IDENTIDADE DE GÊNERO

Aluna de Novo Hamburgo dribla falta de informação e terá nome social nos registros escolares

Jovem trans de 16 anos será a primeira estudante do Colégio Senador Alberto Pasqualini a exercer direito previsto em lei. Iniciativa da família impulsionou escola da rede estadual a buscar conhecimento sobre o tema

Publicado em: 22/02/2023 06:00
Última atualização: 18/03/2024 17:24

A volta às aulas na próxima quinta-feira (23) marcará a vida de uma aluna de Novo Hamburgo e a história do Colégio Estadual Senador Alberto Pasqualini. É que neste ano letivo, pela primeira vez, Lívia* terá seu nome social incluído na chamada e nos documentos do educandário. Uma conquista para a jovem e um avanço para a escola. A adolescente, de 16 anos, é a primeira estudante trans a reivindicar esse direito na instituição de ensino, que acumula 77 anos de atividades.

"Ela está bem feliz, bem mais animada para ir à escola, que era uma das coisas que era sempre 'uma função', porque ela queria ir vestida 'de menina', usar maquiagem, ir do jeitinho que ela queria, e isso sempre foi um transtorno", conta a dona de casa Solange*, mãe da aluna do 9º ano.


Aluna de Novo Hamburgo garante direito de ter o nome social nos registros escolares Foto: Ubiratan Júnior/GES-Especial

Embora tenha se identificado como trans há cerca de dois anos, foi somente na metade de 2022 que a adolescente passou a usar na escola peças associadas ao gênero feminino. E foi além: disse à mãe que gostaria de ser chamada de Lívia pelos colegas. "Ela queria ser chamada pelo nome que ela tinha escolhido", relata Solange, citando que o processo de descoberta começou ainda na infância.

Desde muito cedo, a gente sabia que ela era diferente, desde muito pequena, só que a gente não tinha muitos conhecimentos, não sabia direito como lidar. Então, procuramos uma psicóloga para tentar descobrir o que seria 'a Lívia'.

O desejo da estudante, apesar de legítimo, esbarrou na falta de conhecimento sobre o assunto – uma questão estrutural. A mãe da aluna conta que, ao acionar a escola, a direção e a coordenação não tinham informações sobre o direito do uso do nome social naquele ambiente. Logo, o pedido foi negado. "[A escola] disse que não [sobre a alteração]: 'A gente não pode fazer isso, não tem esse direito'", lembra Solange.

O direito, contudo, é assegurado por lei. A Resolução Nº 1, de 19 de janeiro de 2018, do Ministério da Educação garante a possibilidade de uso do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares da educação básica. Segundo o documento, a solicitação pode ser feita tanto por alunos maiores de 18 anos, sem necessidade de mediação, quanto por alunos menores, com respaldo dos responsáveis legais. Em nenhuma faixa etária, o uso do nome social depende de realização de cirurgia (redesignação sexual), nem de laudo médico ou psicológico.


Lívia passou a usar o banheiro feminino da escola em meados de 2022 Foto: Ubiratan Júnior/GES-Especial

Além do desafio imposto pelo ineditismo da solicitação à escola, a mãe conta que teve de enfrentar outro constrangimento – um pedido da instituição para que a filha deixasse de usar o banheiro feminino, espaço que a aluna havia passado a frequentar desde que se assumira como Lívia.

O uso do banheiro teria sido condicionado à realização de cirurgia de redesignação sexual. A coordenação quis saber se a estudante já tinha passado pelo procedimento. "Eu disse: 'Não, claro que não. Ainda nem conseguiu trocar a documentação, a gente ainda está no começo de um processo de transformação'", relata Solange. Apesar do pedido da escola, Lívia continuou usando o banheiro feminino, que é separado por cabines individuais.

O advogado Henrique Abel, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - Subseção Novo Hamburgo, salienta que, dentro do ordenamento jurídico, não há margem para diferentes interpretações quando se trata da garantia de uso do banheiro adequado por pessoas trans. "Qualquer iniciativa restritiva em sentido contrário configura evidente discriminação, fruto de reações irrefletidas de pânico moral, fundado em preconceitos velados ou explícitos", afirma.

Da solicitação à realização

Mais do que mudar a vida de Lívia, o processo de inclusão da aluna transformou o ambiente escolar. A diretora do Pasqualini, Eleisa Mathias, reforça que a jovem foi a primeira na história do colégio a pedir o uso do nome social e reconhece as falhas, do ponto de vista institucional, que passaram pelo desconhecimento sobre o tema.

Lívia foi a primeira na história do colégio a pedir o uso do nome social Foto: Ubiratan Júnior/GES-Especial

"Quando ela [Lívia] me procurou, eu ainda não tinha todas as informações sobre isso. Precisei, inicialmente, procurar orientações junto à 2ª CRE [Coordenadoria Regional da Educação] para que o processo pudesse ser feito da forma correta", afirma a diretora. "Uma vez recebida as orientações, procedemos com a troca do nome", acrescenta.

O pedido foi feito na metade do ano passado, mas a alteração do nome nos registros escolares só foi efetivada no ato da rematrícula, em novembro de 2022. Por isso, somente no ano letivo de 2023 a aluna terá o nome social incluído na lista de chamada da turma.

A diretora da escola afirma que a demora até a confirmação se deu por conta da "busca de procedimentos legais" e não por obstáculos impostos pela instituição. A família, contudo, considera que, além da lentidão, o preconceito e a falta de informação acerca do assunto são barreiras a serem vencidas pela comunidade escolar. "As escolas deveriam estar mais preparadas para isso, deveriam ter um suporte", defende Solange.

Combate ao preconceito

A diretora sublinha que o colégio sempre se preocupou com inclusão e diversidade. "Esses temas são trabalhados em diversas disciplinas e por vários professores."

Sobre as reações da comunidade escolar quanto à transformação de Lívia, a diretora enfatiza que se trata de um processo. "Com os professores, está supertranquilo. Em relação a alguns colegas e a algumas famílias, como toda transformação na sociedade, pressupõe-se um processo de conscientização e aceitação", observa.

Lívia usará nome social na escola pela primeira vez em 2023 Foto: Ubiratan Júnior/GES-Especial

Enquanto isso, a preocupação de Solange com a filha é constante, e não é à toa. O mais recente levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), de janeiro deste ano, aponta o Brasil como o País que mais mata pessoas trans no mundo. A grande maioria das vítimas, conforme dados de 2022, tem entre 15 e 40 anos. A dona de casa diz que teme quando a jovem sai sozinha na rua. "É horrível saber que as pessoas são tão preconceituosas", desabafa a mãe, que sofre junto com a filha ao ouvir comentários maldosos sobre sua aparência.

Quando passou a vestir roupas consideradas "de menina", a estudante notou a mudança de comportamento por parte de alunos de outras turmas.

Os colegas de classe acompanharam a transição. Alguns com mais naturalidade, outros menos. Para a menina, o constrangimento maior se dava quando havia junção de turmas e a professora chamava seu nome de batismo para confirmar presença. "Eu ficava envergonhada, pois ficavam me olhando sem entender quando eu respondia."

A partir de agora, será diferente. Por isso, a aluna procura encarar este novo ano letivo como um recomeço. Para a diretora, o caso de Lívia serviu de aprendizado para o educandário e poderá inspirar outras instituições a se preparem para melhor acolher os estudantes. "Com certeza estamos preparados se tiver outros casos de uso de nome social", garante.

*Os nomes da aluna e da mãe são fictícios para preservar a identidade da jovem, conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Desenvolvimento e acolhimento

A psicóloga Malu Meinhart, doutoranda em Processos e Manifestações Culturais na Universidade Feevale, explica que o acolhimento de crianças e adolescentes que não se identificam com o gênero pressuposto pelo sexo biológico é importante em todas as esferas: família, escola, sociedade como um todo. 

Para a pesquisadora, no ambiente escolar, os sujeitos devem ter a oportunidade de "se expressar e manifestar sua identidade e sua subjetividade livremente, sem amarras, julgamentos, sentindo neste espaço a confiança necessária para a afirmação de si mesmo enquanto um sujeito potente, com possibilidades de vida que vão além dos dados tristes do Brasil em relação às crianças transexuais".

De acordo com a Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil, cuja publicação mais recente foi em 2016, 55% das pessoas trans entrevistadas afirmaram ter ouvido comentários negativos especificamente sobre pessoas trans. O mesmo levantamento aponta que 68% já foram agredidas verbalmente e 25% sofreram agressões físicas tendo como motivação a identidade ou expressão de gênero.

Diante desse cenário, garantir a permanência de jovens trans na escola tem se mostrado um grande desafio. Entre os obstáculos estão dificuldades de convívio social e violências cotidianas. O Ministério Público gaúcho afirma que atua permanentemente para evitar a evasão escolar. "Foi desenvolvido o Projeto Institucional Busca Ativa e Recuperação de Aprendizagens no âmbito do qual todas as questões relativas ao afastamento de alunos podem ser trabalhadas, incluindo situações de discriminação que acontecem por questões de gênero e sexualidade e também de raça, etnia, obesidade e entre outros", explica Carla Lara Adami da Silva, promotora substituta da Promotoria Regional de Educação de Novo Hamburgo.

Para além do acolhimento, a psicóloga e doutoranda da Feevale salienta que as instituições de ensino precisam estar em constante movimento, provocando reflexão crítica e não apenas reproduzindo conteúdos pré-programados.

"Fazer da escola um espaço de questionamento, um espaço para duvidar, movimentar, inventar e criar possibilidades de vida que não aquelas que estão dentro do que chamamos de 'normal' é fundamental para que professores, crianças, adolescentes, equipes pedagógicas, famílias e a sociedade como um todo possam construir um modo de acolher e legitimar as existências de 'todes'", finaliza.

Como pedir a inclusão do nome social

De acordo com a Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul (Seduc), desde 2018, estudantes com 18 anos completos podem, por meio do preenchimento de um formulário, fazer a solicitação de uso do nome social no ato da matrícula. No caso de alunos menores de 18 anos, o requerimento deve ser assinado pelos pais ou responsáveis legais.

A medida visa a garantir o acesso, a permanência e o êxito desses cidadãos no processo de escolarização e de aprendizagem, conforme preconiza a Constituição Federal.

Sobre a situação vivenciada por Lívia, a Seduc informou que a rede estadual "vem oferecendo diversas formações para orientar professores (as) e equipes diretivas sobre esse direito assegurado por lei". A pasta acrescenta que "servidores (as) que desrespeitarem as normativas estão sujeitos (as) a sanções penais e criminais, com a possibilidade de instalação de processos de sindicância para averiguação das ocorrências".

Quase 400 pedidos na rede estadual

A Seduc afirma que, apenas em 2020, por meio de uma portaria, a rede passou a coletar a informações a respeito do uso de nome social nas escolas, e que a pandemia prejudicou o levantamento de dados. Conforme a pasta, a partir deste ano, haverá uma padronização das informações coletadas com o objetivo de desenvolver série histórica sobre o assunto.

Em 2022, dos 777 mil estudantes matriculados na rede estadual do RS, 388 usavam nome social – 138 com nome masculino e 250 com feminino. Na região de cobertura do Grupo Sinos, nos núcleos das Coordenadorias Regionais de Educação (CREs) de São Leopoldo, Canoas, Gravataí e Caxias do Sul, 125 alunos usavam nome social no ano passado.

Os dados parciais de 2023 não foram informados pela Seduc, pois, de acordo com a pasta, o processo de matrículas e de transferências escolares ainda não havia se encerrado. 

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