Moradores já planejam deixar suas casas por receio de reviverem as consequências de uma outra tragédia climática. Esse é o sentimento de famílias que, neste momento, não pensam em voltar para onde viviam, visto que a enchente tomou conta das ruas, pátios e dos ambientes de suas residências.
A marca de água marrom nas paredes, os móveis fora do lugar, a lama grudada nos utensílios da cozinha, a rua e o pátio tomados pela cheia de rios, estão ainda muito presentes na vida de famílias atingidas pela enchente histórica.
Em Novo Hamburgo, há quem volte para casa para a limpeza, desista de viver no mesmo local e alugue um apartamento – como é o caso da extensionista de cílios, Mônica Tamires Brunner, do bairro Canudos – ou quem já pesquisa uma área mais alta e longe de onde tudo aconteceu, exemplo da história do pedreiro Augusto José Bertoldi, 53, do bairro Santo Afonso.
No município vizinho, em São Leopoldo, moradores do bairro Campina têm depoimentos semelhantes. Integrantes de duas famílias, a conselheira tutelar Adeli Fernandes e a auxiliar de marcenaria Erna Malacarne, a Nena, já tinham decidido que não voltariam a morar no endereço afetado pela enchente.
Causas
A professora Caroline de Oliveira Cardoso, do curso de Psicologia da Universidade Feevale, salienta que muitas famílias não conseguem continuar vivendo em áreas atingidas devido a vários motivos. Um deles é o risco recorrente de novos eventos climáticos, porque as enchentes causam danos significativos às propriedades e, também, além do risco físico, o trauma de viver uma enchente pode ter um impacto psicológico importante.
Passar por uma enchente pode ser uma experiência de muito sofrimento para algumas pessoas, especialmente se envolve perdas significativas, como um lar, pertences pessoais e familiares ou amigos. “Em alguns casos, trauma pode resultar em Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), onde o medo e a ansiedade continuam a afetar a pessoa muito tempo após o evento ter passado”, complementa.
Pode acontecer ainda que, mesmo após a água baixar, o medo de que outra enchente possa acontecer novamente permanece. “Esse medo pode impedir que as famílias se sintam seguras em suas próprias casas, levando a um estado de alerta e ansiedade.”
Outro ponto é que a enchente quebra a sensação de normalidade e rotina, que são fundamentais na estabilidade psicológica. “O esforço para reconstruir a vida no mesmo local pode ser emocionalmente exaustivo e desencorajador. Para algumas famílias que passaram por essas experiências traumáticas, permanecer pode ser uma lembrança constante do trauma vivido e por ser muito difícil se manter no mesmo local”, arremata.
Abrigos
A professora de Psicologia Vilene Moehlecke, da Escola de Saúde da Unisinos, salienta que há pessoas que conseguem voltar mais facilmente para o local atingido, mais resilientes de um processo de reconstrução, e outras já vivenciam um sofrimento maior, tornando-se muito mais complicado esse retorno.
“É difícil falar em conselhos, mas o que temos vivenciado, nos diversos grupos e rodas de conversas que estamos realizando em abrigos de São Leopoldo, é que um processo de reconstrução demanda uma rede de apoio, um processo de escuta conjunta, um compartilhamento das realidades e das necessidades. Assim, há pessoas que vão permanecer em abrigos por mais tempo. E, nesse caso, temos construídos espaços de grupo, para ser possível a humanização dos processos de cuidado, bem como a coletivização das experiências que necessitam de reconstruções e recomeços”, acrescenta.
Apartamento em outro bairro
Mônica, seu esposo, o pedreiro Nelson Müller, e as filhas Monique Brunner Müller, 11, Ísis Helena Brunner Müller, 9, e Alice Brunner Müller, 7, já deixaram a casa na Vila Esmeralda, no bairro Canudos.
A casa da família praticamente sumiu durante a enchente, a quarta desde abril do ano passado. Imagens feitas no auge da cheia deixaram à mostra somente parte do telhado. Na sexta-feira (31), seu marido tirou o que restou. Uma montanha de móveis, roupas, madeiras, gesso de parede, foi colocada em frente da casa.
A família já decidiu que manterá a casa fechada e viverá de aluguel, no bairro Rondônia, desde 12 de maio, enquanto tenta o benefício de aluguel social.
“A gente se sente triste, porque a casa terá que ficar fechada e, sinceramente, da Prefeitura não tivemos apoio ou retorno algum sobre o aluguel social. Eu já liguei várias vezes, eles me passam pra vários lugares e não respondem se eu tenho direito ou não a isso”, relata.
Ela e seu marido trabalham como autônomos, o que afetou a geração de renda durante a enchente. Por conta dessa situação, tiveram a ajuda da igreja Ministério Verbo da Vida para o recomeço no novo endereço.
“Eles nos ajudaram a comprar os móveis, tudo para colocar dentro desse apartamento onde a gente está morando agora”, relata, complementando que escolheram o novo bairro porque é mais alto.
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Pesquisa em andamento
Há quem já pesquise uma área mais alta e longe de onde tudo aconteceu. É o caso de Bertoldi. Morador da Vila Palmeira, no bairro Santo Afonso, ele, a esposa, a dona de casa Cleuci Antunes de Oliveira, 45, e o filho Gabriel Antunes Bertoldi, 8, estão vivendo de aluguel na Rua Caracas.
A casa dele ainda está com água. Até quinta-feira da semana passada (30), o único meio de transporte para chegar nela era de barco. “A mulher está apavorada. Ela não tem coragem de voltar. É uma casa que vimos tudo ruir. Fizemos para ser uma casa segura, mas, infelizmente, a água foi até o telhado. Meu filho também está assustado”, conta, enquanto mostra imagens das ruas que levam até a casa. Ainda parece um rio sobre o asfalto.
O pedreiro, que vivia há 27 anos na casa atingida pelas águas, a construiu do zero depois da enchente de julho de 2023 ter derrubado a antiga moradia de madeira. “Tive que colocar a casa ao chão. Cheguei no patrão e fiz um acerto com ele. Com o dinheiro, construí uma nova casa, com mais de R$ 60 mil só em materiais, porque eu mesmo construí. Os móveis eram todos novos. Fiz super reforçada a casa”, relembra.
Para ele e sua família, o futuro é longe daquele lugar. “A gente pensa em um lugar mais alto, mais seguro. Eu até ‘tô’ negociando, ‘tô’ olhando umas chacrinhas lá pra Lomba Grande, que não é tão fora do comum o preço. É um lugar seguro e, embora fique longe de tudo, pelo menos vamos estar num local seguro, das águas pelo menos”, relata o pedreiro, que critica o descaso da Prefeitura com a situação do bairro Santo Afonso.
“Eu tenho aluguel aqui por meio ano. Depois disso, a gente vai decidir, mas provavelmente a gente já vai para um local novo. A casa lá não tem condições de voltar”, complementa.
O relato de Bertoldi não é exclusividade. Ao encontrar outros moradores na Associação Comunitária do bairro Santo Afonso, onde buscam marmitas, cestas básicas, roupas e outros itens para a retomada da vida, a conversa é a mesma. “Eles [outros moradores] dizem que estavam bem, mas que não tinham mais casas para voltar e que não iriam mais retornar [para o mesmo local]”, relata.
A presidente da Associação, Angélica Dias de Souza, sustenta o comentário de Bertoldi. “Há medo de acontecer novamente, de comprar tudo de novo, mobiliar a casa e novamente ter outra enchente. As pessoas estão muito traumatizadas. Há aqueles que limpam, mas muitos não têm como voltar porque não tem nem casa. Acho que pode acontecer do bairro ter uma redução de moradores por essa questão do trauma”, prevê.
Mudanças para o Centro de São Leopoldo e Estância Velha
Duas famílias do bairro Campina, fortemente atingido pela enchente em São Leopoldo, também decidiram que não voltarão para as casas onde moravam.
Adeli deixou a casa na Rua Catimbau para morar no Centro de São Leopoldo. Ela, que vivia há 21 anos com os filhos Rafael Fernandes Roveda, 38, e Caroline Fernandes Daudt, 19, na Campina, conta que saiu de casa no dia 3 de maio. As economias que tinha para reformar a casa serviram para o aluguel de um ano em um apartamento.
“Sou mãe solo, comprei o terreno, construí a casa. O meu lugar era lá. Era minha vida, É complicado estar em outro espaço. É triste, pois destruiu todos os sonhos”, falou ao telefone com a voz embargada, demonstrando a emoção da perda da casa para a enchente.
Já Nena saiu da Rua Pampeiro para viver em uma casa nos fundos da residência do filho em Estância Velha, cidade que deverá ser sua morada futura. Seu filho, o marceneiro Rodrigo Malacarne, 25, conta que já tinha planejado construir sua casa para viver com a namorada. A diferença é que agora terá que acomodar sua mãe e seu pai, o aposentado Moacir dos Santos, 63.
“Todo esforço deles, que gastaram muito para reforma e compra de móveis novos, agora foi perdido. Infelizmente, nem todos os parentes vão conseguir sair da Campina, mas nós iremos comprar em Estância Velha”, relata o jovem após a declaração de sua mãe: “Eu não quero voltar mais para lá”, concluiu Nena.
Fases da nova adaptação
A professora do curso de Psicologia explica qual o passo a passo que as pessoas que saem de locais atingidos pelas águas e que se mudam para outras regiões podem passar durante essa nova adaptação e como os envolvidos podem lidar com a situação:
1 – Não julgue emoções: deixar para trás um lar e uma comunidade pode ser uma das decisões mais desafiadoras e emocionalmente intensas que alguém pode enfrentar. Durante esse período de transição, é esperado sentir uma gama complexa de emoções, incluindo tristeza, raiva e medo. Permitir-se vivenciar essas emoções sem julgamento é importante, sendo que processá-las é um passo essencial para a recuperação emocional;
2 – Fase de ajuste: embora o começo possa ser difícil, é importante reconhecer que essa fase de ajuste é um processo. Com o tempo, a tendência é que as coisas comecem a se organizar e se estabilizar;
3 – Novas rotinas: estabelecer novas rotinas pode desempenhar um papel fundamental nessa organização. As rotinas não apenas ajudam a dar estrutura ao dia a dia, mas também podem proporcionar uma sensação de normalidade e controle em meio a mudanças;
4 – Rede de apoio: conversar com amigos, familiares ou profissionais de saúde mental pode oferecer o suporte necessário. Essas conexões podem fornecer conforto e perspectiva;
5 – Manter conexões com antiga comunidade: enquanto você muda de local, não é necessário perder o contato com as pessoas queridas de sua antiga comunidade. Manter essas conexões antigas enquanto se abre para criar novas pode enriquecer sua rede de suporte e facilitar a transição. É esperado que o processo seja desafiador, mas, com o tempo, as coisas tendem a encontrar um novo equilíbrio. Estabelecer rotinas, buscar suporte e conectar-se com outros pode aliviar o peso da mudança.