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Perguntas e respostas que ajudam a entender o desastre climático que atinge o Rio Grande do Sul

Ciclone extratropical causou destruição e mortes após provocar muita chuva entre quinta e sexta-feira; Vale do Sinos sofre com a enchente

Publicado em: 19/06/2023 13:44
Última atualização: 16/06/2024 11:17

O Rio Grande do Sul enfrenta desde a última quinta-feira (15) o mais grave evento climático dos últimos anos, com pelo menos 13 mortes, desaparecidos, milhares de pessoas atingidas por alagamentos e um rastro de prejuízo ainda incalculável. Veja abaixo as respostas da meteorologista Estael Sias, da MetSul Meteorologia, para perguntas que ajudam a entender o problema.


Muita destruição na área rural de Caraá após passagem de ciclone extratropical Foto: Amanda Bernardo/GES-Especial

O que aconteceu?

Um ciclone extratropical se formou sobre o Atlântico, na costa do Sul do Brasil, junto ao Sul de Santa Catarina e o Litoral Norte gaúcho. A baixa pressão se originou na costa de São Paulo, onde gerou muita chuva e inundações em São Sebastião, e se deslocou para o Sul até se intensificar muito entre quinta à noite (15) e o começo da sexta (16) a leste de Torres.


Ciclone extratropical em formação na região do Litoral Norte do Rio Grande do Sul Foto: Reprodução/MetSul

Ciclones como este são normais?

Sim! Ciclones são absolutamente comuns em nosso clima e ocorrem no Atlântico Sul semanalmente. Não raro há dois ou três ciclones no Sul do Atlântico perto da Argentina e da Antártida. Já ciclones na costa do Sul do Brasil são menos frequentes, embora não raros. Estes ciclones muito próximos da costa do Sul do Brasil têm maior potencial de trazer impactos severos por chuva e vento porque interagem mais com a orografia (relevo) da região da Serra do Mar que os sistemas que se formam tradicionalmente do Rio da Prata para o Sul.


Ciclone extratropical em formação na região do Litoral Norte do Rio Grande do Sul Foto: Reprodução/MetSul

Como se classifica o ciclone?

Tratou-se de um ciclone de natureza extratropical na sua origem, ou seja, com todo o seu centro frio, efeito do encontro de massa de ar frio com outra mais quente. Já a tempestade Yakecan, de maio do ano passado, foi um ciclone subtropical, logo com centro quente em superfície e frio em altura. Ocorre que o ciclone deste junho de 2023 pode ter transicionado para o status de subtropica na costa gaúcha, antes de voltar a ser extratropical ao se afastar do continente. Ciclones extratropicais não recebem nomes no Brasil, somente os subtropicais e tropicais.

O ciclone da semana passada teve algo diferente?

Sim, assim como a tempestade subtropical Yakecan de maio de 2022, o ciclone extratropical dos dias 15 e 16 avançou de leste para oeste, do mar para o continente, quando a trajetória normal de ciclones é de oeste para leste. Yakecan veio do sul, ao se formar na costa da Argentina, e o sistema de agora veio do norte, após ter se originado na costa paulista.


Cheia do Rio Caí inunda as ruas de Montenegro Foto: Filipe Serena/Sits Fotos Montenegro

Por que choveu tanto?

O centro do ciclone estava muitíssimo perto da costa entre o final da quinta e o começo da sexta com as nuvens mais carregadas a oeste do seu centro de circulação sobre o nordeste gaúcho. Por isso, a chuva foi extrema na Serra, Litoral Norte, Grande Porto Alegre e nos Vales do Caí, Sinos e Paranhana.

O fluxo de umidade do oceano para o continente pela tempestade costeira era intenso, com vento muito forte em baixos níveis da atmosfera, contribuindo para os volumes de chuva excessivos. Uma vez que a pressão não era muito baixa no centro do sistema, o maior impacto foi chuva que vento, embora o vento tenha atingido 80 km/h em Porto Alegre e mais de 100 km/h no Litoral Norte.


Arroio Kruze transbordou no bairro Santo André, em São Leopoldo Foto: Débora Ertel/GES-Especial

Por que a chuva foi extrema apenas em algumas áreas?

A explicação está no relevo. Os maiores acumulados de chuva se deram justamente em áreas perto ou junto à Serra do Mar, entre o Vale do Caí (região de Bom Princípio), o Vale do Sinos e a áreas entre a Serra e o Litoral Norte numa faixa até Praia Grande, no Sul de Santa Catarina e a Leste de Cambará do Sul.

Estações mostraram no Caí que a chuva em pontos baixos na encosta da Serra atingiu até 250 milímetros enquanto apenas 20 ou 30 quilômetros ao Norte, sobre a Serra, a chuva ficou ao redor de 100 milímetros. Ou seja, os morros serviram como uma barreira para a umidade e a chuva caiu com violência nas encostas e entre os morros. Foi um evento de chuva orográfica nos locais mais atingidos junto à Serra do Mar.


Rio dos Sinos sobe e alaga residências do bairro Canudos, em Novo Hamburgo Foto: Igor Müller/GES-Especial

O que é essa tal chuva orográfica?

É a precipitação induzida pelo relevo. Umidade que vem do oceano, trazida por vento, em razão do ciclone, ao encontrar a barreira do relevo da Serra do Mar, ascende na atmosfera e encontra temperatura mais baixa à medida que ascende na atmosfera com camadas mais frias. Isso leva à condensação e à ocorrência de chuva induzida pelo relevo. Em um exemplo bem didático e simples de entender.

O que acontece se você chega na frente de um espelho e soltar ar da sua boca? O espelho que tem uma superfície mais fria vai ficar embaçado (úmido) e molhado. Com a chuva orográfica ocorre o mesmo. O ar mais úmido e quente (analogia com ar que sai da boca) encontra um obstáculo físico que é o relevo (como o espelho) e ao chegar nesta barreira que são os morros sobe na atmosfera e encontra temperatura mais baixa, condensando-se o vapor de água e formando chuva. Episódios de chuva orográfica são de alto risco porque costumam trazer acumulados de precipitação localmente muito altos e que não raro até acabam superando as projeções dos modelos numéricos.

Foi uma chuva fora do normal?

Muito! Foi um evento histórico de precipitação. É muito raro ter volumes de chuva tão altos quanto os registrados em Porto Alegre, nos Vales e Região Metropolitana em poucas horas. A chuva se aproximou dos 350 milímetros em pontos do Litoral Norte junto à Serra e variou de 200 a 275 milímetros nos Vales do Sinos e do Caí, quase dois meses de precipitação em 30 horas.

Na encosta da Serra junto ao Litoral Norte, por efeito do relevo (orografia), estes episódios extremos ocorrem com maior recorrência. Houve um, por exemplo, na primeira semana de março deste ano. Já nos Vales e na Grande Porto Alegre, acumulados tão extremos são muito menos comuns.

Para se ter ideia de como foi incomum a chuva, Porto Alegre teve o maior acumulado de precipitação em 24 horas em junho de sua série histórica com 141,6 milímetros até 9 horas de sexta (16), superando o recorde mensal de 138,8 milímetros de 15 de junho de 1982.

A média histórica de precipitação de Porto Alegre de junho todo é 130 milímetros. O volume até 9 horas de sexta-feira de 209,0 milímetros em Campo Bom foi o maior em 24 horas em junho em estação do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) no Rio Grande do Sul desde 1961.


Domingo de limpeza no Núcleo de Casas Enxaimel, em Ivoti, fortemente atingido pelas chuvas de quinta e sexta Foto: Igor Müller/GES-Especial

Como esse ciclone se compara com outros?

O sistema guarda semelhança com um ciclone da primeira semana de maio de 2008. Há 15 anos, a área mais atingida foi justamente a mesma: o Nordeste gaúcho. Tal como agora choveu excessivamente na capital, área metropolitana, Vales e litoral com acumulados extremos acima de 200 milímetros em poucas horas. A diferença é que no ciclone de 2008 o vento foi muito mais forte e passou de 120 km/h em muitos locais, como Porto Alegre.


Enchente no bairro Canudos, em Novo Hamburgo Foto: Vandré Brancão/GES-Especial

El Niño favoreceu o ciclone?

Não é possível estabelecer tal correlação. Ciclones ocorrem em qualquer época do ano e estando o Pacífico neutro ou com El Niño ou La Niña. Ciclones intensos e de alto impacto se formaram junto ao Sul do Brasil em anos de neutralidade e La Niña. Oficialmente o El Niño começou há poucos dias.

E o aquecimento global?

Também não se pode afirmar tal correlação. Ciclones fazem parte da variabilidade natural do clima e são documentados no Rio Grande do Sul por naufrágios na costa ainda no século 19, quando o planeta não passava pelo atual processo de aquecimento antropogênico.

Sempre que há um desastre natural de grandes proporções e um evento meteorológico extremo há uma tendência natural de se relacionar o fato imediatamente às mudanças climáticas, mas a boa ciência não tem resposta pronta para todas as questões e é preciso examinar detidamente cada evento.

Embora esteja demonstrado por vários trabalhos científicos que o aquecimento do planeta esteja causando um aumento dos eventos de chuva extrema no Sul e no Sudeste do Brasil, somente um estudo de atribuição poderá determinar se as mudanças climáticas tiveram alguma contribuição e qual foi o nível de contribuição. O nosso entendimento é que será difícil encontrar um sinal de mudanças climáticas neste evento.


Ciclone extratropical causou prejuízos no município de Caraá Foto: Amanda Bernardo/GES-Especial

Teremos mais ciclones neste ano?

Muito provavelmente. Ciclones podem afetar o Rio Grande do Sul em qualquer época do ano, mesmo no verão, como se viu no carnaval, porém são mais comuns nos meses de inverno e primavera. Se haverá um com tantos impactos como o de ontem somente é possível se prever dias antes, mas a estatística histórica mostra que eventos como este de junho não ocorrem com tamanha frequência.

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