Das enchentes registradas ao longo de 2023 às recentes estiagens, as mudanças climáticas mostram como a água está no centro das questões envolvendo as alterações climáticas. Seja pela garantia de fornecimento em quantidade e qualidade, ou para evitar tragédias como as vistas no ano passado no Rio Grande do Sul, quando mais de 60 pessoas morreram em razão das chuvas.
Como apresentado na segunda matéria sobre a Lei das Águas no Rio Grande do Sul, especialistas apontam que tanto a falta de chuvas quanto as enchentes e temporais têm relação direta com a degradação dos biomas gaúchos. Para o diretor científico da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), Francisco Milanez, essa falta de cuidado com os recursos naturais do Estado, tanto próximos quanto distantes de encostas de rios, foi responsável por alterar inclusive o regime de chuvas do Estado.
CONFIRA AS DUAS PRIMEIRAS MATÉRIAS DA SÉRIE SOBRE A LEI DAS ÁGUAS
- Como a aplicação da Lei das Águas poderia evitar muitas perdas no Rio Grande do Sul; relembre como foi criada
- LEI DAS ÁGUAS: Retrocesso na proteção ambiental coloca Estado em crise hídrica; entenda
O cenário atual se mostra preocupante e pouco animador, mas mesmo assim ainda há um caminho a trilhar. Na terceira e última matéria da série, vamos mostrar quais as soluções estão sendo estudadas e o que ainda pode ser feito para minimizar os problemas. Além de apresentar os bons exemplos vindos de outros estados do país na proteção hídrica.
Ainda há tempo?
No texto da Lei das Águas gaúcha o papel da sociedade no cuidado com as águas estava bem definido através dos comitês de bacias hidrográficas. Contudo, nunca conseguiram atuar no Estado com a força e o poder necessário de influência. A principal ferramenta que poderia dar força aos comitês é justamente a cobrança pelo uso da água, que nunca foi implementada em nenhuma das 25 bacias do Estado.
Para que a cobrança fosse implementada caberia ao governo estadual criar a agência reguladora, que ficaria responsável por cobrar e distribuir estes recursos. Sem agência, que pela lei estadual deve ser pública, os comitês ficaram sem recursos para implementar os mecanismos de proteção dos rios.
“Os comitê têm um papel quase bem secundário, não têm força de decisão nenhuma, não são respeitados pelos governantes, é lamentável o papel deles no Rio Grande do Sul”, critica o advogado ambientalista e ex-secretário de Meio Ambiente de Porto Alegre, Beto Moesch.
Além das questões diretamente vinculadas aos recursos hídricos e leitos de rios e encostas, ambientalistas também apontam a necessidade de melhorar a preservação ambiental como um todo. Ao longo dessas três décadas, a degradação foi bastante intensa, com a derrubada da vegetação de mata atlântica nas regiões da Serra e Planalto, enquanto na região Sul o plantio de soja e de árvores estranhas ao nosso ecossistema foram dando fim à vegetação rasteira do Pampa.
“Nosso estado é um dos mais ricos em floresta, e uma floresta muito mais rica em variedade que a floresta Amazônica situada na Serra e no Planalto. E no Sul do estado temos um dos biomas mais valiosos do mundo, que é o bioma Pampa”, explica Milanez. Esses dois sistemas permitiam ao Rio Grande do Sul uma variedade invejável de fauna e flora que ainda trazia uma excelente distribuição de chuvas ao longo do ano.
Porém, as apostas em monoculturas no Pampa como o investimento em soja e em plantio de árvores para a indústria de celulose, combinada com o desmatamento no Norte colocaram esse sistema em colapso.
Milanez explica que a vegetação natural do Estado é suficiente para garantir atividades econômicas e lucrativas ao natural. “Temos a carne mais valiosa do mundo com investimento zero. É só fazer um bom manejo, recuperar e melhorar a produção do campo. Podemos produzir carne orgânica, que já vale por si só 30%, 40% mais que a outra”, aponta Milanez ao falar sobre o bioma Pampa, que é apontado por especialistas como ideal para a criação de gado.
Os caminhos
Garantir a distribuição de água em quantidade e qualidade para as próximas gerações é o grande desafio gaúcho. O governo do Estado tem apostado em políticas de reservação, facilitando e investindo na criação de açudes.
Em fevereiro deste ano, Estado anunciou investimentos de R$ 2 bilhões nos próximos quatro anos para ampliar a área irrigada na agricultura gaúcha. O objetivo é chegar a 100 mil hectares. Medida, contudo, que não é tão bem vista por ambientalistas, em uma aposta na preservação ao invés da reservação de água.
Evitar o desmatamento nas regiões de Serra e Planalto, ao mesmo tempo não investir em monoculturas que demandam pesticidas nas regiões de Pampa são apontados como algumas das medidas. Mas também, fazer com que a Lei das Águas se torne efetiva, algo que depende de toda a sociedade.
“O que a gente tem que buscar hoje é fazer um esforço para implementar essa lei, porque ficamos 29 anos sem arrecadar esse recurso por uma série de motivos, desde a sociedade que não absorveu essa lei, até usuários que não têm a intenção de pagar e não fazem muita questão de que isso avance, assim não houve uma pressão também ao governo do Estado”, aponta a atual presidente do Comitesinos, Viviane Feijó Machado.
Mobilização social
Moesch segue a mesma linha, e aponta que, além da classe política, tem faltado à sociedade um envolvimento com a questão ambiental como um todo. “Temos uma classe política totalmente afastada do meio ambiente, que não se preocupa com o meio ambiente. Mas também está faltando uma mobilização da sociedade. Nós temos uma sociedade que não participa mais de nada”, aponta.
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Especialista em recursos hídricos e saneamento básico da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), Marco Antônio Amorim, atuou junto ao Comitesinos na elaboração do mecanismo de cobrança dos usuários da água na Bacia do Rio do Sinos, que foi aprovado no início de março. Ao olhar para o passado, Amorim mostra que a garantia de água passa pela retomada da postura social que se viu há 30 anos. “A lei do Rio Grande do Sul surgiu de movimentos sociais, principalmente na região da Bacia do Rio dos Sinos” lembra.
Amorim também ressalta a necessidade de atualizar a lei atual, para que seja possível destravar os mecanismos de proteção. “Muitos estados que fizeram a lei antes da Nacional [de 1997] fizeram novas leis adaptando aquilo que estava incompatível com a lei nacional”, destaca apontando a situação da Bacia do Rio Doce, onde o mecanismo de cobrança já está vigente há uma década.
Desafio de dois estados
A Bacia do Rio Doce se estende por uma distância de 879 quilômetros com área de drenagem de 86,7 mil km². Toda essa magnitude fica ainda maior pelo fato de a mesma se dividir entre dois estados, Minas Gerais e Espírito Santo. Mesmo assim a Bacia do Rio Doce é apontada pela ANA como um dos bons exemplos do país de comitês com avanços significativos na proteção dos rios.
O processo de criação de um comitê com participação da sociedade civil na gestão dos recursos hídricos começou muito tempo depois do que no Rio Grande do Sul. Foi em 2001 que mineiros e capixabas iniciaram o debate sobre a criação do Comitê da Bacia do Rio Doce (CBH Doce) que faria a gestão integrada de todos os rios que compõem a bacia.
Mesmo iniciando o processo sete anos depois da Lei das Águas gaúcha, em um período muito mais rápido foi possível implementar todos os mecanismos de proteção previstos na lei federal de 1997.
Um avanço que não foi fácil e nem mesmo harmônico durante todo o tempo. “Foi um processo bem denso, com mais de dois anos de mobilização de todo o território, de todos os comitês que integram a Bacia, muitas oficinas, muitas plenárias, muitas etapas, desde o diagnóstico até o enquadramento dos rios”, relata o coordenador do Grupo de Trabalho do Plano Integrado de Recursos Hídricos da CBH Doce, Senisi Rocha. Ele ainda lembra que na época a região não tinha um histórico de atenção com os recursos hídricos.
Entre os avanços está a criação da Agência de Regulação, que no caso da bacia do Rio Doce é uma entidade privada. Com recursos em mãos, o comitê ganhou capacidade de realização de projetos, como Rio Vivo, e poder de decisão. “Temos a questão da outorga de médio e grande porte que a decisão passa pelo comitê”, conta Rocha. Esses avanços foram viáveis graças a um entendimento dos setores produtivos.
O trabalho em conjunto também foi fundamental no caso, já que a Bacia do Rio Doce se estende em outras sub-bacias, totalizando 11 comitês. “Se não conversar você não acha um denominador comum. Hoje há uma preocupação do setor produtivo para que ele já possa fazer algum programa para melhorar a quantidade da água”, relata o presidente do CBH Doce, Flamínio Guerra Guimarães, destacando o fato de a região ter intensa atividade agrícola, mineradora e industrial.
Após a tragédia das barragens de Minas Gerais, a atenção foi redobrada. Segundo Guimarães, mesmo com conflitos naturais, o CDH Doce consegue ser um meio de mediação entre os interesses, sem deixar de ouvir estudioso da área. “Eles (ambientalistas) acompanham todo o processo e contribuem com estabelecimento de critérios e condicionantes. Eles são parte do nosso sistema e são muito respeitados.”
A cobrança e efetiva participação da sociedade e dos comitês, permitiu um planejamento a longo prazo, o que é comemorado por Guimarães. “Tem um plano de bacias voltado a atender 228 municípios, que hoje é o organismo mais vivo dessa região e tem tudo para poder implementar políticas públicas nos próximos 20, 40, 60, 80 anos. E essa autonomia que temos é relevante demais para desempenhar nosso trabalho”, resume o presidente de um Comitê, que conseguiu implementar todos os mecanismos de proteção previstos em lei.
No Rio Doce a tragédia das barragens foi um alerta fundamental para que se entendesse a necessidade de preservação dos rios. O Rio Grande do Sul viveu três anos consecutivos de estiagem, que prejudicou a economia como um todo, e ainda soma os estragos humanos, sociais e econômicos das enchentes de 2023. Caberá à sociedade gaúcha decidir nos próximos anos se os desastres servirão de aprendizado ou se o Estado vai seguir a mercê de tragédias evitáveis.