No fim da tarde do dia 10 de dezembro de 1966, os sinos da Igreja Evangélica de Confissão Luterana de Lomba Grande, em Novo Hamburgo, tocaram para celebrar a união da professora Marlene Prass e do contador Reneo Prass. Naquele sábado, Marlene colocou seu vestido branco com decote canoa e manga 3/4, vestiu luvas e um véu curto, empunhou um buquê com três cravos enrolados em fita branca e disse ‘sim’ para Reneo no templo religioso que frequenta desde os 5 anos quando sua família mudou-se para perto da igreja, na intenção de se aproximar do comércio e da escola.
Na época, a professora hamburguense, atualmente aposentada, falava apenas alemão. Ela conta que seu tataravô veio da Alemanha e que decidiu adotar Lomba Grande, bairro onde a família criou raízes, como seu lar.
A professora, que recentemente completou 78 anos, conta que sua relação com a igreja vem desde quando a mãe, Elga Emília Paul, que trabalhava como costureira calçadista, a levava para participar dos eventos da Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas (Oase), grupo do qual Marlene faz parte até hoje.
A aposentada lembra do medo que sentiu durante uma tempestade, em um dos encontros na Igreja. “Quando tinha uns seis anos, lembro de estar em um culto. Eu tinha muito medo de temporais e, naquele tempo, as crianças sentavam nos bancos da frente, e os adultos, nos bancos mais ao fundo. Naquela manhã, começou um temporal com trovões e raios. Então, eu corri e fiquei o resto do culto no colo da minha mãe”, conta, com um sorriso no rosto e um brilho nos olhos, como se revivesse a memória.
Marlene sempre foi muito ligada à mãe, relação que se estreitou ainda mais depois do falecimento de seu pai Germano Cristiano Paul, para a tuberculose, em 1956. “Minha mãe sempre estava rodeada de netos e parentes, sempre muito lúcida”, conta com carinho.
Sua vida gira em torno da comunidade, da igreja e da localidade. “Aqui a noite é silenciosa, tranquila. Brinco que vou morar aqui até morrer porque tem tudo o que eu preciso ao redor. Não tem porque morar em outro lugar”, diz Marlene.
Além do carinho pela vivência, o bairro rural também guarda as memórias de pessoas importante na vida da professora aposentada: a mãe, o pai, o marido e uma nora, estão enterrados no cemitério do santuário religioso que faz parte, não só da vida de Marlene, mas de muitos moradores de Novo Hamburgo.
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No passado e no presente
Fundada no século 19, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana de Lomba Grande é um dos patrimônios históricos de Novo Hamburgo. A construção, em pedra, foi inaugurada em 5 de março de 1848, quando o santuário ainda pertencia a São Leopoldo. O local segue em funcionamento e, hoje, conta com o envolvimento de aproximadamente 200 famílias, que contribuem para a preservação do espaço.
De acordo com o tradicionalista, escritor e pesquisador Aurélio Strack, autor do livro Lomba Grande conta sua História, em 1834, antes da versão em pedra, teve início a construção da igreja de barro – ‘Lehmkirche’ em alemão – para servir de capela-escola. Por conta da Revolução Farroupilha, o projeto teve atraso de oito anos, sendo inaugurado em 1842.
Seis anos depois, o local deu espaço para a igreja de pedra. O ano de 1848 também é considerado como data da fundação da comunidade local, conforme o pastor Martin Timóteo Dietz, que ministra os encontros no santuário desde 2019. Em 1894, foi inaugurada a nova torre, planejada em quatro anos antes (conforme imagem acima).
A atual estrutura foi construída em 1910 e apresentada ao público em maio do ano seguinte. O que sobrou da estrutura antiga foram os alicerces de pedra laterais.
Além de sua edificação, outros detalhes fazem a diferença. Os sinos, os mesmos que tocaram para Marlene e Reneo em 1966, são datados de 1873 e 1912. “Para completar a obra, no dia 31 de outubro de 1912 foi inaugurado o sino maior, comprado na Alemanha. O sino pequeno é mais velho, pois data de 1873, onde foi colocado em um campanário a frente da igreja. Somente em 1894, após a conclusão da torre, o sino foi colocado na mesma”, explica Strack.
Entre os primeiros tombamentos de Novo Hamburgo
O processo de tombamento durou dois anos, aponta Heitor Meurer, que era o pastor da igreja na época. Ele conta que, entre 2005 e 2007, foram muitas reuniões, entrevistas e buscas por fotos antigas que retratassem a importância histórica do local para a cidade. A comunidade também engajou-se nesse processo. E, assim, o santuário, bem como o cemitério e a Casa Pastoral – que também pertencia a comunidade e foi adquirida em 2011 pelo Município – passaram a fazer parte dos primeiros tombamentos históricos do Município.
No dia 30 de julho de 2007, em um culto festivo, membros da congregação, o prefeito hamburguense da época, Raul Cassel, outras autoridades do Município e comunidade celebraram a homologação do tombamento.
Entre os participantes da solenidade está Reneo, que se casou com Marlene nessa mesma igreja. Na ocasião, ele ajudou a carregar uma pedra da antiga estrutura.
O pastor Meurer lembra que conheceu a localidade em 1997, quando procurava uma propriedade para morar com a sua família. Em 2000, mudou-se definitivamente para a localidade rural de Novo Hamburgo. “A partir daí, nós passamos também a conhecer a história do lugar e da comunidade evangélica local”, conta.
A atual estrutura foi construída em 1910 sobre a mesma base original dos anos 1830. O trabalho inicial foi feito voluntariamente por imigrantes alemães em 1924. “É importante ressaltar esse aspecto, pois o tombamento recupera assim a própria imigração alemã, que completará seus 200 anos em julho de 2024”, ressalta Meurer.
As lápides do cemitério são a confirmação e a memória da importância histórica da ingreja e seu entorno. “Quando buscamos os dados inscritos nas sepulturas, a maioria em pedra gres, verdadeiras obras de arte trabalhadas manualmente. Há lápides datando de 1838, de pessoas que migraram para o Brasil, se estabeleceram na Lomba Grande e lá estão sepultadas”, lembra.
“Para mim é uma lição de vida e histórica poder fazer parte desse processo de tombamento. Não recuperamos apenas a história dos que já partiram mas temos hoje um lugar de fácil acesso, visualmente muito bonito e que serve para pesquisa tanto individual, de famílias que estão trabalhando sua árvore genealógica, como de estudantes que podem ir à fonte de dados importantes relacionados aos 200 anos da Imigração Alemã no Brasil”, avalia Meurer, que, desde 2019, deixou as funções oficiais e tornou-se pastor emérito e membro da comunidade IECLB de Lomba Grande.
Cuidado e preservação que vem da comunidade
“Estamos bem inseridos, sempre dispostos a ajudar no que é possível. Contamos com a colaboração dos membros, todos que trabalham de forma voluntária pela comunidade. Fazemos as promoções, bingos beneficentes, almoços, festas anuais”, esclarece.
Mesmo com reconhecimento do Município, pela questão da preservação histórica do local, o pastor avalia que não vê efeitos práticos do poder público em relação aos cuidados com Igreja e o cemitério. “Imagino que isso [apoio] deveria ou poderia acontecer na forma de fomento financeiro para eventuais reformas”, relata o pastor Martin Timóteo Dietz.
A Secretaria de Cultura de Novo Hamburgo (Secult) esclarece que, mesmo com o tombamento, trata-se de propriedade privada e que, por isso, “é necessário que o proprietário busque projetos, parcerias e recursos para tal finalidade”.
Em conjunto
Conforme a professora do curso de história da Universidade Feevale, Roswithia Weber, o artigo 216 da Constituição Federal de 1988 aborda a relação com o patrimônio material e imaterial e destaca que a preservação do patrimônio cultural depende do conjunto das ações do poder público e da comunidade, pois “o reconhecimento dos laços entre memória e identidade são fundamentais no processo constante de conhecimento, apropriação e valorização da herança cultural de um local”.
A historiadora explica que, dessa forma, o sistema de gestão é descentralizado e que os municípios devem formatar uma legislação própria para a gestão do patrimônio, com a participação de membros da comunidade.
Relíquias preservadas
Na comunidade, um órgão musical de mais de 145 anos é uma relíquia preservada. De acordo com Rechenmacher, o instrumento passou por restauração em 1999, mas não foi preciso trocar nenhuma de suas peças. “Ele está em pleno funcionamento. Quando temos algum organista, sempre é utilizado”, relata.
Outro ponto presevado, são as lápides centenárias no cemitério, que segundo o representante da comunidade, surgiu antes da estrutura do santuário religioso. “Quando os imigrantes chegaram à localidade e precisaram enterrar seus entes queridos”, conta. Ao caminhar pelo local, a deterioração das lápides mais antigas é visível. A data mais antiga encontrada por Rechenmacher, de forma legível, é de 1878.
Afinal, quão importante é um patrimônio histórico e cultural?
Os locais remetem às memórias do passado e trazem uma carga simbólica, além do pertencimento e identidade à população.
A professora Roswithia salienta que a preservação do patrimônio histórico e cultural das cidades contribui para uma qualidade de vida melhor do ponto de vista cultural, além de preservar a história. “As memórias e histórias do passado permitem não só a troca de conhecimentos sobre a trajetória histórico-temporal do município, mas também possibilitam o reforço da identidade e autoestima dos indivíduos e comunidades que tem muito a contar”, diz.
A professora acrescenta que essas memórias também contribuem para a reflexão da trajetória da cidade e a atenção para a necessidade de proteção e valorização dos bens culturais.
Na quinta-feira (17) foi celebrado o Dia Nacional do Patrimônio Histórico. A data tem como objetivo conscientizar a população sobre a preservação dos patrimônios histórico culturais e fortalecer e valorizar os bens de natureza material e imaterial, portadores de identidade, memória, diversidade e tradição. “Por meio do patrimônio histórico cultural podemos conhecer a história e tudo que a envolve”, finaliza.