Nas últimas semanas, o País acompanhou a história da “mulher da casa abandonada”. Moradora de um dos bairros mais ricos de São Paulo, Margarida Bonetti, 63 anos, virou protagonista de um podcast jornalístico que resgatou um crime cometido há mais de duas décadas nos Estados Unidos. A mulher é acusada pela Justiça norte-americana de manter, por anos, junto com o marido, uma empregada doméstica em situação análoga à escravidão. Escondida no Brasil, ela nunca foi julgada.
Situações como a narrada na série em áudio produzida pela Folha de S. Paulo se repetem, no Brasil de hoje, por endereços de norte a sul do País e atingem trabalhadores com ocupações diversas. Somente no Rio Grande do Sul, mais de 200 pessoas foram encontradas em condições degradantes de trabalho entre 2019 e julho de 2022. A maioria foi resgatada neste ano: 140 vítimas. Os dados são da Superintendência Regional do Trabalho no RS, vinculada ao Ministério do Trabalho e Previdência.
Para além dos números oficiais, existem ainda os casos subnotificados, que sequer chegam ao conhecimento das autoridades ou que, por algum motivo, não entram para as estatísticas. Foi o que aconteceu com um resgate recente de dois trabalhadores pernambucanos na Região Metropolitana de Porto Alegre.
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Lailson dos Santos Roque, 30 anos, e Anderson José Nazário Lima da Silva, 20, cruzaram o Brasil atraídos por uma proposta de emprego no setor da construção civil. Foram ludibriados e acabaram submetidos a condições degradantes de trabalho. Abrigados em um contêiner enferrujado, com alimentação restrita, cobranças indevidas e sem dinheiro para voltar para casa, eles tiveram de permanecer no alojamento precário por meses. Até que, em maio de 2022, uma denúncia permitiu que os operários fossem libertados e tivessem seus direitos restituídos.
Migrantes em busca de oportunidade
Foi com a intenção de ajudar no sustento da família que Lailson e Anderson percorreram cerca de 3,5 mil quilômetros de Cabrobó – município com pouco mais de 34 mil habitantes no sertão de Pernambuco – até o Rio Grande do Sul. Os migrantes chegaram ao Estado em 28 de dezembro de 2021 para prestar serviço a uma construtora com sede em Estrela, na Região Central.
A promessa de trabalho parecia atrativa: salário de R$ 1,5 mil, carteira assinada, alimentação e moradia – esta última mediante cobrança de uma taxa simbólica. Os amigos estavam esperançosos. Ficou acordado entre as partes que o empregador arcaria com o custo das passagens aéreas e, posteriormente, descontaria o valor em folha de pagamento.
Já na cidade gaúcha, os operários juntaram-se a outros trabalhadores em uma casa, onde afirmam ter permanecido por cerca de um mês, até serem realocados para um canteiro de obras em Montenegro, a aproximadamente 60 quilômetros dali.
No novo endereço, passaram a ficar alojados em um contêiner precário de propriedade da contratante. Foi quando a situação piorou. Além do local inadequado, os trabalhadores relatam que a empresa passou a descumprir acordos. “Quando chegamos, tivemos que pagar comida, pagar energia (elétrica), que inclusive era solar e tivemos que pagar. Eles também descontavam um valor de aluguel”, lembra Lailson. O desconto girava em torno de R$ 80,00 por mês – e a cobrança não falhava, ainda que o contêiner não tivesse a mínima estrutura para servir de moradia.
Condições insalubres
O abrigo improvisado tinha sinais de ferrugem, e o assoalho estava comprometido. Peças de madeira dividiam o espaço em duas partes: de um lado, ficava a cozinha, com fogão quatro bocas, geladeira, uma pia arranjada e uma caixa de madeira usada como mesa; do outro, dois beliches amontoados com ferramentas de trabalho forjavam uma espécie de dormitório.
O vaso sanitário entupia constantemente, e o mau cheiro era muito forte. “A fossa do banheiro ficava embaixo do contêiner”, detalha Lailson. “Não tinha como lavar roupa, tinha que lavar dentro de um tambor e esfregar em um banco. No chuveiro, saía água fria e quente ao mesmo tempo”, descreve Lailson.
Além das péssimas condições de saneamento, os operários contam que o acesso a comida era restrito. No começo, a empresa comprava os alimentos, e os trabalhadores tinham que cozinhar. “Eles diziam que a gente tinha que comer um pedaço de carne por refeição e que se comêssemos dois, na [refeição] seguinte não teria.”
Depois, um fornecedor passou a entregar pratos prontos. “Compravam marmita para nós, mas teve um dia em que não aguentamos trabalhar, e aí eles nos deixaram sem comer”, relata Anderson. No dia em questão, segundo Lailson, eles haviam ficado doentes e avisado os patrões que não teriam condições de ‘tocar’ a obra.
Para os operários, o auge do descaso, porém, foi em maio de 2022, quando o Rio Grande do Sul registrou temperaturas negativas em algumas regiões. Em Montenegro, os termômetros chegaram a marcar 3,2ºC, e o contêiner não tinha isolamento térmico. “A gente viu que quando chegasse o frio mesmo não iríamos aguentar. A situação estava ficando cada vez mais difícil, pois em Pernambuco a gente vive com 38°C”, compara Lailson. “A dificuldade era acordar e encarar o frio sem cobertor, sem ter um blusão adequado.”
Eles chegaram a reclamar das más condições de moradia e das dificuldades à empresa. Também compartilharam com os empregadores o desejo de retornar ao nordeste. “Eles disseram que a gente tinha que pedir as contas. Aí eu disse: ‘Se a gente pedir as contas, como vamos voltar para casa, se a gente não tem condição?'”, lembra Lailson. Anderson chegou a insistir com os patrões, sem sucesso – para pegar o avião de volta, deveria concluir a obra primeiro. A entrega estava prevista somente para julho, ponto alto do inverno gaúcho.
Sem acordo, os dois trabalhadores perceberam que estavam presos àquela condição degradante. Foi quando decidiram pedir ajuda em posto de combustíveis próximo ao local onde estavam alojados. “O pessoal viu o nosso sofrimento e começou a nos ajudar. E foi isso aí. Ajudaram mesmo a gente, só temos a agradecer”, conclui.
O resgate
Quando os agentes da prefeitura chegaram ao local, após contato de um funcionário do posto, encontraram os trabalhadores em situação de extrema precariedade. O cenário espantou a equipe de fiscalização do município. “A estrutura em que eles ficaram não tinha isolante térmico, e o chuveiro estava queimado. Não havia condições de eles permanecerem naquele espaço”, avaliou, à época, o secretário municipal de Habitação, Desenvolvimento Social e Cidadania (SMHAD), Luís Fernando Ferreira.
De imediato, a Pré-Tubo, empresa responsável pela contratação dos operários, foi acionada. O proprietário esteve no local, conversou com os funcionários da prefeitura e, após intervenção do Ministério Público do Trabalho (MPT/RS), assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). O MPT também abriu um inquérito civil para investigar o caso, que é tratado como trabalho análogo à escravidão por condição degradante.
Os trabalhadores, enfim, foram dispensados. “Sentimos um alívio muito grande. Uma esperança de que iríamos voltar para casa e que ali o sofrimento tinha acabado”, narra Lailson.
A construtora pagou aos operários verbas rescisórias e Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) rescisório, bem como as passagens de volta a Pernambuco. Foram pactuados ainda valores a serem quitados pela empresa a título de danos morais individuais e danos morais coletivos. Em caso de reincidência, o empregador pode vir a ser multado. Procurada, a Pré-Tubo preferiu não se manifestar sobre o caso.
De volta a Pernambuco
Em 24 de maio, dias após a inspeção, os trabalhadores pernambucanos retornaram à terra natal. Os meses de angústia haviam chegado ao fim. Eles foram acompanhados pelo secretário ao Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, onde pegaram o voo rumo ao nordeste.
Para Lailson, apesar da alegria por estar em casa outra vez, ao lado da mãe e do filho, relatar o caso à família não foi missão fácil. “Uma mãe ver os filhos passando por isso, sabendo que foram para lá para vencer na vida e arrumar um serviço melhor, para dar uma vida melhor.”
Sobrevivente, ele diz que, por ora, não pensa em levar o caso à Justiça, para ser tratado na esfera penal, e que o plano agora é seguir adiante. “Fica uma cicatriz marcada, mas saímos como vitoriosos. Sabemos que temos que lutar, não podemos parar. Ainda somos novos, podemos conseguir serviço em uma empresa que dê valor ao trabalho da gente”, planeja, confiante.
Características do trabalho análogo à escravidão
Segundo o Ministério do Trabalho e Previdência, caracterizam o trabalho análogo ao de escravo: serviços forçados; jornada exaustiva; condições degradantes de trabalho; e restrição da locomoção do trabalhador, seja por dívida contraída ou por cerceamento de qualquer meio de transporte.
Também são considerados atos análogos, a vigilância ostensiva por parte do empregador ou encarregado e a retenção de documentos ou de objetos pessoais do trabalhador por parte do empregador, com o objetivo de manter a vítima no local de trabalho.
Apesar de restar caracterizada a condição análoga à escravidão no caso de Lailson e Anderson, o resgate dos dois migrantes não entrou para os dados oficiais do Ministério do Trabalho. Segundo a pasta, ele não aparece nas estatísticas porque a fiscalização e encaminhamento do caso foram feitos diretamente pela prefeitura. Normalmente, a inspeção passa pelo órgão federal.
Casos na região
Somente no Vale do Sinos e na Serra, outras 15 vítimas de trabalho escravo contemporâneo foram resgatadas neste ano. Em Campo Bom, uma mulher com deficiência mental, que prestava serviços domésticos, era agredida e proibida de se comunicar com pessoas de fora do vínculo social dos empregadores. Ela também não tinha o salário pago corretamente. Já em São Francisco de Paula, 14 pessoas foram retiradas de uma fazenda de cultivo de alho. No grupo, havia indígenas e dois menores de 18 anos.
“A grande maioria dos trabalhadores [resgatados] são analfabetos ou com baixíssima escolaridade. São pessoas em situação de vulnerabilidade social. Muitos são idosos, deficientes, indígenas e, principalmente, quando a gente fala que são trabalhadores de outros Estados que vêm trabalhar no RS, são pessoas que vêm da região nordeste e também do centro-oeste”, observa a auditora fiscal do trabalho Lucilene Passini, que integra a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Estado (SRTE/RS).
O Ministério Público do Trabalho do Estado (MPT/RS) investiga ainda o caso de 15 trabalhadores, entre eles, dois adolescentes, resgatados de um ônibus na BR-116, em Canoas. O veículo, abordado pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) no fim de maio, servia de transporte e dormitório para o grupo. De acordo com a Polícia, o espaço estava em condições precárias. Explorados, os trabalhadores vendiam massa para arear panela em diversas cidades gaúchas e de Santa Catarina.
O motorista e um ajudante foram presos em flagrante, e o proprietário do veículo e dono da empresa foi preso assim que chegou à sede da Polícia Federal em Porto Alegre.
Crescimento no Estado
Outras 125 pessoas foram libertadas de situações semelhantes no interior do Estado em 2022. (Veja no mapa acima). O número total já é maior do que a soma de casos registrados nos últimos três anos.
A auditora fiscal do trabalho elenca alguns motivos para o crescimento do resgate de trabalhadores explorados. “O que a gente vê que está acontecendo, neste ‘pós-pandemia’, é a crise econômica. A gente nota que os trabalhadores estão empobrecidos e, em razão disso, acabam aceitando ocupações precárias para fugir do desemprego”, explica. “Há também outros fatores, como a reforma trabalhista e o processo de incentivo à negação dos direitos trabalhistas, que vem acontecendo de 2017 para cá.”
'Todo caso é chocante'
Em entrevista em áudio, a auditora fiscal do trabalho Lucilene Passini fala sobre o perfil de pessoas resgatadas, o ambiente em que geralmente são encontradas e as punições previstas para os empregadores. Confira:
Como denunciar?
Denúncias de casos de trabalho análogo à escravidão podem ser feitas diretamente para o Ministério Público do Trabalho do RS pelos telefones:
- (51) 3284-3000 | (51) 99855-8992 (unidade de Porto Alegre);
- (51) 3910-5220 (unidade de Novo Hamburgo).
Além disso, é possível comunicar os fatos a outros órgãos públicos, como a Brigada Militar (BM) ou agentes municipais, que devem dar o devido encaminhamento. O denunciante pode pedir anonimato.
Sistema Ipê
Pela Internet, o principal canal para denúncia é o Sistema de Denúncia de Trabalho Análogo ao de Escravo e Implementação do Módulo Migrante, o Sistema Ipê. Nele, é possível escolher entre os idiomas português, inglês, espanhol e francês, tendo em vista que, em algumas ocasiões, os trabalhadores são trazidos de outros países.
Antes da denúncia, é importante levantar o nome da empresa, tipo de serviço/segmento, o nome do proprietário e se é um trabalho temporário (dias ou meses, como em caso de colheitas) ou por tempo indeterminado. Essas informações são exigidas, pois são importantes para o planejamento das ações de fiscalização.
Além da alternativa anterior, denúncias on-line também podem ser feitas pelo site do MPT, no menu ‘Serviços’. Será necessário preencher seus dados, mas na etapa seguinte você poderá solicitar sigilo. Clique aqui para conferir um tutorial sobre o preenchimento do formulário.
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