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EXPLORAÇÃO DO TRABALHADOR

Escravidão moderna desafia Justiça na identificação de práticas exploratórias

Recente caso de Novo Hamburgo chama atenção para como ações que parecem de caridade podem esconder crime trabalhista

Eduardo Amaral
Publicado em: 06/08/2024 às 19h:24 Última atualização: 06/08/2024 às 20h:55
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O recente caso de dois trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão em Novo Hamburgo mostram como essas situações podem passar despercebidas pela população. Diferente de casos que costumam ganhar a atenção social, este aconteceu em meio a região mais urbanizada de uma das grandes cidades da região metropolitana, e na área central da cidade, não em um local afastado e de pouca movimentação.

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Alojamento em que homens ficavam era precário | abc+



Alojamento em que homens ficavam era precário

Foto: MPT

Por oito anos, um dos homens resgatados trabalhou por até nove horas diárias. Segundo os depoimentos colhidos pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) de Novo Hamburgo, o trabalhador estava em situação de rua quando foi contratado para receber R$ 200 por semana, totalizando cerca de R$ 800 mensais.

Contudo, ao dizer ao contratante que precisava de um lugar para ficar, este ofereceu um imóvel sem portas, luz elétrica, água encanada e banheiro. Mesmo assim o pagamento começou a variar entre R$ 20 e R$ 30 semanais. Cabe lembrar que em 2018, seis anos atrás, o salário mínimo era de R$ 954, e de R$ 880 em 2016, portanto há oito anos.

Natural do Piauí, após seis anos vivendo nestas condições, ele negociou uma saída com o empregador na qual receberia R$ 5 mil e as passagens para voltar ao Piauí, sua terra natal, de onde veio há 20 anos. O homem responsável aceitou o acordo e chegou a comprar as passagens, mas na hora do pagamento ofereceu apenas R$ 600, e se recusou a devolver os documentos de identificação que tinha pego para comprar a passagem. Este foi o ato final da relação que fez com que o trabalhador piauiense recusasse o dinheiro e procurasse a Justiça.

Já nesse momento outro homem, este natural do litoral norte, começava a prestar serviços para o contratante nas mesmas condições. Motorista de aplicativo, ele aceitou a oferta de ficar responsável pela segurança do local, além de varrer e fazer compras para o contratante. O objetivo dele era tentar recuperar o carro e voltar ao trabalho de origem.

Escravidão moderna

Sistema de trabalho forçado que marcou a economia brasileira ao longo de mais de dois séculos, a escravidão deixou de ser entendida apenas como a situação onde uma pessoa se torna propriedade de outra, como explica a procuradora do MPT de Novo Hamburgo, Mônica Fenalti Delgado Pasetto.

“O trabalho escravo contemporâneo possui requisitos específicos e dentre eles estão as condições de alojamento e a retenção de documentos”, detalha ela, responsável pelas investigações.

De acordo com ela, os trabalhadores em situações que remetem à escravidão não estão necessariamente presos fisicamente aos contratantes. “O trabalhador pode andar livremente e ainda assim estar em situação de vulnerabilidade tão grave que acaba aceitando uma condição dessas de trabalho”, resume Mônica.

Falsa caridade

O caso de Novo Hamburgo chama atenção por algumas situações específicas, e a primeira é o fato de que a casa onde os dois trabalhadores foram alojados estava em um terreno que sequer pertencia ao contratante. Fato que os trabalhadores só vieram a saber quando os verdadeiros donos do lote, localizado no bairro Pátria Nova, tentaram entrar no local.

Vizinho do terreno, o contratante tomou posse do local, colocando cerca elétrica e muros, mesmo sem ser o dono. Os trabalhadores tinham como responsabilidade justamente cuidar da área onde estava a casa, além de prestar outros serviços em outras propriedades do contratante.

Como ambos viviam em situação de rua quando contratados, a situação se desenha para muitas pessoas que veem de fora como uma ajuda, o que não passa de uma máscara para exploração do trabalho, como ressalta a procuradora Mônica. “É a exploração do outro com uma maquiagem da caridade.”

O processo agora segue tramitando na Justiça do Trabalho, e o homem pode ter de responder por dano moral coletivo além dos processos trabalhistas.

Somente neste ano, o Rio Grande do Sul teve 68 trabalhadores resgatados de situações semelhantes.

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