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Impasses urbanos

Sabe o que é arquitetura hostil? Entenda a polêmica

Especialista aborda o desafio dos problemas sociais nos cenários urbanos

André Moraes
Publicado em: 10/11/2023 às 03h:00 Última atualização: 04/10/2024 às 20h:22
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Quando se fala em violência urbana, a primeira coisa que vem à mente são os problemas da criminalidade e da segurança, que não são pequenos. Entretanto, existe uma questão igualmente fundamental e também preocupante, que é a tensão social dentro das cidades, muitas vezes mediada pelo espaço arquitetônico. É um conflito silencioso que não faz as vítimas de uma guerra ou de uma onda de crimes, mas pode ser igualmente dramático.

Mureta com lancetas para evitar que as pessoas sentem, um exemplo da chamada arquitetura hostil | abc+



Mureta com lancetas para evitar que as pessoas sentem, um exemplo da chamada arquitetura hostil

Foto: Adobe Stock

O problema não é novo, mas ganha relevância em períodos de crise. Proprietários ou até o poder público, às vezes, têm que fazer frente a usos imprevistos de espaços. Alguém usa um nicho ou um espaço para dormir; alguma mureta vira assento público; alguma fachada vira sanitário. A resposta ou solução extrema, não raro, acaba sendo a construção de obstáculos ou barreiras. Esta é a chamada arquitetura hostil, termo que tem sido cada vez mais usado.

A questão não é simples nem tem respostas fáceis. “A cidade é o território onde conflitos e diferenças acontecem”, explica a arquiteta Izabele Colusso. Ela é doutora em Planejamento Urbano e Regional, professora da Unisinos e coordenadora do curso de Arquitetura e Urbanismo da universidade em Porto Alegre. Na entrevista abaixo, ela aborda como o espaço das grandes cidades, muitas vezes, acaba virando palco para contradições e desafios sociais.



Entrevista com Izabele Colusso, professora e doutora em Planejamento Urbano e Regional

Um problema recorrente na região é que alguns espaços públicos ou privados acabam sendo ocupados por pessoas em situação de rua e, em reação, os proprietários ou até o poder público instalam obstáculos. A pergunta é: existe, em arquitetura e urbanismo, uma discussão a respeito? Esta é a chamada arquitetura hostil?

Izabele Colusso – Sim, este é um tema de pauta nas discussões sobre a cidade. A arquitetura hostil é um conjunto de dispositivos construtivos que têm como objetivo impedir a permanência de pessoas, especialmente daquelas pessoas em situação de rua, em bancos de praças, espaços residuais em fachadas e outras áreas livres do espaço público.

Existe uma lei federal que pauta estas questões, chamada Estatuto da Cidade, e em seu artigo 2, inciso XX diz que a cidade deve garantir: promoção de conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade na fruição dos espaços livres de uso público, de seu mobiliário e de suas interfaces com os espaços de uso privado, vedado o emprego de materiais, estruturas, equipamentos e técnicas construtivas hostis que tenham como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população. Ou seja, é uma prática que fere uma lei federal.

Para que as pessoas não durmam sob os viadutos, às vezes, são instaladas pedras pontiagudas. Para que não se sentem nos canteiros ou muretas, são colocadas lancetas ou coroas-de-cristo. Algumas fachadas têm sido construídas com ângulos que tornam impossível se encostar. Estas são tendências inevitáveis devido às características urbanas das grandes cidades ou são respostas extremas?

Izabele – Na minha visão, esta é uma ideia pautada na especulação imobiliária, que propaga que a remoção dessas pessoas dos espaços públicos valoriza o entorno e, consequentemente, aumenta o valor dos imóveis da região. O papel do arquiteto urbanista é fornecer abrigo e propor espaços de bem-estar e acolhimento, ou seja, impedir o uso de espaços públicos é uma anti-arquitetura.

Supondo que alguns dos problemas e contradições sociais sejam difíceis de resolver a curto prazo, quais soluções a arquitetura ou os proprietários podem adotar que não sejam, por assim dizer, hostis?

Izabele – Acolher é sempre melhor do que negar ou afastar. Um espaço público hostil não resolve problemas urbanos, pelo contrário, apenas os intensifica. A solução efetiva passa por questões muito mais profundas como o enfrentamento à desigualdade social, à violência, o déficit habitacional, dentre outros aspectos.

Há exemplos internacionais de soluções bem resolvidas? Há algum exemplo notabilizado de forma negativa?

Izabele – Devemos mudar o conceito da arquitetura hostil para o urbanismo tático, que é uma abordagem urbana liderada pelos cidadãos para a construção de lugares usando intervenções de curto prazo, baixo custo e escaláveis, para catalisar mudanças de longo prazo. A arquitetura hostil não tem bons exemplos, toda sua aplicação, seja em cidades como Nova York, San Francisco ou Paris, tem suas consequências arquitetônicas e urbanísticas, e uma condição de parecer um enjambre de projeto.

A formação atual dos arquitetos e urbanistas leva em conta desafios como este? Esta é uma discussão colocada em aula, ou abordada em congressos?

Izabele – Sim, atualmente se discutem estas questões em aulas de urbanismo e planejamento urbano, trazendo como pauta notícias ou casos para debate. Muitas monografias, dissertações e teses tratam do assunto, em várias áreas do conhecimento, em especial por tratarem também das questões sociais envolvidas.

Como é a prática cotidiana de mediar este tipo de tensão urbana/social? O poder público, quando encomenda um viaduto, costuma solicitar obstáculos? Quem encomenda um projeto arquitetônico ou um planejamento incorpora este tipo de demanda? Existe alguma orientação dos conselhos de arquitetura ou associações profissionais?

Izabele – Não, por isso sempre é um remendo, um enjambre posterior. Este tema ainda é novo e, portanto, os conselhos profissionais ainda não se posicionaram oficialmente (ao menos não conheço), mas sempre saem comentários na mídia a respeito. Temos a legislação acima citada que deve ser respeitada.

Algum comentário, a partir de sua experiência profissional ou sua opinião como especialista? Como vê o futuro desta discussão?

Izabele – A cidade é o território onde conflitos e diferenças acontecem, e isso é o reflexo da sociedade que a constrói. Se a cidade é violenta e segregadora, é provável que a estrutura social também o seja. Isso se chama indução da demanda. A cidade precisa educar o cidadão através do exemplo, e no momento, nossas cidades estão mais preocupadas em esconder os conflitos do que em solucioná-los.

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