sem precedentes que está acontecendo em Gaza” e cobrou um cessar-fogo imediato entre as partes, além da libertação de todos os inocentes.
Lula pode parar a guerra da Ucrânia?
Outros posts no X afirmam que Lula pode parar, na realidade, duas guerras: a da Faixa de Gaza e da Ucrânia. Isso porque o embaixador ucraniano no Brasil, Andrii Melnyk, pediu ao governo brasileiro que interceda junto à China para que o país asiástico trabalhe pelo fim do conflito entre Ucrânia e Rússia.
Melnyk fez essa declaração em entrevista ao Poder 360 em 24 de fevereiro de 2024, quando a invasão russa à Ucrânia completou dois anos. “Penso que a China poderia desempenhar um papel crucial para persuadir ou, diria mesmo, para forçar os russos a parar esta guerra”, disse Melnyk.
Procurado, contudo, o Itamaraty disse não ter comentários a fazer sobre essa questão.
Para Bruno Huberman, o Brasil se colocou como um ator importante fora da Europa para intermediar o conflito, mas não é possível dizer, ainda, se o país seria de fato convidado a isso. “O Lula tem o mérito de ser o primeiro líder mundial, logo no início do seu mandato, a colocar a paz como um horizonte necessário e defender a realização de uma Cúpula de Paz. Ele fez isso por muitos meses, só que não trouxe resultados imediatos”, diz.
Apesar de não poder prever se o Brasil seria de fato convidado a mediar o conflito, Huberman acredita que o país seria importante nesse cenário. “Eu acho que seria importante o Brasil ser convidado, pela importância do presidente Lula, pela importância do Brasil, que é um ator externo ao conflito e que tem a confiança das partes. Poucos atores têm a confiança dos Estados Unidos e da Rússia, o Brasil é um dos raríssimos casos que consegue, eu acho, ter esse papel nesse momento”, observa.
Já Rodrigo Amaral acredita que o Brasil não teria tanta capacidade de influência nesta questão, em particular, porque o conflito envolve uma grande potência, que é a Rússia: “Israel depende, evidentemente, dos Estados Unidos, mas a Rússia não depende de ninguém para a guerra. Ela tem uma ação unilateral, uma capacidade militar tremenda, uma capacidade econômica tremenda. A gente sabe, claro, que a economia russa tem sofrido internamente, as discussões políticas têm sido muito intensas sobre o governo Putin. Mas, nesse tema, eu acredito que a capacidade de influência brasileira é menor”, afirma.
O que diz o responsável pela publicação: Os dois perfis responsáveis pelas publicações checadas nesta investigação não permitem o envio de mensagens pelo X. Um deles possui um endereço de e-mail e foi procurado, mas não respondeu até a publicação desta checagem.
O que podemos aprender com esta verificação: Conteúdos deste tipo enganam na medida em que usam um fato verdadeiro – neste caso, a notícia de que há a possibilidade de um cessar-fogo em Gaza – para distorcer seu significado, exagerar no cenário e inflar politicamente uma figura pública. Ao se deparar com publicações assim, é importante buscar informações sobre as principais alegações: A guerra parou? Se sim, como isso aconteceu? Quem esteve envolvido nas negociações? A figura a quem está sendo atribuído o mérito da questão realmente teve tanta influência quanto se diz? Neste caso, as publicações caem por terra ao se constatar que a guerra, na realidade, sequer parou.
Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: O Comprova já checou outros conteúdos nas redes envolvendo o governo brasileiro e o conflito entre Israel e o Hamas e mostrou, por exemplo, que uma doação de R$ 25 milhões feita em 2010 foi para a Autoridade Palestina, e não para o Hamas; que o governo Lula assinou um termo de cooperação técnica em 2023 também com a Autoridade Palestina, e não com o grupo terrorista; e que os alimentos doados pelo MST e transportados pela Força Aérea Brasileira foram destinados aos palestinos vítimas do conflito. Também publicamos um conteúdo explicativo sobre a declaração de Lula a respeito do Holocasto e a possibilidade de abertura de um processo de impeachment.