A linha férrea da Trensurb é um caminho que tem sido usado por dezenas, centenas de pessoas atingidas pela enchente para se locomoverem entre Novo Hamburgo e São Leopoldo. Na tarde desta terça-feira (7), a reportagem percorreu os mais de dois quilômetros entre as estações Santo Afonso e Rio dos Sinos, uma em cada cidade, para ver um pouco de cima o cenário da maior catástrofe que já atingiu os municípios e todo o Rio Grande do Sul.
A Estação Santo Afonso é o local usado como “Quartel-General” de voluntários que se unem, principalmente, para salvar animais que foram deixados para trás. O local é o último da Avenida Primeiro de Março, em Novo Hamburgo, em que se pode chegar por terra, pois a partir dali, apenas barcos conseguem transitar.
Do alto da estação, já sobre os trilhos, a cena é inédita: pedestres caminhando de um lado para o outro, uma vez que as atividades dos trens estão suspensas desde sexta-feira (3) e ainda não há prazo para voltar à operação. Em dias normais, a simples presença de uma pessoa poderia ser suficiente para interromper o serviço, agora, no entanto, transitar pela ferrovia é a única opção de quem quer ver o que sobrou de suas casas.
Não é necessário andar muito para ver e ouvir cenas que chocam. Em uma árvore, quase ao lado do Arroio Gauchinho (que já não é mais visto), um gato pedia socorro, mas nenhuma embarcação chegou até ele. Conforme se avança em direção a São Leopoldo, as casas ficam cada vez mais submersas, até que chega o ponto de muitas terem só os telhados visíveis. O pouco que a água baixou revela muitos carros com apenas o teto visível. Um deles, inclusive, continha marcas causadas, possivelmente, por alguma embarcação que passou sobre ele enquanto submergia.
Barcos a remo e a motor, canoas e jetsky faziam o trânsito de um lado para o outro, buscando pessoas, levando mantimentos, usando apitos para chamar a atenção de quem precisava de socorro. Muitos, no entanto, tinham como única opção caminhar dentro d’água à própria sorte. Em certo momento, um homem era visto somente com a cabeça na superfície.
O lixo também se espalha e revela todo o tipo de coisa. Brinquedos, roupas, garrafas, pedaços de madeira, uma cerca inteira que boiava para longe de onde um dia esteve cravada ao chão. Por toda a extensão, mais animais ilhados sobre telhados e, em um terreno, um corpo boiando indicava que ali havia um porco que não resistiu.
Entre os pedestres que caminhavam sobre os trilhos, moradores que tentavam identificar suas casas, muitas ainda sem poderem ser vistas. O choro de quem constatava a perda e sem a perspectiva de quando poderá retomar suas vidas. No céu, ao menos três helicópteros faziam rondas, não se sabe se em busca de pessoas pedindo socorro ou se constatando alguma situação.
Chegando à Estação Rio dos Sinos, a parte onde ocorrem os embarques está muito diferente do que se costuma ver. Restos de roupas, colchões e calçados deixados para trás por quem lá buscou abrigo se misturam com fezes de animais e comidas, já estragadas, que foram deixadas na tentativa de alimentar cachorros refugiados. Na parte de baixo, o Rio dos Sinos toma conta da estação de mesmo nome.
Retornando a Novo Hamburgo, mais pessoas buscavam ver os estragos e o desabafo de quem perdeu o que tinha. No fim do percurso de volta, policiais civis passavam armados de fuzis em duas embarcações. Mais à frente, um homem usava um galão de água como boia enquanto cruzava a enchente. Por ele, passou um barco com outros três homens, um deles usando uma vassoura como remo. O náufrago que caminhava agarrado ao vasilhame de 20 litros pediu ajuda à embarcação. “Se eu fizer um pix, vocês me levam para aquele lado?”, disse. Já distante, os embarcados responderam que não poderiam ajudar, pois o destino era para o outro lado.
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