INVESTIGAÇÃO
Perícia aponta que paciente morreu por negligência no Hospital Municipal de Novo Hamburgo
Médica deve ser indiciada no caso do motociclista que recebeu alta mesmo com hemorragia interna
Última atualização: 29/02/2024 09:05
O vendedor Douglas Vinícius Souza Fogaça, 40 anos, foi submetido a um martírio pelo sistema público de saúde, até o último suspiro, em 24 de agosto do ano passado. Vítima de acidente de trânsito, recebeu alta no Hospital Municipal de Novo Hamburgo (HMNH) mesmo com intensa hemorragia interna, passou o dia agonizando e morreu em casa. Foram 17 horas de aflição para ele e a família.
“Os laudos periciais e depoimentos mostram que essa pessoa poderia ter sido salva se tivesse recebido atendimento digno e correto. Era para ter passado por cirurgia de urgência e não liberada, numa sucessão de episódios de negligência”, declara o titular da 3ª Delegacia de Polícia, Alexandre Quintão, que aguarda o depoimento de uma médica para encerrar o inquérito. A profissional, especialista em radiologia e diagnóstico por imagem, deve ser indiciada por homicídio culposo.
“Normalidade”
Para o delegado, a atuação da médica foi decisiva para a morte de Douglas. Coube a ela, por meio da empresa Assemed Laudos, de São Paulo, a avaliação de uma tomografia computadorizada do abdome e outra do tórax, feitas no paciente enquanto era atendido na emergência do HMNH. “Exame dentro dos limites da normalidade”, atestou a especialista, com uma observação: “A ausência do uso do meio de contraste reduz a acurácia na avaliação dos órgãos abdominais”. Ou seja, segundo ela, a imagem não permitia precisão de análise.
O laudo, emitido via-online, fez o médico plantonista liberar o paciente. O clínico narrou que, além disso, o acidentado não apresentava traumatismo cranioencefálico nem fraturas. “Apenas dor abdominal e no corpo.” Disse também que conversou com o paciente, que teria mencionado dores leves, e que então passou orientações e o liberou.
Legista atestou que era possível salvar a vítima
Ao examinar o cadáver, o médico legista Werner Gustavo Meyer Carvalho, do Instituto-Geral de Perícias (IGP), identificou ruptura do diafragma, laceração de artéria abdominal e hemorragia interna. Também apontou que a vítima não havia ingerido bebida alcoólica.
O delegado então solicitou que o legista analisasse as imagens das tomografias, para ver se era possível identificar nelas as lesões verificadas no corpo, e Carvalho respondeu que sim. Sustentou que a morte foi causada por hemorragia interna decorrente da laceração de artéria e considerou que poderia ter sido evitada. “A realização de uma laparotomia de urgência , mesmo com os riscos inerentes ao procedimento, permitiria a ligadura do vaso rompido bem como a correção da lesão do diafragma, podendo essas correções evitar o desfecho fatal”, fundamentou.
Delegado acusa profissional de imperícia
As perícias no Instituto-Geral de Perícias (IGP) foram decisivas para o indiciamento. “O laudo emitido pela médica demonstra uma grave violação do dever de cuidado, além de imperícia aplicada ao caso, pois as lesões internas, no tórax da vítima, eram plenamente perceptíveis”, considera o delegado. O crime de homicídio culposo, imputado quando não há a intenção de matar, prevê pena de um a três anos de detenção.
Quintão observa que, há mais de um mês, foi emitida carta precatória para depoimento da médica, que mora em São Paulo. Ainda não houve retorno. Ele recorda do início da investigação. “Estranhamos essa alta tão rápida, para um paciente que mal conseguia andar e apresentava muita dor, e passamos a apurar, solicitando perícias e ouvindo testemunhas.”
O (des)caso
- O acidente aconteceu por volta de 0h30 na Rua Guia Lopes, bairro Canudos, em Novo Hamburgo. Douglas dirigia a moto dele, uma Honda CB300, que se envolveu em colisão com um automóvel. Em cerca de 20 minutos, foi socorrido por ambulância do Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu) e levado ao Hospital Municipal.
- Na emergência, Douglas pediu uma cama, pois não estava se sentindo bem, e foi informado que não tinha. Um outro paciente, de 82 anos, cedeu sua maca, conforme relato de testemunha. Ela contou ainda que um profissional de saúde teria xingado Douglas em razão das queixas de dor. Em menos de três horas, após avaliação médica e exames que não acusaram lesões, o vendedor foi liberado, apesar das reiteradas menções de dor e dificuldade para respirar.
- Já em casa, no bairro Canudos, a agonia continuava. “Pela medicação forte na veia, ele ficou sonolento, mas sem conseguir dormir direito, porque a dor não passava”, recorda a namorada, Emmanuele Beck, 42.
- Por volta do meio-dia, Emmanuele levou Douglas ao Centro Clínico Gaúcho, também em Novo Hamburgo, onde ele tinha plano de saúde empresarial. “A gente foi com as tomografias do hospital e explicou para a doutora que a dor não passava e não conseguia respirar. Ela olhou os exames na nossa frente, mas não examinou o Douglas. Nos disse que era devido à queda da moto e que a dor passaria com medicação mais forte e anti-inflamatório. O Douglas foi de novo para o soro.”
- O laudo dos exames do HMNH teriam induzido a médica da clínica particular a concluir que o quadro não era grave. E Douglas foi liberado por volta das 15h30, com carga ainda maior de analgésicos. “Foi piorando, cada vez mais fraco, e a gente achando que era porque estava há tempo sem se alimentar. Ao dar a janta, minha filha disse que ele ia desmaiar. Na verdade estava falecendo.”
- Passava das 18h30. A filha de Emmanuele começou a telefonar para o Samu e gritar por socorro. “Foram sete ligações só dela e outras tantas de vizinhos, que correram ao nosso apartamento para ajudar. Foi um desespero.”
- O Samu chegou em 45 minutos, por volta das 20 horas. A equipe tentou reanimar, com injeções de adrenalina e outras manobras, mas era tarde. Douglas, já sem sinais vitais, ainda foi levado ao Hospital Municipal. “Essa demora do Samu foi outro episódio de negligência, pois cada minuto é essencial para salvar uma vida”, aponta o delegado Alexandre Quintão.
“Perder um filho assim é muito triste”
Passados mais de sete meses, a dona de casa Mariliz de Lourdes Fogaça, 64, não se conforma. “Perder um filho assim é muito triste. Todo dia a gente lembra que podiam ter dado mais atenção. Fizeram tão pouco caso. Negligência do hospital, médicos, ambulância.”
Ela viu o filho morrer. “Quando estava passando mal, saí de São Leopoldo e cheguei à casa dele, em Novo Hamburgo, 20 minutos antes do Samu. Foi desesperador.” Natural de São Leopoldo, Douglas trabalhava há sete anos em uma distribuidora de bebidas e tinha um filho de 18 anos.
Saúde pública não se manifesta
Responsável pelo hospital, a Fundação de Saúde Pública de Novo Hamburgo (FSNH) não se manifestou sobre as conclusões das investigações. Alegou, nesta segunda-feira (27), que precisava de mais tempo para um parecer. Dois dias após a morte do paciente, no entanto, emitiu nota em que afirmava ter aberto sindicância para apurar os fatos.
A diretora clínica da empresa terceirizada do hospital, Kátia Denardi, enviou comunicado sucinto à redação. “A Localmed Diagnósticos Médicos (nome fantasia Assemed), como contratada da FSNH, somente poderá colocar parecer frente a solicitação da empresa contratante por via oficial”.
O Samu, por meio da coordenação regional, explicou à Polícia o funcionamento da central que regula as ligações para o 192, mas não especificou o caso de Douglas. Comentou que poderia ocorrer espera maior quando as três ambulâncias disponíveis na região estiverem em atendimento.
Em nota, clínica privada se solidariza
O Centro Clínico Gaúcho enviou comunicado à reportagem nesta segunda. “Em sua passagem na unidade, Douglas foi prontamente atendido e avaliado por equipe médica local. O paciente apresentava quadro geral de orientação, lucidez e consciência. Por exibir esse quadro clínico no momento, foram tomados os devidos cuidados e dadas as prescrições cabíveis para aquele momento, além da indicação de retorno à unidade, caso sentisse qualquer outro sintoma.” A nota ainda lamenta a "perda prematura do paciente e reforça que está à disposição da família”.
O vendedor Douglas Vinícius Souza Fogaça, 40 anos, foi submetido a um martírio pelo sistema público de saúde, até o último suspiro, em 24 de agosto do ano passado. Vítima de acidente de trânsito, recebeu alta no Hospital Municipal de Novo Hamburgo (HMNH) mesmo com intensa hemorragia interna, passou o dia agonizando e morreu em casa. Foram 17 horas de aflição para ele e a família.
“Os laudos periciais e depoimentos mostram que essa pessoa poderia ter sido salva se tivesse recebido atendimento digno e correto. Era para ter passado por cirurgia de urgência e não liberada, numa sucessão de episódios de negligência”, declara o titular da 3ª Delegacia de Polícia, Alexandre Quintão, que aguarda o depoimento de uma médica para encerrar o inquérito. A profissional, especialista em radiologia e diagnóstico por imagem, deve ser indiciada por homicídio culposo.
“Normalidade”
Para o delegado, a atuação da médica foi decisiva para a morte de Douglas. Coube a ela, por meio da empresa Assemed Laudos, de São Paulo, a avaliação de uma tomografia computadorizada do abdome e outra do tórax, feitas no paciente enquanto era atendido na emergência do HMNH. “Exame dentro dos limites da normalidade”, atestou a especialista, com uma observação: “A ausência do uso do meio de contraste reduz a acurácia na avaliação dos órgãos abdominais”. Ou seja, segundo ela, a imagem não permitia precisão de análise.
O laudo, emitido via-online, fez o médico plantonista liberar o paciente. O clínico narrou que, além disso, o acidentado não apresentava traumatismo cranioencefálico nem fraturas. “Apenas dor abdominal e no corpo.” Disse também que conversou com o paciente, que teria mencionado dores leves, e que então passou orientações e o liberou.
Legista atestou que era possível salvar a vítima
Ao examinar o cadáver, o médico legista Werner Gustavo Meyer Carvalho, do Instituto-Geral de Perícias (IGP), identificou ruptura do diafragma, laceração de artéria abdominal e hemorragia interna. Também apontou que a vítima não havia ingerido bebida alcoólica.
O delegado então solicitou que o legista analisasse as imagens das tomografias, para ver se era possível identificar nelas as lesões verificadas no corpo, e Carvalho respondeu que sim. Sustentou que a morte foi causada por hemorragia interna decorrente da laceração de artéria e considerou que poderia ter sido evitada. “A realização de uma laparotomia de urgência , mesmo com os riscos inerentes ao procedimento, permitiria a ligadura do vaso rompido bem como a correção da lesão do diafragma, podendo essas correções evitar o desfecho fatal”, fundamentou.
Delegado acusa profissional de imperícia
As perícias no Instituto-Geral de Perícias (IGP) foram decisivas para o indiciamento. “O laudo emitido pela médica demonstra uma grave violação do dever de cuidado, além de imperícia aplicada ao caso, pois as lesões internas, no tórax da vítima, eram plenamente perceptíveis”, considera o delegado. O crime de homicídio culposo, imputado quando não há a intenção de matar, prevê pena de um a três anos de detenção.
Quintão observa que, há mais de um mês, foi emitida carta precatória para depoimento da médica, que mora em São Paulo. Ainda não houve retorno. Ele recorda do início da investigação. “Estranhamos essa alta tão rápida, para um paciente que mal conseguia andar e apresentava muita dor, e passamos a apurar, solicitando perícias e ouvindo testemunhas.”
O (des)caso
- O acidente aconteceu por volta de 0h30 na Rua Guia Lopes, bairro Canudos, em Novo Hamburgo. Douglas dirigia a moto dele, uma Honda CB300, que se envolveu em colisão com um automóvel. Em cerca de 20 minutos, foi socorrido por ambulância do Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu) e levado ao Hospital Municipal.
- Na emergência, Douglas pediu uma cama, pois não estava se sentindo bem, e foi informado que não tinha. Um outro paciente, de 82 anos, cedeu sua maca, conforme relato de testemunha. Ela contou ainda que um profissional de saúde teria xingado Douglas em razão das queixas de dor. Em menos de três horas, após avaliação médica e exames que não acusaram lesões, o vendedor foi liberado, apesar das reiteradas menções de dor e dificuldade para respirar.
- Já em casa, no bairro Canudos, a agonia continuava. “Pela medicação forte na veia, ele ficou sonolento, mas sem conseguir dormir direito, porque a dor não passava”, recorda a namorada, Emmanuele Beck, 42.
- Por volta do meio-dia, Emmanuele levou Douglas ao Centro Clínico Gaúcho, também em Novo Hamburgo, onde ele tinha plano de saúde empresarial. “A gente foi com as tomografias do hospital e explicou para a doutora que a dor não passava e não conseguia respirar. Ela olhou os exames na nossa frente, mas não examinou o Douglas. Nos disse que era devido à queda da moto e que a dor passaria com medicação mais forte e anti-inflamatório. O Douglas foi de novo para o soro.”
- O laudo dos exames do HMNH teriam induzido a médica da clínica particular a concluir que o quadro não era grave. E Douglas foi liberado por volta das 15h30, com carga ainda maior de analgésicos. “Foi piorando, cada vez mais fraco, e a gente achando que era porque estava há tempo sem se alimentar. Ao dar a janta, minha filha disse que ele ia desmaiar. Na verdade estava falecendo.”
- Passava das 18h30. A filha de Emmanuele começou a telefonar para o Samu e gritar por socorro. “Foram sete ligações só dela e outras tantas de vizinhos, que correram ao nosso apartamento para ajudar. Foi um desespero.”
- O Samu chegou em 45 minutos, por volta das 20 horas. A equipe tentou reanimar, com injeções de adrenalina e outras manobras, mas era tarde. Douglas, já sem sinais vitais, ainda foi levado ao Hospital Municipal. “Essa demora do Samu foi outro episódio de negligência, pois cada minuto é essencial para salvar uma vida”, aponta o delegado Alexandre Quintão.
“Perder um filho assim é muito triste”
Passados mais de sete meses, a dona de casa Mariliz de Lourdes Fogaça, 64, não se conforma. “Perder um filho assim é muito triste. Todo dia a gente lembra que podiam ter dado mais atenção. Fizeram tão pouco caso. Negligência do hospital, médicos, ambulância.”
Ela viu o filho morrer. “Quando estava passando mal, saí de São Leopoldo e cheguei à casa dele, em Novo Hamburgo, 20 minutos antes do Samu. Foi desesperador.” Natural de São Leopoldo, Douglas trabalhava há sete anos em uma distribuidora de bebidas e tinha um filho de 18 anos.
Saúde pública não se manifesta
Responsável pelo hospital, a Fundação de Saúde Pública de Novo Hamburgo (FSNH) não se manifestou sobre as conclusões das investigações. Alegou, nesta segunda-feira (27), que precisava de mais tempo para um parecer. Dois dias após a morte do paciente, no entanto, emitiu nota em que afirmava ter aberto sindicância para apurar os fatos.
A diretora clínica da empresa terceirizada do hospital, Kátia Denardi, enviou comunicado sucinto à redação. “A Localmed Diagnósticos Médicos (nome fantasia Assemed), como contratada da FSNH, somente poderá colocar parecer frente a solicitação da empresa contratante por via oficial”.
O Samu, por meio da coordenação regional, explicou à Polícia o funcionamento da central que regula as ligações para o 192, mas não especificou o caso de Douglas. Comentou que poderia ocorrer espera maior quando as três ambulâncias disponíveis na região estiverem em atendimento.
Em nota, clínica privada se solidariza
O Centro Clínico Gaúcho enviou comunicado à reportagem nesta segunda. “Em sua passagem na unidade, Douglas foi prontamente atendido e avaliado por equipe médica local. O paciente apresentava quadro geral de orientação, lucidez e consciência. Por exibir esse quadro clínico no momento, foram tomados os devidos cuidados e dadas as prescrições cabíveis para aquele momento, além da indicação de retorno à unidade, caso sentisse qualquer outro sintoma.” A nota ainda lamenta a "perda prematura do paciente e reforça que está à disposição da família”.
“Os laudos periciais e depoimentos mostram que essa pessoa poderia ter sido salva se tivesse recebido atendimento digno e correto. Era para ter passado por cirurgia de urgência e não liberada, numa sucessão de episódios de negligência”, declara o titular da 3ª Delegacia de Polícia, Alexandre Quintão, que aguarda o depoimento de uma médica para encerrar o inquérito. A profissional, especialista em radiologia e diagnóstico por imagem, deve ser indiciada por homicídio culposo.