Em toda reta final de ano surgem questionamentos sobre o significado do Natal nas mais variadas formas. Oficialmente a data celebra o nascimento do homem que viria a influenciar toda a civilização ocidental. A tradição conta que Jesus de Nazaré veio ao mundo pobre e em condições nada convidativas ao parto.
Com o passar dos séculos e milênios a data foi ganhando um tom mais comercial, com a distribuição de presentes e a ceia sendo consideradas como fundamentais. Mas o que se poderia esperar de uma pessoa que foi ter seu primeiro contato com o Papai Noel apenas aos oito anos de idade, e mesmo assim sem ganhar nenhum presente?
Talvez fosse possível imaginar que alguém com esse histórico tivesse até mesmo aversão ao Natal, mas não é o caso de Juvelina Nascimento Fraga, mais conhecida como dona Beia, de 63 anos. Há mais de 20 anos a moradora do bairro Santo Afonso, em Novo Hamburgo, transformou a data em um momento de entrega pessoal para que outras crianças possam ter a experiência dos presentes.
Já tradicional, a Festa de Natal organizada por ela na rua Planalto ganhou destaque no Jornal NH mais de uma vez. Recolhendo doações de comidas e brinquedos, ela organiza e realiza o evento anualmente, mesmo que a própria não tenha muito para dividir.
Festas de Natal para crianças que vivem em condições financeiras pouco, ou nada, favoráveis, não chegam a ser uma grande novidade. É comum nesta época do ano que pessoas e grupos, muitas vezes de classe média e alta, abracem-se no sentimento cristão de piedade e visitem comunidades que pouco veem durante o ano.
Mas o que difere Dona Beia desses casos é o fato de que ela não está pisando em terra estrangeira, já que a festa acontece no quintal da sua casa e só é possível graças às doações que amealha junto a vizinhos e comerciantes de toda a cidade. “Consegui, caminhando de sol a sol, porta a porta eu pedia bala, pirulito pipoca, bolacha o que eles podiam me alcançar”, relembra ao falar do primeiro ano de festa.
Promessa para não passar fome
Sentada no sofá da sala simples levantada em madeira, dona Beia lembra qual a motivação inicial para começar o trabalho: os filhos. Ao falar sobre eles, que hoje são todos adultos, ela bate as mãos na barriga para dizer “três daqui”, em referência aos meninos a quem deu a luz, para na sequência bater no peito dizendo “três daqui”, em referência às duas meninas e o menino adotados.
Natural da cidade de Coronel Bicaco, no Noroeste gaúcho, Beia cresceu trabalhando na roça com o pai, sem muito tempo para fantasias de Natal. E foi no trabalho da família que apenas aos oito anos ela teve o primeiro contato com o Papai Noel.
“Os que podiam compraram brinquedos e presentes pros filhos, isso eu lembro, daí chamaram o Papai Noel e arrumaram o Papai Noel para dar os presentes. E o pai e mãe pegaram nós, na época eram só quatro irmãos,, e levaram ver o Papai Noel, mas só para ver porque a gente não tinha nada para ganhar”, lembra dona Beia sobre um distante Natal, onde os pais aproveitaram o momento de trabalho na casa de uma família para apresentar o personagem aos filhos.
Mas ali, naquela madrugada, surgiu uma tradição na família de dona Beia que serviu como forma de celebrar a data e de presente. “Me lembro de uma cuca que botaram em cima da nossa cama, e ela (mãe) chamou nós e disse assim, ‘ó Papai Noel teve aqui, só que ele não conseguiu deixar o rastro dele aqui dentro, ele deixou uma cuca para vocês’ aquela cuca foi o nosso presente mais lindo eu me lembro.”
Anos depois, em uma visita a casa de uma tia que morava em Novo Hamburgo, dona Beia conheceu aquele que viria a ser seu marido e pai dos seus filhos. Aos 20 anos veio o primeiro filho do casal, que nasceu em Coronel Bicaco, onde ela foi em busca da rede de apoio para o parto.
Vieram mais filhos, mas as dificuldades apareceram também. Analfabeta, dona Beia conseguiu trabalhos como faxineira e auxiliar de cozinha, enquanto o esposo trabalhou a vida toda com recolhendo materiais recicláveis nas ruas de Novo Hamburgo.
Quando fala do salário da época ela demonstra pouca memória, e também pouco entendimento sobre o valor do seu trabalho.”Eu acho que era (salário mínimo), eu não compreendo, não sei direito como era. Sei apenas assinar meu nome, mas não leio nada.” O casal conseguia complementar a renda graças ao programa social da época chamado Bolsa Escola.
Em meio a essas dificuldades, a principal preocupação do casal era garantir a comida dos filhos. Católica, dona Beia então se agarrou na fé com obras para garantir o alimento na mesa dos filhos. “Pensei assim, eu vou ver se consigo fazer 7 anos esses docinhos aí pras crianças, se eu conseguir, que Deus vai me ajudar, nunca mais vai faltar o pão, o leite, o arroz, o feijão e a carne pros meus filhos.”
Só que mesmo antes dessa ação, dona Beia já auxiliava na cozinha do sopão da igreja que frequentava. Além de trabalhar, dali ela levava também uma parte da sopa para a casa. “Já trazia mais verdura, mais osso, e eu aumentava aquela sopa em casa.”
Com os filhos alimentados, o que em parte dona Beia credita a Deus, ela fez muito mais do que havia prometido. Os saquinhos de doces se transformaram em brinquedos doados às crianças. Anualmente ela recolhe cartinhas das crianças da vizinhança que são adotadas por padrinhos de toda a cidade.
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Mamãe Noel
Um dos fatos que chama atenção na história de dona Beia é que, mesmo conhecendo o personagem Noel bem mais tarde que a maioria das crianças, ela fez questão de ser a representação feminina desse personagem para as crianças do Santo Afonso. “Juntei aquele dinheiro e fui e comprei o tecido pra fazer a roupa do Papai Noel pra mim usar”, conta ela que até hoje segue usando a roupa, mesmo nos dias mais quentes.
“Eu nem sinto calor, mas choro quando vejo as crianças, meu coração chega a doer de alegria de ver elas”, conta dona Beia, já chorando ao lembrar as lágrimas que esconde no dia da Festa de Natal por trás da máscara da mamãe Noel. “Choro embaixo da máscara e eles não notam. Digo assim, ‘a mamãe Noel tá suando.’
Vivendo em uma casa simples, mas sua, dona Beia passa longe de ter uma vida confortável. Ainda hoje conta com programas sociais e doações para garantir o pão na mesa dela, do marido e dos três filhos que ainda vivem com ela. Aos 63 anos a saúde já não é mais a mesma, e ela enfrenta dificuldades de caminhar e mesmo com o avanço da diabetes.
Isso não a impede de seguir querendo proporcionar a festa de Natal para as crianças do bairro, mas dona Beia quer mais. “Eu tenho vontade de fazer um fogão campeiro para fazer sopão para eles no inverno, e durante o verão assim, sabe, eu fazer uma coisa ou outra para dar para eles comerem, durante o ano todo”, revela apontando para o local onde sonha em abrir uma garagem para receber as crianças.
A tradição cristã fala de um Jesus nascido muito pobre, que, para algumas linhas teológicas, ensinou que a melhor maneira de dividir o pão era compartilhando o mesmo. Dona Beia é uma senhora semianalfabeta, também muito pobre, mas que parece ter entendido profundamente o significado das escrituras consideradas sagradas aos cristãos do mundo todo.