Um lar de idosos de Novo Hamburgo é investigado pela Polícia Federal por suposta coação eleitoral de idosos que residem no local. De acordo com familiares de uma das vítimas, a proprietária e a gerente da clínica geriátrica teriam levado pelo menos 12 pacientes para votar em Jair Bolsonaro (PL), para a presidência da República, e em Onyx Lorenzoni (PL), ao governo do Rio Grande do Sul, no segundo turno das eleições, no dia 30 de outubro. A instituição nega. Diz que levou os idosos às urnas a pedido deles.
Entre os pacientes levados está um idoso de 65 anos que possui mal de parkinson, uma doença neurológica. A irmã da vítima conta que soube que ele foi votar porque naquele domingo ligou para conversar e o idoso falou que foi levado e votou em Bolsonaro. A mulher ficou espantada, pois a família não havia sido avisada e nem dado autorização para a saída do lar. Então ela ligou para os sobrinhos, filhos do idoso, que também ficaram surpresos. Ela ainda conta que enquanto conversava com o irmão pelo telefone, sentia ele tenso, como se estivesse sendo observado e não pudesse falar tudo o que havia acontecido. A família prefere manter as identidades em sigilo por questão de segurança.
Desconfiada, a irmã do homem decidiu acessar o site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para saber se ele realmente havia votado, mas deparou com uma mensagem que informava que somente a partir de 8 de novembro os comprovantes estariam disponíveis no sistema.
Na terça-feira seguinte ao pleito, 1º de novembro, a mulher foi visitar o irmão na clínica onde ele morava há cerca de um ano e meio. “Estranhei que naquele dia ele e a [nome da gerente] estavam na frente da casa, algo não comum”, conta. Ela foi ao local com a intenção de descobrir se o que o irmão havia falado pelo telefone era verídico. “Para a minha surpresa, a própria [nome da gerente] contou que ele foi votar no domingo e votou no Bolsonaro. Entramos numa discussão, pois meu irmão nunca foi alinhado à direita. Inclusive ele nem votava mais desde o segundo turno das eleições de 2018 por dificuldades de locomoção. Nem nas municipais de 2020 ele quis ir votar. Sem contar que em nenhum momento eles nos procuraram.”
Dias após, a família buscou o idoso para conversar sobre o ocorrido. Então ele disse que nos dias que antecederam o primeiro turno, a proprietária e outros funcionários já falavam que se o atual presidente da República não se reelegesse, a casa fecharia as portas e os moradores teriam que procurar por outro local. Familiares do idoso também lembram que, em uma das visitas ao lar, a proprietária fez comentários semelhantes, inclusive mencionando que se Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vencesse as eleições, ela fecharia a casa e se mudaria para a Itália.
“Insistência e coação”
De acordo com o idoso, após o primeiro turno as coisas pioraram. As ameaças sobre o local fechar eram mais constantes. No dia da votação, o idoso conta que as insistências começaram pela manhã e que, quando acabou cedendo, avisou que não tinha os seus documentos. Nisso, a gerente teria dito que no local de votação “veriam como fariam”.
A família conta que o idoso foi levado ao Colégio 25 de Julho, no bairro Rio Branco, para votar com uma cópia do Registro Geral (RG) que fica na clínica. No local, o número do CPF não estaria visível na cópia apresentada, mas como ele possui tatuagem no braço da numeração deste documento, teria sido autorizado dar continuidade ao processo para votação. No entanto, conforme o Cartório Eleitoral de Novo Hamburgo, as normas do TSE exigem a apresentação de documento original com foto ou o aplicativo e-Título para poder votar.
Além disso, o idoso relatou à família que teve que assinar um termo de autorização para que a gerente da clínica pudesse ir com ele até a cabine de votação. Lá, a mulher teria exigido que ele votasse em Onyx e Bolsonaro. “Cheguei lá e me surpreendi, quando fui na cabine, a [nome da gerente] foi junto comigo. Ela disse que iria me acompanhar para ver se eu iria fazer certinho. ‘Tu vota no 22’. Eu fiquei constrangido porque eu iria votar no Lula”, conta o idoso.
“Foi um crime o que fizeram contra ele. Já que o levaram, o que mais incomodou foi o fato dele não votar em quem ele queria”, desabafa a irmã do idoso.
Familiares de outro idoso que reside na casa afirmam que o parente contou que viu as movimentações no dia das eleições e que a clínica teria oferecido translado “caso fosse para votar em Bolsonaro.” A família tem medo de se identificar e revela que parentes de outros moradores do lar também estão receosos desde que o caso veio à tona.
Em nota, o lar de idosos afirma que “relatos não procedem, em razão da instituição de longa permanência ser imparcial, sem vínculo político”, além de prezar “pelo bem-estar e dignidade de seus hóspedes”. O documento ainda diz que o idoso teria solicitado ir votar e que “este é lúcido e orientado, sua patologia não o interditou”. O comunicado enfatiza que o idoso “não está dispensado de suas obrigações eleitorais na inteligência do artigo 14, parágrafo 1 da Constituição Federal, sob pena de sofrer as sanções da norma eleitoral”.
Contra a vontade
De acordo com a filha do idoso, ainda antes do primeiro turno, ela perguntou se o pai gostaria de votar neste ano. Ele respondeu que não, pois seria muita função em relação ao deslocamento, por conta da sua dificuldade de locomoção.
O idoso disse que aceitou ir no dia das eleições para que não fosse mais incomodado pela proprietária e pela gerente, que passaram o dia insistindo. Elas teriam dito que ele perderia regalias, como biscoitos dados fora dos horários. Ele também estava com receio de que fosse mal tratado por não ir votar. “Eu me vendi para ser bem tratado”, disse o idoso à sua irmã após o ocorrido.
Para a filha, o caso é revoltante. Ela afirma que havia respeitado o desejo do pai de não registrar o voto e que, no caso dele ter interesse, teria o levado às urnas. Ela também criticou a indução do voto.
Conforme os familiares, quando questionada, a proprietária disse que o homem não é interditado e que poderia votar. Disse ainda que o levaram para que votasse com neutralidade e que a gerente apenas o acompanhou até a urna, pois ele havia assinado uma autorização.
A reportagem questionou o Cartório Eleitoral do Município sobre alguma ocorrência envolvendo a situação relatada pela vítima, inclusive sobre a forma de identificação para a votação. O cartório respondeu que não recebeu nenhuma notificação judicial sobre o caso até a quinta-feira (24) e reforçou que as formas de identificação são as solicitadas pelo TSE, informadas anteriormente.
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Quebra de confiança
Embora no contrato não houvesse cláusula específica sobre as saídas do lar com a equipe da clínica, a família conta que havia um acordo entre as partes para que sempre houvesse aviso prévio sobre as saídas do idoso do local. Para qualquer saída com terceiros, a clínica precisava pedir a autorização da filha, que é a tutora do idoso. Nessas situações, sempre teve contato, segundo os familiares.
Perante o caso das eleições, para os parentes do homem coagido, a confiança foi quebrada. “Pra gente, a confiança de deixar meu pai lá acabou. Se são capazes de levar idosos assim pra votar, do que mais seriam capazes?”, questionou o filho da vítima. O idoso foi retirado do lar pelos familiares e levado para morar em outro no dia 19 de novembro.
O filho do idoso denunciou o caso à Promotoria de Justiça Cível de Novo Hamburgo no dia 21 deste mês. Os relatos foram encaminhados pela promotora Juliana Maria Giongo à Polícia Federal por tratar-se de eventual crime eleitoral. O também foi encaminhado à 1ª Delegacia de Polícia de Novo Hamburgo, e de acordo com o delegado Tarcísio Kaltbach, um inquérito policial foi instaurado.
Detalhes da ocorrência não foram divulgados pelo delegado. “Precisamos fazer as oitivas dos envolvidos e demais diligências. Por enquanto, não há informações novas, é muito cedo para ter uma manifestação da Polícia”, afirma.
“Estamos sofrendo injúrias e ameaças”, diz dona da clínica
A proprietária do lar de idosos afirma que a sua empresa está “sofrendo injúrias, difamação, entre outros crimes”. De acordo com ela, os relatos das famílias não são verdadeiros. A empresária conta que no dia do segundo turno havia se prontificado para levar um casal residente do local para votar, a pedido da filha deles que mora fora do Brasil.
A gerente estava de folga naquele dia, mas, segundo a proprietária do lar, a mulher teria ido ao local para levar algumas coisas de um churrasco que teria sido feito no dia anterior. Quando viu a funcionária, o idoso teria pedido para registrar seu voto, e como o local de votação ficava no caminho de onde a empresária votaria e levaria o outro casal, decidiu levar o homem. Segundo ela, o idoso portava o documento de identidade.
A gerente teria acompanhado o idoso na sua sessão de votação, pois ele possui dificuldades de locomoção. Ele teria apresentado o seu documento e votado, sem qualquer indução a candidatos. A empresária afirma que o homem havia revelado que votou em Bolsonaro e que a decisão foi pessoal. Ele teria relatado que na infância o seu pai trabalhava para partidos de esquerda e teria sofrido injustiças, o que levou o idoso a votar no candidato de direita.
“No residencial nunca foi feito nenhuma campanha política”, afirma a proprietária. Ela ainda fala que a irmã do idoso teria iniciado uma discussão com Sandra e acusado aos funcionários por induzir o voto do homem.
A mulher afirma que desde que o caso ganhou notoriedade passou a receber diversas ameaças e xingamentos. Ela disse que teme pela sua segurança, da sua família, dos funcionários e até mesmo do lar. A empresária relatou que já registrou boletim de ocorrência na Polícia Civil.