RETRATOS DA CRISE CLIMÁTICA
Gideon Mendel, fotógrafo internacional, retrata canoenses atingidos pela enchente
Entrevista com Gideon Mendel, que há 17 anos fotografa os impactos da crise climática ao redor do mundo
Última atualização: 07/06/2024 13:57
Gideon Mendel, sul-africano radicado na Inglaterra, é fotógrafo há quatro décadas. Há 17 anos, decidiu voltar suas lentes para as pessoas impactadas pelas mudanças climáticas em diferentes partes do mundo. Em maio, ele visitou o Rio Grande do Sul para retratar as pessoas atingidas pela enchente histórica que assolou o Estado. Seu olhar é testemunha dos estragos e das perdas causadas pelo avanço da água nas casas e vidas das pessoas.
Ele esteve em Canoas entre os dias 21 e 26 de maio, acompanhado da fotógrafa e jornalista gaúcha Anna Ortega. Visitou principalmente o bairro Mathias Velho, fortemente atingido pelas águas, e fotografou canoenses em suas casas inundadas, encarando de frente a câmera e dando um rosto à crise climática. O fotógrafo decidiu tornar o uso de seu trabalho feito aqui gratuito para pessoas e organizações brasileiras.
Uma das faces da tragédia em Canoas é a de Alex Abel. Assessor parlamentar e barqueiro com experiência em Brumadinho e Mariana, trabalhou durante um mês sem parar para resgatar e ajudar a comunidade. Desde então, não tinha voltado à sua casa no Mathias Velho, e Gideon propôs acompanhá-lo nesse primeiro reencontro com seu lar.
“Alex não conseguiu entrar na parte principal da casa, estava um caos, o cheiro era insano. Naquela bagunça, ele encontrou uma camiseta de futebol boiando. Ele torceu a camisa e pediu para usá-la nas fotos”, narra Gideon.
Leonardo Teixeira Tavares, publicitário, e sua mãe, também foram fotografados em sua casa no bairro Mathias Velho. Ele chegou a agradecer Gideon nas redes sociais: “Você está contando a verdade. Nós acreditamos que nossos governos não souberam fazer seu trabalho. Você me ajudou. Continuamos reconstruindo”.
O resultado é forte e impactante. Em entrevista para o Diário de Canoas, Gideon conta como seu trabalho com as enchentes começou e como sua perspectiva foi mudada ao longo desse trabalho.
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Como você decidiu que era a hora de vir ao Brasil?
Vi as primeiras reportagens e percebi que a situação era ruim. Eu tinha prometido comparecer à abertura de uma exposição na Suécia, mas comecei a pesquisar mais e telefonei para um fotógrafo brasileiro com quem trabalhei em 2015, em enchentes em Rio Branco [no Acre]. Sempre trabalho junto de pessoas locais, e ele me indicou a Anna Ortega. A partir daí, foi um processo difícil, porque quando a enchente começa, é difícil saber qual o nível da água naquele exato momento e quanto tempo a enchente vai durar.
Já aconteceu de você chegar em algum lugar e não ter mais enchente, não ter mais o que fotografar?
Em 2011, houve enchentes imensas em Brisbane, na Austrália. No dia que cheguei lá, havia muita água, mas no segundo dia tudo tinha escoado. Então, meu trabalho focou nos destroços e consequências da enchente. Mas outras coisas emergiram dessa visita: encontrei fotografias completamente anônimas no chão. Resgatei e sequei as fotos. Aí foi o começo do projeto Watermarks [marcas da água]. Ao longo dos anos, colecionei milhares de fotografias de diferentes pessoas. Algumas são anônimas, mas outras são conectadas às pessoas.
Em 2021, na Alemanha, conheci uma senhora de 80 anos que tinha uma história familiar fascinante. O pai dela havia sido preso pelos nazistas por carregar um livro que era proibido. Quando foi liberado, foi obrigado a lutar na Rússia pelos alemães. Depois, ele foi capturado pelos russos e passou 5 anos nos gulags. Ela tinha esse longo arquivo familiar de documentos que foram destruídos na enchente. Nós resgatamos o que pudemos. Fiz uma instalação inteira sobre ela e as fotografias de famílias atingidas pela água.
Por que você começou esse trabalho sobre as mudanças climáticas?
Sou fotógrafo há 40 anos, comecei em 1983. Nos anos 1990, meus filhos eram pequenos, e comecei a imaginar como seria o mundo quando eles tivessem a minha idade. Pesquisei e, obviamente, comecei a pensar sobre as mudanças climáticas e como seriam as imagens das mudanças climáticas. E só encontrei fotos de geleiras, ursos polares. Parecia algo muito remoto, distante. Então comecei a tentar encontrar uma maneira de fazer um trabalho que fosse sobre as pessoas. Queria algo que fosse visceral, que mostrasse as pessoas afetadas pelas mudanças climáticas de uma forma muito direta. Então encontrei essa ideia de tipologia visual, uma tipologia da mudança climática.
Em 2007, comecei a fotografar enchentes. Houve enchentes em Yorkshire, na Inglaterra, e na Índia. Eu estava experimentando com retratos em uma câmera fixa, e aí algo se encaixou. Se eu colocava as fotos da Inglaterra e da Índia lado a lado, mesmo com todas as diferenças, a água conectava as fotos. Havia uma noção de vulnerabilidade compartilhada. É nessa missão terrível em que estou há 17, 18 anos agora. Tentei chegar às principais enchentes ao redor do mundo. Quanto mais retratos eu fazia, mais a conversa entre as imagens ficava complexa, interessante e cheia de nuances. Ao longo dos anos, os fios narrativos visuais emergiram. A espinha dorsal do projeto é o que chamo de Submerged Portraits [Retratos Submersos]. Outro tipo de fotos que faço são as Floodlines [linhas da enchente]. Sigo a linha da água da enchente enquanto ela se move pelos espaços pessoais e públicos, e mostro as estranhas reflexões que surgem, em lugares onde não deveria haver reflexos. De certa forma, o que faço é oposto ao fotojornalismo.
Por quê?
Eu utilizo minhas habilidades jornalísticas para chegar às situações, os recursos, a pesquisa, mas eu peço para as pessoas posarem. Eu proponho que elas posem. Se eu fosse um jornalista convencional, fotografaria as pessoas subindo nos barcos, olhando a casa destruída. Mas eu faço retratos precisos, com as pessoas encarando a câmera. Quando vejo o trabalho de jornalistas em enchentes, penso que é difícil não fazer a mesma coisa de novo e de novo. Começa a parecer como um papel de parede sobre a enchente, com as imagens repetidas. Como seguir contando a mesma história quando a comunidade está tão traumatizada?
Soa um pouco contraditório, mas na forma como fotografo pessoas, não quero que elas pareçam vítimas. Em algumas perspectivas, elas são. Mas é importante para mim que elas tenham agência e estejam fortes nas fotografias.
Que similaridades você vê nas fotografias e pessoas que encontra em diferentes lugares?
Já estive em 13 países cobrindo as enchentes. Um fio narrativo comum entre as histórias é a indignação e raiva com as autoridades. A enchente não chega de forma neutra. Decisões feitas por políticos, para prevenir e lidar com a água, estão presentes nesses cenários. No Paquistão, em 2010, um parlamentar endinheirado conseguiu fazer com que a água desviasse de suas terras, e acabou destruindo centenas de vilarejos. A incompetência e negligência do governo conectam as situações. Dependendo do país, há muita reflexão sobre mudança climática, ou pelo menos sobre o que aconteceu ao clima. As pessoas pensam: “o que aconteceu? Não era assim no tempo dos meus pais ou avós”.
Você começou esse trabalho por conta de seus filhos pequenos. Agora que eles cresceram, o que mudou da sua perspectiva inicial sobre mudanças climáticas?
Hoje, meus filhos estão com seus 20 anos. No começo, eu estava preocupado sobre como seria o mundo em que eles viveriam. Agora, estou preocupado sobre o mundo em que eu vou viver. A mudança climática já está em curso. Não parece mais algo que vai acontecer nos próximos 20, 30 anos, está acontecendo aqui e agora.