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PROJETO COMPROVA: Livro "O Avesso da Pele" foi aprovado no governo Bolsonaro e escolhido por escola para o ensino médio

Projeto Comprova
Publicado em: 08/03/2024 às 10h:20 Última atualização: 08/03/2024 às 10h:20
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Contextualizando: Em um vídeo publicado nas redes sociais, a diretora de uma escola da cidade gaúcha de Santa Cruz do Sul denuncia a distribuição pelo Ministério da Educação do livro “O Avesso da Pele”. Ela afirma que o título é inadequado para o ensino médio por conta da linguagem. Parlamentares que compartilharam o vídeo atribuíram a adoção da obra à gestão do presidente Lula (PT). Contudo, o MEC esclareceu que a escolha do material é feita pelos educadores de cada escola e que o título foi incluído no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) em 2022, durante a presidência de Jair Bolsonaro (PL).

Livro "O Avesso da Pele" foi aprovado no governo Bolsonaro  | abc+



Livro “O Avesso da Pele” foi aprovado no governo Bolsonaro

Foto: Comprova

Conteúdo investigado: Vídeo gravado pela diretora de uma escola estadual de Santa Cruz do Sul (RS) diz que o Ministério da Educação enviou o livro “O Avesso da Pele”, do autor Jeferson Tenório, para ser trabalhado pelos alunos do ensino médio. Ela diz que a obra é inadequada por descrever uma relação sexual do protagonista e questionamentos de outros personagens sobre os aspectos de um relacionamento com um homem negro. A publicação foi compartilhada por parlamentares que atribuíram a escolha da peça literária à atual gestão do PT.

Onde foi publicado: Instagram.

Contextualizando: Em um vídeo publicado em suas redes sociais, em 1º de março, a diretora da Escola Estadual de Ensino Médio Ernesto Alves de Oliveira, em Santa Cruz do Sul (RS), pede que o Ministério da Educação (MEC) recolha os exemplares de “O Avesso da Pele”, do escritor Jeferson Tenório, distribuídos para alunos do ensino médio. Na gravação, Janaina Venzon diz que a unidade recebeu mais de duzentas cópias do livro, que, segundo ela, é inadequado por conta da linguagem e termos utilizados na história.

A profissional lê duas passagens da obra que aponta serem inapropriadas. Em uma delas, o narrador conta que uma personagem branca passou a receber questionamentos sobre características físicas e o comportamento do namorado, que é negro, durante as relações sexuais. Em outro trecho, o protagonista, um homem negro, relata momentos do ato sexual com a namorada, branca. Na postagem, Venzon diz que os professores e a escola não escolheram o livro e que as obras literárias estão sendo escolhidas pelo governo federal. “Desconheço o critério de escolha por parte do governo, só penso que deveriam analisar antes, para depois enviar para as escolas trabalharem.”

O vídeo foi compartilhado por parlamentares, entre eles a deputada estadual Kelly Moraes (PL-RS) e os deputados federais Zé Trovão (PL-SC), Marcelo Moraes (PL-RS) e Bia Kicis (PL-DF), que atribuíram a adoção do livro à gestão atual do Ministério da Educação e ao PT. Em uma publicação em suas redes sociais, o autor do livro, Jeferson Tenório, relatou que, com a repercussão e a moção de repúdio do vereador Rodrigo Rabuske (PRD-SC), a 6ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE) ordenou que os exemplares fossem recolhidos das escolas e bibliotecas, até que o governo federal se manifestasse.

Entretanto, procurada pelo Comprova, a Secretaria da Educação do Rio Grande do Sul (Seduc) informou que não orientou que o livro fosse retirado de bibliotecas da rede estadual de ensino. “O uso de qualquer livro do PNLD (Programa Nacional do Livro e do Material Didático) deve ocorrer dentro de um contexto pedagógico, sob orientação e supervisão da equipe pedagógica e dos professores”, afirmou. A pasta ressaltou que a 6ª CRE vai seguir a orientação da Seduc e providenciar que as escolas da região usem adequadamente os livros.

A Secretaria de Comunicação Social (Secom) do governo federal declarou, em nota divulgada em 2 de março, que “peças de desinformação estão repercutindo de maneira deturpada a escolha da obra ‘O Avesso da Pele’ como material a ser adotado em salas de aula no Brasil”. O texto informa que o livro foi incluído no PNLD por meio de portaria de setembro de 2022, assinada pelo então secretário de educação básica substituto, Gilson Passos de Oliveira, depois de passar por uma seleção publicada em edital de 2019, durante o governo do então presidente Jair Bolsonaro (PL).

Portaria de 2022 que aprovou inclusão de "O Avesso da Pele" no PNLD. | abc+



Portaria de 2022 que aprovou inclusão de “O Avesso da Pele” no PNLD.

Foto: Comprova

A nota esclarece que a escolha das obras literárias a serem adotadas em sala de aula é feita pelos educadores de cada escola, a partir de um guia digital, onde os livros do programa estão listados para conhecimento de professores e gestores. A definição deve ser realizada de maneira conjunta entre o corpo docente e dirigente da escola, com base na análise das informações contidas no guia, considerando a adequação e a pertinência em relação à proposta pedagógica de cada instituição..

A Secom apontou que, “diferentemente do que conteúdos maliciosos estão repercutindo”, o MEC não envia os livros sem a participação dos educadores. “Os livros são distribuídos às escolas somente após a escolha dos profissionais de educação, realizada em sistema informatizado do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)”, afirmou o órgão. A utilização da obra na escola de Santa Cruz do Sul foi aceita por Janaina, que é diretora da unidade de ensino e autora da denúncia. A editora Companhia das Letras, responsável pela publicação de “O Avesso da Pele”, divulgou o comprovante da escolha nas redes sociais.

Comprovante de Escolha PNLD  | abc+



Comprovante de Escolha PNLD

Foto: Comprova/Companhia das Letras

Programa Nacional do Livro e do Material Didático

De acordo com o governo federal, o PNLD é uma política do Ministério da Educação com mais de 85 anos de existência e adesão de mais de 95% das redes de ensino do Brasil. A permanência é voluntária, segundo a legislação, em atendimento a um dos princípios basilares do programa, que é o respeito à autonomia das redes e escolas.

A nota destaca que a aquisição das obras ocorre por meio de um chamamento público e são avaliadas por professores, mestres e doutores inscritos no banco de avaliadores do MEC. Os livros aprovados passam a compor um catálogo no qual as escolas podem escolher, de forma democrática, os materiais que mais se adequam à sua realidade pedagógica, tendo como diretriz o respeito ao pluralismo de concepções pedagógicas.

A formalização da escolha dos livros didáticos é feita via internet e apenas após a compilação dos dados referentes aos pedidos realizados pelas instituições é que o FNDE inicia o processo de negociação com as editoras. “O envio de obras literárias para escolas sem o devido e expresso interesse das instituições é falso, uma vez que os exemplares sequer foram adquiridos das empresas editoras”, continua o texto.

A compra é realizada sem licitação, algo previsto em lei, tendo em vista que as escolhas dos livros são efetivadas pelas escolas e que são editoras específicas que detêm o direito de produção de cada livro. Os materiais chegam às escolas entre outubro do ano anterior ao atendimento e o início do ano letivo. Nas zonas rurais, as obras são entregues nas sedes das prefeituras ou das secretarias municipais de educação, que devem efetivar a entrega dos livros.

Vencedor do prêmio Jabuti, “O Avesso da Pele” foi traduzido para 16 idiomas

“O Avesso da Pele” foi publicado em agosto de 2020 pela Companhia das Letras e conta a história de um jovem que, após a morte do pai, assassinado em uma abordagem policial, busca resgatar o passado da família e refazer os caminhos paternos. O livro é apresentado pela editora como “um romance sobre identidade e as complexas relações raciais, sobre violência e negritude” e “uma obra contundente no panorama da nova ficção literária brasileira”.

Em 2021, a obra venceu o prêmio Jabuti, o mais tradicional da literatura do Brasil, concedido pela Câmara Brasileira do Livro, na categoria melhor romance. O livro foi traduzido para 16 idiomas, teve seus direitos de publicação vendidos para mais de dez países e foi adaptada para o teatro. Ainda segundo a editora, o autor “traz à superfície um país marcado pelo racismo e por um sistema educacional falido”.

Os trechos lidos pela diretora induzem a audiência a acreditar que a peça literária apresenta conteúdo erótico, mas não contextualiza os acontecimentos narrados. A primeira passagem retrata que, apesar do protagonista, um homem negro, e sua namorada, uma mulher branca, não se importarem com suas diferenças étnicas, o relacionamento deles se torna pauta para familiares e amigos, que passam a fazer questionamentos sobre a intimidade do casal, características físicas e o comportamento do rapaz, baseados em estereótipos raciais.

Já no segundo trecho, o personagem narra uma relação sexual com a namorada, mostrando que a questão racial, antes desimportante, passou a fazer parte do relacionamento, uma vez que eles passam a se tratar como “branquinha” e “negão/nego”, e a usar a cor da pele um do outro como elogio.

Em uma nota publicada no Instagram, a Companhia das Letras diz que o título foi inscrito, avaliado pelo PNLD e aprovado por uma banca de educadores, especialistas e mestres em literatura e língua portuguesa juntamente com outros 530 títulos. A empresa destaca ainda que, para chegar à escola gaúcha, precisou passar por aprovação da própria diretora, que assinou o documento de “ata de escolha” da obra e que agora contesta o conteúdo do livro.

“A retirada de exemplares de um livro, baseada em uma interpretação distorcida e descontextualizada de trechos isolados, é um ato que viola os princípios fundamentais da educação e da democracia, empobrece o debate cultural e mina a capacidade dos estudantes de desenvolverem pensamento crítico e reflexivo. Repudiamos veementemente qualquer ato de censura que limite o acesso dos estudantes a obras literárias sob pretexto de protegê-los de conteúdos considerados ‘inadequados’ por opiniões pessoais e leituras de trechos fora de contexto. O que se destaca em ‘O avesso da pele’ não é uma cena, tampouco a linguagem, mas sim a contundente denúncia do racismo que se imiscui em todas as nossas relações, até as mais íntimas”, completa a nota.

O autor do livro também usou as redes sociais para se manifestar, lembrando que a obra foi incluída no programa ainda na gestão Bolsonaro. “As distorções e fake news são estratégias de uma extrema direita que promove a desinformação. O mais curioso é que as palavras de ‘baixo calão’ e os atos sexuais do livro causam mais incômodo do que o racismo, a violência policial e a morte de pessoas negras. Não vamos aceitar qualquer tipo de censura ou movimentos autoritários que prejudiquem estudantes de ler e refletir sobre a sociedade em que vivemos”, escreveu Jeferson Tenório.

No dia 4 de março, o ministro-chefe da Secom da Presidência da República e a ministra da Cultura (MinC) criticaram a tentativa de censura e os ataques ao livro. “Em minha opinião, trata-se de uma demonstração de ignorância, de preconceito, mas também de covardia por parte dessas pessoas”, disse Paulo Pimenta. “Meu total repúdio a qualquer tipo de censura em relação à nossa literatura (…) Nós estamos procurando ter todo o cuidado. E o ministro Camilo (Santana, do MEC), o Ministério da Educação também têm essa sensibilidade”, declarou Margareth Menezes.

Em uma publicação no Facebook, em 5 de março, Janaina Venzon agradeceu ao apoio que recebeu do Legislativo de Santa Cruz do Sul. No texto, ela aponta que apenas o vereador Alberto Heck (PT-RS) não assinou a moção de repúdio e diz não ter nada contra o livro. “Voltamos afirmar: nada contra a obra, ela foi escolhida pelos professores principalmente por falar de antirracismo, mas os vocabulários apresentados em vários trechos do livro fica difícil o trabalho.”

Como o conteúdo pode ser interpretado fora do contexto original: A autora do vídeo escolhe mostrar duas passagens do livro para indicar linguagem inadequada para o ensino médio, mas lê apenas algumas frases, sugerindo que o livro trata só de sexo. Ao afirmar que o governo federal, comandado pelo presidente Lula, escolheu a obra, ela tenta criar a imagem de que as políticas do atual governo são absurdas, o que não poderia ser dito a partir dessa história, ainda mais considerando que o livro foi escolhido na gestão anterior, do PL, e com a participação dela.

O que diz o responsável pela publicação: A publicação original foi excluída pela diretora. Procurada pelo Comprova, Janaina Venzom não respondeu aos contatos. A reportagem também tentou contato com os deputados Marcelo Moraes, Zé Trovão, Bia Kicis e Kelly Moraes e não obteve respostas.

Alcance da publicação: Até o dia 6 de março, juntas, as publicações tinham mais de 149,6 mil visualizações.

Como verificamos: A reportagem buscou por matérias sobre a censura do livro e procurou esclarecimentos do governo federal sobre a inclusão da obra ao PNLD e sobre como ocorre o processo de escolha e distribuição dos livros. Também contatou a Secretaria da Educação do Rio Grande do Sul, leu o trecho citado no vídeo desta verificação para entender o contexto das passagens apontadas como inadequadas pela autora da publicação. A diretora da escola e os parlamentares que compartilharam o post também foram procurados.

Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: As alegações e informações apresentadas no vídeo desta verificação também foram checadas pelo Estadão Verifica, Aos Fatos e UOL, que as classificaram como falsas e enganosas. É comum que apoiadores de determinados governos criem ou tirem informações do contexto para atacar e descredibilizar opositores. Recentemente, o Comprova desmentiu que Israel cancelou contrato na área da saúde depois da fala do presidente Lula sobre a guerra na Faixa de Gaza e confirmou que um vídeo foi editado para insinuar que o senador Magno Malta estava bêbado em ato pró-Bolsonaro.

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