Historiador Paulo Daniel Spolier lembra que o caminho percorrido por Novo Hamburgo até estes 97 anos começou bem antes da emancipação.
Em 25 de julho de 1824, a primeira leva de imigrantes alemães chega ao porto de São Leopoldo, antiga Feitoria Real do Linho Cânhamo. A esta primeira leva, composta por 43 pessoas, logo aumentou, chegando a mais de 5,3 mil pessoas até o ano de 1830.
Para a região onde atualmente se localiza o município de Novo Hamburgo, nomeada à época como “Costa da Serra”, foram reservados lotes compostos por uma colônia de terras, o equivalente hoje a cerca de 70 hectares.
O lote de nº1, localizado na região onde hoje se encontra o Monumento ao Imigrante e a Sociedade Aliança, foi entregue a Johan (João, em português) Libório Mentz. Ele desembarcou no porto de São Leopoldo em novembro de 1824, na terceira leva de colonos. Foi avô de Jacobina, aquela da Revolta dos Muckers. Bem, mas esta é outra história.
Neste território já havia uma comunidade estabelecida de luso-brasileiros, no Rincão dos Ilhéus, composta por famílias de descendentes de açorianos, chegados ao Rio Grande do Sul a partir de 1752.
Os primeiros colonos alemães que aqui chegaram se instalaram nos arredores do que hoje é Hamburgo Velho, um entroncamento das antigas rotas que seguiam para os campos de cima da Serra, para Porto Alegre e para a região dos Vales. Naquele lugar, conhecido com o passar do tempo como “Morro do Hamburguês”, Hamburgerberg, formou-se um núcleo.
Neste contexto surge outro João: o Peter Schmitt. Na primeira metade do século XIX, ele fixa morada onde hoje fica o museu Casa Schmitt-Presser, na Av. Gen. Daltro Filho. No lugar, monta um negócio de compra e venda.
“Ele comprava o que as colônias produziam de excedente e revendia por aqui e em Porto Alegre. Aí começa a acumular capital e desenvolve um polo diferenciado em relação a outras colônias, que eram agrícolas. Aqui era mais urbanizado para a época”, contextualiza o historiador.
Este polo comercial de Hamburgerberg estimulava um fluxo contínuo de pessoas. “Os colonos começaram a descer para vender queijo, linguiça, aipim, ovos, batata, milho, tudo o que produziam a mais nas propriedades para subsistência. E compravam na venda do Johann Peter aquilo que eles não tinham, como vela, tamanca, sal”, explica Spolier. A estrutura do armazém chegou a ter um posto bancário.
Os negócios, que já iam bem, cresceram durante a Revolução Farroupilha (1835 e 1845). “O Johann Peter ganhou muito dinheiro vendendo para Porto Alegre sitiada pelos farrapos. Neste processo, o irmão dele foi morto e ele perdeu o olho com um tiro. Nesta época rolou muita grana para dentro deste universo colonial”, detalha o historiador.
Esta prosperidade em Hamburgerberg começou a atrair e a revelar talentos. Alemães que haviam atravessado o Oceano Atlântico com o pretexto de serem agricultores começaram a exercer ofícios que realmente sabiam fazer.
Assim, artesão, carpinteiro, ferreiro, sapateiro e até médico ampliaram a mão de obra especializada na colônia. “O pessoal começou a vir pra cá ao ver que era um centro de negócios.”
Chegada do trem no “lugar errado” fez povoado crescer
A chegada do trem fez o povoado de Hamburgerberg trilhar um novo caminho. Em 1867, a Assembleia Provincial aprovou o projeto de um ramal que ligasse Porto Alegre à região colonial. As obras foram iniciadas quatro anos depois. O primeiro trecho de 33 quilômetros até São Leopoldo foi concluído em 1874. O restante da linha, até Novo Hamburgo, entregue dois anos depois.
Só que surpreendentemente o trem não parava em Hamburgerberg. Mas num descampado a três quilômetros do povoado, próximo ao Arroio Luiz Rau, onde hoje fica a Praça do Imigrante. Os engenheiros responsáveis pela obra batizaram a linha como New Hamburg. Nascia assim mais um caminho de desenvolvimento do que viria a se tornar Novo Hamburgo.
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“Hamburgo Velho, que era o núcleo de povoamento, começa então a se espichar em direção à área central da cidade atualmente. Daí surgiram o que hoje são as ruas General Osório, a Domingos de Oliveira, a Júlio de Castilhos, a Joaquim Nabuco, todas estas vias em direção a esta janela aberta para o mundo que foi o trem”, conta o historiador.
Coincidentemente, o dono das terras aonde chegou o trem era Adão Adolfo Schmitt, filho caçula do Johann Peter. Com o dinheiro que ganhou com a estação em suas terras, construiu imóveis como o casarão em estilo neoclássico que hoje abriga a Fundação Scheffel, do ladinho do museu Casa Schmitt-Presser.
Mas seguindo no caminho do trem, entre Hamburgerberg e a estação brotou progresso.
“Do Colégio Santa Catarina até a atual sede da Delegacia de Polícia, havia oito curtumes. Dali para diante isso só cresceu. Foi uma colonização de um novo espaço na cidade”, pontua Spolier.
Apesar da produção de artigos de couro ascender nesta época, o parque fabril do lugar era bem diversificado, entre molduras exportadas para a América Latina, bebidas, móveis requintados, conservas, balas e doces, cigarros e charutos, ourivesaria, metalurgia e atividades que muita gente nem imagina. “Chegou a ter duas fábricas de ônibus. Gente que começou a fazer carreta de boi produziu ônibus e vendeu para todo o Brasil antes da Segunda Guerra.”
Perseguição e oportunidade com Getúlio Vargas no pós-guerra
Já alçado a município, Novo Hamburgo viveu uma dicotomia depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Por um lado, o fantasma de ser uma cidade de colonização alemã. “Teve uma perseguição gigante a qualquer pessoa que falasse alemão”, afirma o historiador Paulo Spolier.
Mas ao mesmo tempo, o governo comandado por Getúlio Vargas no Estado Novo injetava dinheiro na cidade para produção de cinturão, talabarte, coldre, coturno, toda parte de equipamentos de couro para os militares. Fazia parte do projeto de construir um país industrial, de amadurecer um capitalismo moderno por aqui. Isso gerou um frisson na indústria calçadista, que já era forte.
“A quantidade de fábrica de calçados entre 1935 e 1950 triplicou. Foi aí que a produção começou a afunilar para o calçado. Nada dava tanto dinheiro quanto isso. Toda aquela criatividade usada em diferentes produtos foi sendo voltada para este cluster coureiro-calçadista”, detalha Spolier.
Logo, o reconhecimento veio de forma galopante. “Novo Hamburgo chegou a ser chamada por publicação nacional de a Manchester brasileira na década de 1940 pela quantidade de fábricas. No começo da década de 1960, a cidade teve uma arrecadação de impostos maior do que oito estados do Nordeste.”
Novos tempos, novos desafios com as exportações
Na década de 1960, a ida de comitiva ao mercado norte-americano abriu as portas para a exportação, fortalecendo a vocação de Novo Hamburgo para o calçado. As fábricas foram se espalhando pela cidade, os negócios cresciam e mão de obra era essencial.
“As pessoas começaram a vir para cá em ondas. O Hospital Municipal, inaugurado como Operário em 1947, atendia todo este pessoal trabalhador que vinha dos vales do Paranhana, Caí”, conta Spolier.
Logo, não bastou a mão de obra de regiões próximas. “Veio o pessoal do Alto Uruguai, Seberi, Palmitinho, Santo Cristo, todo o Norte, Noroeste do Estado. Vinha o pai, a mulher, a filha de 12 anos e o guri de 20. Os quatro podiam trabalhar nas fábricas e a família ganhar três salários mínimos e meio, três para os adultos e meio para a criança”, detalha o historiador.
“Tinha emprego. Passava uma Kombi na fábrica concorrente perguntando quanto era o vale-alimentação, se tinha refeitório. Havia disputa pela mão de obra.”
Com o fluxo de pessoas, a cidade crescia de forma desordenada. Loteamentos começaram a ser abertos nas áreas periféricas, como Santo Afonso, Rondônia. Era tanta gente que vinha para ocupar onde dava e onde não dava.
Quando o preço do terreno começou a ficar caro no bairro Guarani, na época chamado de África em alusão à forte presença de pessoas negras no lugar, filhos de moradores migraram para área desvalorizada do Primavera, nas imediações de onde hoje está a centenária Sociedade Cruzeiro do Sul, a Cruzeirinho.
“A população negra tinha um rendimento menor porque não era empregada na fábrica, mas no curtume, que pagava menos. Então, este pessoal mais jovem comprou terrenos no alto da Rua da Limpeza, onde hoje é a Osvaldo Cruz. Lá em cima tinha uma estação de limpeza pública, onde eram levados todos os cubos, onde se despejavam os penicos. E na metade do caminho tinha um matadouro municipal. Esta população que não tinha grana teve que comprar os terrenos entre odor de fezes e cheiro de carniça”, detalha.
O crescimento econômico e o fluxo migratório seguiu intenso entre as décadas de 1960 e 1980. “Nunca houve um distrito industrial porque as fábricas eram no meio de áreas da cidade e os trabalhadores moravam ao redor. Todo mundo se deslocava de bicicleta. Brinco que o veículo oficial de Novo Hamburgo na década de 80 era a barra circular e a barra forte, porque era um mar de bicicletas de manhã cedo e final da tarde.”
Depois da queda, foco no futuro
Com a ascensão dos asiáticos e a quebradeira das fábricas na década de 1990, toda esta legião de gente em áreas periféricas se viu sem chão. Na trajetória da prosperidade, surgiu um obstáculo difícil de transpor e que pressionou o poder público.
“Teve prefeito pedindo em telejornal para não virem a Novo Hamburgo porque não tinha mais emprego. Tinha caminhão da Habitação que fazia a contramudança. Quem não tinha emprego era levado de volta para cidade de origem”, lembra Spolier.
“O Sindicato dos Sapateiros chegou a ter 30 médicos e 18 dentistas. Então, os trabalhadores não precisavam recorrer ao serviço público, iam no sindicato. Mas a crise quebrou tudo, calçado, arrecadação e os sindicatos”, detalha.
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O historiador admite que especialmente moradores mais antigos ainda têm dificuldade de deixar a nostalgia para trás da época que Novo Hamburgo foi comparada a Manchester. “Quando a cidade resolveu fazer calçado, todas ao redor também fizeram. Quando virou um polo de serviços depois que quebrou o calçado, os municípios ao redor criaram os seus. Tem que reestruturar a matriz produtiva”, analisa.
Apesar da dificuldade, o tempo de ouro do calçado deixou legado que não se apaga e serve de base sólida para um futuro promissor.
“Ainda tem muito calçado, mas ficou a inteligência, a criatividade. Tem a Universidade Feevale, a Fundação Liberato, Senai, série de lugares na cidade que trabalham com indústria criativa. Vejo muito o pessoal mais jovem abandonando este clima, esta névoa de nostalgia. Eles têm uma outra visão, uma outra perspectiva. E isso não significa abandonar a tradição, mas fazer de um jeito diferente”, acredita.