DEPOIS DA TEMPESTADE
Três meses depois da cheia histórica, veja como está reconstrução em Canoas, São Leopoldo e Novo Hamburgo
Noventa dias depois do ápice da cheia histórica na Região Metropolitana, cenário ainda é de muita destruição e recomeços
Última atualização: 02/08/2024 10:10
Três meses pode parecer bastante tempo para quem vive uma rotina normal. Mas para quem teve a residência ou empreendimento invadido pela água, o que é possível fazer em 90 dias?
Um trimestre se passou desde que o Rio Grande do Sul viveu o pico de um cenário de guerra no dia 2 de maio, em que o inimigo principal era a água embarrada e contaminada da enchente. Casas, carros, escolas, hospitais, prefeituras e uma infinidade de locais essenciais para a rotina diária foram destruídos. E, para muitos, a passagem do tempo e a troca de estações segue sendo todo dia o mesmo dia: o da reconstrução.
Mesmo que algumas memórias da tragédia possam ter caído no esquecimento de muitos, as marcas da lama nas paredes dos imóveis e dos carros ainda parados no mesmo lugar não deixam esquecer os níveis em que a água chegou. Embora a rotina da maioria já tenha minimamente se estabelecido ao que era antes, muitos ainda convivem com a falta de uma televisão, um sofá ou de um pertence que virou entulho. Memórias de uma vida que foram perdidas e substituídas pela necessidade de iniciar um novo capítulo.
Pior do que a perda dos objetos especiais, há também aqueles que hoje são obrigados a conviver com a falta de um familiar. Afinal, o Rio Grande do Sul registrou 182 óbitos decorrentes da enchente de maio, e 29 pessoas ainda seguem desaparecidas.
Entre as grandes marcas da tragédia que ainda afetam os gaúchos de forma geral está a operação da Trensurb e do Aeroporto Salgado Filho. Já nas cidades da região, os moradores ainda convivem com a dura realidade de ter que começar do zero e reconstruir com o pouco que sobrou da catástrofe.
Dezenas de bilhões de reais em prejuízos
De acordo com a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), as perdas somam cerca de R$ 97 bilhões na economia brasileira. Desse total, até R$ 58 bilhões seriam de prejuízo no RS e R$ 38,9 bilhões em outros Estados. Ainda segundo a CNC, o impacto no PIB gaúcho pode chegar a 9,86%, com efeito de até -1% no PIB brasileiro. Também segundo a CNC, 195 mil empregos foram perdidos no estado e outros 110 mil pelo país.
Em todo o Rio Grande do Sul o número de habitantes diretamente atingidos pela enchente chegou a 596.701, o que representa 5,5% do total de 10.882.965. Entre os municípios da região, Canoas foi a mais impactada (3ª mais atingida no RS), com 44% da população afetada. Em seguida aparece São Leopoldo (4ª no RS), com 40,7% da população, e logo em seguida São Sebastião do Caí (5ª no RS), com 36,3%. Ainda entre os mais afetados percentualmente, está Pareci Novo (11º no RS), com 23,6% dos moradores.
São Leopoldo ainda tem 338 pessoas em abrigos
São Leopoldo ainda tem escolas e Unidades Básicas de Saúde (UBSs) fechadas, entulhos nas ruas e pessoas fora de suas casas. Na cidade, mais de 180 mil pessoas foram impactadas diretamente pela maior enchente da história do Rio Grande do Sul.
De acordo com a Superintendência de Comunicação da Prefeitura, R$ 344,5 milhões em recursos já foram solicitados pelo município. Até segunda-feira (29), já haviam sido recebidos R$ 43,9 milhões em recursos do governo federal e R$ 5,2 milhões do Poder Judiciário via fundo estadual. Os montantes recebidos foram aplicados no recolhimento, limpeza e destinação final dos resíduos da enchente, assistência social, proteção animal, sistema de proteção contra cheias e locação e instalação de bombas emergenciais.
Apesar dos esforços coletivos, em alguns setores e na vida de algumas famílias ainda não foi possível voltar à normalidade após a catástrofe. Até o início desta semana, segundo dados da Secretaria Municipal de Assistência Social (SAS), ainda eram 338 desabrigados na cidade, atendidos em dois alojamentos ativos no município: no Centro de Eventos, no bairro São Borja, e no Monte Alverne, no bairro São José.
Segundo a titular da SAS, Márcia Martins, no momento mais crítico da tragédia a cidade contou com 130 espaços, abrigando cerca de 17 mil pessoas. Além disso, outros 11 municípios da região acolheram leopoldenses. Agora, os alojamentos remanescentes na cidade recebem pessoas que não têm para onde voltar.
Na área da Educação, São Leopoldo teve 18 escolas da rede municipal de ensino atingidas pela enchente, impactando 9.597 estudantes. Destas, 15 já retornaram suas atividades. Para a semana que vem está previsto o retorno às atividades das últimas três instituições de ensino, as escolas municipais de Educação Infantil (Emeis) Brinco de Princesa, no bairro Vicentina, Girassol, no bairro Santos Dumont e Acácia Mimosa, na Vila Paim.
“Nas escolas atingidas, não estamos apenas fazendo limpeza, mas recomposição de tudo o que é necessário, o que tem que trocar de revestimento de piso, cerâmico, substituição de divisórias, telhados, forros, toda a manutenção e troca da parte elétrica”, explica a secretária de Educação, Renata de Matos.
Segundo ela, uma das instituições da rede mais atingida foi a Emei Brinco de Princesa. “Pelo tempo que ficou debaixo d’água, pelo modelo de construção com divisórias leves por dentro e o piso cerâmico, que precisou ser todo retirado”, comenta. Na rede estadual, foram seis escolas afetadas pela cheia na cidade. Todas elas já retomaram suas atividades. (Renata Strapazzon)
Postos de saúde ainda fechados em São Leopoldo
Na área da Saúde, São Leopoldo teve 14 Unidades Básicas de Saúde (UBSs) alagadas, entre elas a UBS Paim, que havia sido inaugurada poucos dias antes da enchente. A unidade, junto com as UBSs Vicentina, Brás e Campina, que foram as mais atingidas, tem previsão de retomada de atendimento para o final de agosto e primeiras semanas de setembro. Já a UBS Rio dos Sinos tem previsão de reabertura para o dia 15 de agosto.
Outro setor bastante impactado pela catástrofe foi o de proteção animal. Na cidade, cerca de 1,6 mil animais foram resgatados da enchente e levados para abrigos organizados pela prefeitura e voluntários. Até segunda-feira (29), eram ainda 248 cães, entre eles 31 filhotes, que permaneciam no abrigo montado na área de um antigo hipermercado no bairro São José, o único ainda ativo na cidade.
Outra frente que ganhou reforço na cidade pós-enchente foi a limpeza urbana. De acordo com o secretário de Mobilidade e Serviços Urbanos, Sandro Lima, cerca de 330 mil toneladas de entulhos já foram recolhidas na cidade. A força-tarefa iniciou no município no dia 8 de maio e segue sendo feita com o hidrojateamento e varrição em ruas das regiões Nordeste, Norte, Oeste, Leste e Centro. A expectativa é de que este trabalho de rescaldo seja concluído até o final de agosto.
Quatrocentas mil toneladas de entulhos recolhidas em Canoas
Após três meses, o impacto as áreas de saúde, educação, serviços urbanos e habitação reflete o tamanho da tragédia vivida em Canoas. Com o lado oeste inteiro atingido, Canoas, somou 400 mil toneladas de resíduos recolhidos durante a primeira etapa de limpeza, finalizada em 23 de julho. A quantidade de materiais ainda aglomerados em pontos de transbordo denunciam a dor de quem perdeu tudo.
Considerado um dos pontos mais impactantes da cidade, o estacionamento do Parque Eduardo Gomes, que acumula milhares de toneladas de entulhos, tem previsão de limpeza até o dia 15, enquanto os demais transbordos ficarão para o final de setembro. Ainda haverá varrição de vias e calçadas, pintura de meios-fios e revisão das redes pluviais.
Responsável pelo atendimento de 102 cidades da região, o Hospital de Pronto Socorro de Canoas (HPSC) precisa de R$ 69, 6 milhões para sua total recuperação e ainda não tem previsão de retorno. Após a limpeza, o prédio, que ficou por semanas submerso pelas águas, passa por vistoria de equipamentos e reparação da rede elétrica.
As obras de reforma na área ocupada pelo Samu têm previsão de conclusão na próxima semana. Seis das 19 Unidades de Saúde (US) atingidas pela enchente retornaram os atendimentos, enquanto as demais passam por trabalhos de limpeza e reparos. Três UPAs (Idoso, Caçapava e Rio Branco) estão em processo de reforma. (Taís Forgearini)
Quase 500 pessoas estão abrigadas em centros humanitários de Canoas
No ápice da enchente, Canoas contabilizou mais de 23 mil pessoas acolhidas em 97 abrigos institucionais. Atualmente, 11 pessoas da mesma família seguem abrigadas na Escola Erna Würth, no bairro Guajuviras. Segundo a administração municipal, elas aguardam a transferência em razão de questões de saúde e da necessidade de adaptação devido à quantidade de pets. Atualmente, Canoas possui dois Centro Humanitário de Acolhimento (CHA), o Recomeço e o Esperança, que juntos abrigam 484 pessoas. Ao longo da tragédia, foram recolhidos nove mil animais sem tutores. Atualmente, cerca 1,1 mil seguem em abrigos e no Bem-Estar Animal.
Escolas ainda estão fechadas na cidade
Na rede municipal de ensino, 17 Emefs e 19 Emeis estão em fase final de limpeza e recuperação. Conforme a Secretaria Municipal de Educação, todos os alunos do ensino fundamental devem retornar às aulas presenciais até segunda-feira. E na educação infantil, o prazo é até o dia 15.
Na rede estadual, a Escola Estadual de Ensino Médio (EEEM) Guarani, localizada no bairro Fátima, ficou 15 dias submersa nas águas da enchente. Na próxima segunda-feira (5), a escola retomará as atividades presenciais.
A diretora Tatiani Prestes fala sobre os desafios impostos pela enchente. “Todos os nossos alunos foram afetados e 40% do quadro de funcionários. A perda de material e mobiliário da escola foi total. Seguimos com as obras de recuperação. Infelizmente, para os primeiros dias de aula, as salas ainda não contarão com quadro, pois todos foram perdidos. Eles devem chegar nos próximos dias”, destaca.
Casas abandonadas em Novo Hamburgo
Em Novo Hamburgo, onde os moradores da Vila Palmeira, no bairro Santo Afonso, só conseguiram presenciar o estrago um mês depois, o cenário da tragédia ainda segue presente através de residências reviradas, carros abandonados ou comércios que ainda não conseguiram reabrir.
As casas vazias de quem não conseguiu retomar suas vidas estampa a realidade do bairro, afinal, muitos moradores, mesmo três meses depois, não conseguiram voltar para suas residências, pois seguem no trabalho de reforma e reconstrução dos lares. É o caso da família do aposentado Jair Moraes, 57 anos, que está há 90 dias morando na casa da cunhada.
Conforme conta, os trabalhos de reforma recém começaram. Na quinta-feira (1º), o serviço foi focado na pintura do interior da residência e das grades. Emocionado, ele afirma estar ansioso para voltar. “Eu faço a reforma durante o dia e volto para dormir na cunhada. Aqui vai mais um mês de reforma, pois preciso trocar todas as aberturas. Também não tenho nada de móveis. Não vejo a hora de voltar. Não tem nada igual à nossa casa”, confessa.
Comércio foi fortemente afetado
Assim como Jair, a vizinha Neiva da Trindade Moraes, 57, também não voltou para a residência, e nem vai. Morando em Estância Velha com o filho desde que precisou sair de casa, ela conta que estão reformando a residência na Vila Palmeira para poder alugar. “Não vamos voltar para cá. Já estamos olhando terreno em Portão para comprar. Está um transtorno. Meu marido sai do serviço todos os dias e vem para cá reformar a casa”, afirma.
O comércio do bairro também foi bastante afetado pela enchente. Segundo moradores, muitos optaram por encerrar as atividades. No caso da Altiva Motta dos Santos, 53, que administra um minimercado na Rua Maria Seger Boll, o mercado até voltou a operar, mas sem açougue.
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“Como quebrou o balcão da carne e estragou a câmera fria, nós estamos funcionando sem o açougue. Nós já fizemos três orçamentos, acho que daqui uns dois meses vamos conseguir retomar”, afirma. No prédio, ainda é preciso reformar o piso e o teto. “É muito triste. Eu não choro mais, por já chorei muito”, reforça Altiva. Além disso, a comerciante afirma que o movimento do mercado diminuiu muito. “Está bem fraca as vendas, porque tem pouca gente no bairro”, observa.
Escolas e postos de saúde retornaram
Em Novo Hamburgo, além das residências afetadas, das 11 escolas atingidas pela enchente, somente a Escola Municipal de Educação Infantil (Emei) Sábia, no bairro Santo Afonso, ainda não voltou, pois ficou 30 dias submersa durante a enchente. No entanto, os estudantes estão sendo atendidos na Emei Olavo Bilac e na Escola Arnaldo Grin.
Além disso, o município também já colocou em funcionamento as oito unidades de saúde que foram afetadas pela enchente, duas delas com funcionamento em estrutura provisória (as USFs Palmeira e Getúlio Vargas).