Todos os dias, quando o telefone toca, uma nova esperança surge na casa de Terezinha de Jesus Viana Lima, 60 anos. Há seis meses ela entrou na fila da Central de Transplantes e aguarda a doação de um pulmão para voltar a ter uma vida normal. Hoje ela depende do tubo de oxigênio para viver. “Fumei dos 14 aos 56 anos, trabalhei com muitos produtos químicos e desenvolvi um enfisema pulmonar”, explica. A moradora do bairro Boa Saúde, em Novo Hamburgo, é uma das 3.129 pessoas que esperam por um transplante no Rio Grande do Sul. Os dados são da Central de Transplantes, que traz os números de fevereiro.
Em 2022, das 732 notificações de mortes encefálicas, em 197 houve doação de órgãos, o que representa 27%. A principal causa para que o índice não fosse maior é a negativa da família. Em 36,5% da falta de permissão para captação de órgãos, os familiares informaram às equipes médicas que a pessoa falecida não manifestou o desejo da doação em vida.
Com a intenção de aumentar o número de doadores de órgãos e tecidos e diminuir o tamanho da fila de espera por um transplante, foi lançada na sexta-feira (31) a Central Notarial de Doação de Órgãos. No serviço, disponibilizado gratuitamente pelos tabelionatos de notas, qualquer pessoa pode deixar registrado que é doadora de órgãos. Basta solicitar a realização da escritura pública declaratória com natureza de doação de órgãos. Os dados serão compartilhados com a Central de Transplantes de forma sigilosa.
“É um instrumento importante, pois vai ajudar no convencimento da família, que costuma dar uma resposta negativa em quase metade dos casos”, destaca o coordenador-adjunto da Central de Transplantes, Rogério Caruso. Ele explica que o documento não traz uma obrigação legal, capaz de garantir a doação. “Mas traz uma obrigação moral para a família de respeitar a vontade daquela pessoa que se foi”, pondera.
O termo de cooperação que formalizou a Central Notarial foi assinado pela Associação dos Notários e Registradores do Estado do Rio Grande do Sul (Anoreg/RS) em conjunto com a Secretaria Estadual da Saúde, Tribunal de Justiça o Conselho Regional de Medicina do Estado (Cremers), a Santa Casa de Misericórdia e o Hospital de Clínicas. Conforme o presidente do Colégio Notarial do Brasil – Seção Rio Grande do Sul, José Flávio Fischer, é uma honra para a categoria integrar essa parceria com o objetivo de salvar vidas.
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Fale com sua família sobre o assunto
Embora seja a única certeza que se tem na vida, falar sobre a morte é um assunto que a maioria das pessoas evita. “Não é algo que se fale em um churrasco de domingo”, pontua Caruso. No entanto, ele chama atenção que quem tem o desejo de ser doador de órgãos precisa comunicar isso à família, deixar este desejo claro. “Apesar da morte ser uma coisa natural, ainda há muito preconceito”, comenta.
Para que a família seja consultada sobre a possibilidade de doação de órgãos, é preciso a confirmação do diagnóstico de morte encefálica, em resumo, um atestado de óbito emitido por equipe médica. “Só a partir deste momento é que se aborda o assunto com a família”, explica Caruso.
De acordo com ele, quando o procedimento é autorizado, após a captação, o corpo é devolvido aos familiares de maneira que ninguém perceba visualmente nada de diferente. “Se usam técnicas de cirurgias normais, com incisão e sutura. Nada fica aberto. Nas córneas, por exemplo, se coloca uma prótese no lugar. Quando é captada pele, é das costas ou outras partes que não se vê”, explica.
Por fim, Caruso convida a sociedade a uma reflexão. “É muito mais fácil eu precisar de um órgão do que eu ser doador um dia. Então vamos pensar sobre isso, porque farei um bem para mim mesmo”, finaliza, lembrando que um doador pode salvar oito pessoas.
Corrida contra o tempo
Depois que os órgãos são captados, começa uma verdadeira corrida contra o tempo. Enquanto parte da Central de Transplante realiza uma série de exames para garantir que o órgão é saudável, outra busca doadores compatíveis. Ainda há quem organize a logística que envolve o transporte do órgão e o deslocamento do paciente que receberá o transplante. “É um trabalho frenético. É como se fosse uma operação de guerra”, descreve Caruso.
Inclusive, as polícias rodoviárias são acionadas para escoltar pacientes que precisam fazer o deslocamento por terra. No dia 19 de março, por exemplo, a Polícia Rodoviária Federal escoltou uma ambulância que saiu de Ronda Alta para Porto Alegre com paciente que receberia um rim.
Terezinha sentiu na pele essa corrida contra o tempo. Em 26 de março, foi avisada que precisava ir com urgência ao Hospital Santa Rita de Cássia porque havia um pulmão chegando. No entanto, o transplante não foi possível. Após exames mais específicos, a equipe constatou que o órgão doado tinha problemas. “Isso foi Deus ensaiando comigo, logo vai ter um pulmão pra mim.”
Hoje, sem conseguir fazer nenhuma atividade simples do dia a dia porque não tem forças, ela se ocupa com as suculentas. De acordo com ela, antes de chegar ao ponto de necessitar de um transplante, a família nunca tinha falado sobre o tema, realidade que mudou. “Digo pra eles que, se tiver alguma coisa que dê para aproveitar, podem usar.”
Além de órgãos, são realizados transplantes de tecidos, que somaram 1.026 em 2022. O principal é de córneas (507) e de ossos (348).
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