Não é de hoje que os prefeitos reclamam da falta de dinheiro para pagar as contas e fazer investimentos. Com o final de ano batendo à porta, Lei de Responsabilidade Fiscal e a reforma tributária, a situação das finanças tem preocupado gestores municipais.
O Índice Firjan de Gestão Fiscal (IFGF), elaborado pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), apontou que 41,9% dos municípios do Brasil apresentam situação fiscal difícil ou crítica.
A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) já havia informado que em 51% das cidades com população de até 156.216 habitantes o primeiro semestre ficou com déficit fiscal. Em municípios com população maior, o déficit foi de 26%. Outro complicador são os repasses vindos de Brasília – Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e a verba do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).
Segundo a CNM, a queda no repasse do FPM no segundo semestre chegou a 12% em relação ao ano passado, são R$ 3,9 bilhões que não chegaram aos municípios. Já no Fundeb, de julho até o começo de novembro a queda chega a 1,91%. O governo federal promete pagar as diferenças.
Em Novo Hamburgo, por exemplo, a Prefeitura garante que vai fechar o ano no azul, mas enfrenta uma queda no volume de repasses de aproximadamente 12% em relação ao mesmo período de 2022. São R$ 60 milhões ao ano. A cifra se aproxima do valor da obra de construção da nova estação de tratamento de esgoto (ETE) Luiz Rau, orçada em R$ 70 milhões.
A situação fiscal das prefeituras já ligou o sinal de alerta na Federação das Associações dos Municípios do Estado (Famurs). “Apesar de ser algo que costuma acontecer todos os anos, há preocupação, principalmente, porque a economia gaúcha vem dando sinais de desaceleração”, pontua o presidente da Famurs e prefeito de Campo Bom, Luciano Orsi. “Especificamente neste ano, preocupa-nos as notícias de que alguns municípios terão dificuldades no pagamento do 13º salário e em alguns casos específicos, de manter as remunerações de seus servidores em dia”, alerta Orsi.
Situação pela região
Já em Campo Bom, de acordo com o prefeito, o superávit dos últimos anos vai permitir fechar 2023 sem dívidas. “Não fosse a saúde financeira, o município estaria enfrentando mais dificuldade no fechamento das contas, como tem ocorrido em outras cidades da região”, pondera. A expectativa é de redução de 9% nos repasses do FPM, R$ 5,7 milhões, e queda de 8,4% no Imposto sobre Circulação e Mercadorias (ICMS).
De acordo com o estudo da Firjan, divulgado no final de outubro, o cenário no Brasil é de alta dependência de transferência de receitas e planejamento financeiro vulnerável diante de crescimento de despesas obrigatórias. A Firjan ainda destaca o baixo nível de investimentos, resultando em piora do ambiente de negócios e precarização de serviços públicos essenciais à população.
Na região, Feliz, Presidente Lucena e Salvador do Sul foram as únicas com nota 1 no índice Firjan, ficando entre as primeiras colocadas no Estado e no Brasil com avaliação positiva em gastos com pessoal, liquidez, autonomia e investimentos.
Apesar disso, o destaque nacional não é sinônimo de tranquilidade, como chama atenção o secretário da Fazendo de Feliz, Igor Germano Seibert. “Embora tenhamos alcançado excelente resultado nos indicadores de gestão contábil e fiscal também estamos sentindo os impactos diretamente”, diz. De acordo com ele, a prefeitura tem conseguido fechar as contas em dia nesse ano em razão das receitas próprias.
A CNM ressalta que a saúde tem pesado no bolso das prefeituras. A lei determina investimento de 15% do orçamento, mas a média nacional ficou em 22,27%, com muitos municípios chegando a 25%.
Canoas com déficit de R$ 300 milhões
Desde o começo do ano, Canoas estima que teve perda de R$ 55 milhões na receita total. A queda acentuou a situação negativa do caixa que, conforme o secretário da Fazenda João Batista Portella, deverá fechar 2023 com déficit de R$ 300 milhões. Portella explica que a situação negativa se acentuou no ano passado e que ajustes e readequações de despesas são realizadas para reencontrar o equilíbrio financeiro. “O município vem assumindo cada vez mais encargos que são dos outros entes da federação. O gasto com a saúde está em 26%”, se queixa.
Decretos para conter despesas
Segundo o presidente da Associação dos Municípios do Vale Germânico (Amvag) e prefeito de Estância Velha, Diego Francisco, no Vale dos Sinos a maioria das prefeituras, graças às adequações financeiras, fechará o ano com dinheiro em caixa. “O crescimento vegetativo na folha, de forma continuada, parte significativa sendo reflexo dos pisos salariais e a demanda social, sempre pressionam os gastos”, descreve.
Em Parobé, no Vale do Paranhana, em julho foi publicado um decreto municipal para conter as despesas. Dentre as medidas adotadas, está a redução de 50% no valor das diárias para servidores em deslocamento fora do Estado e suspensão do pagamento de diárias para aqueles que estiverem em outras cidades gaúchas. “Mesmo não sendo garantido o fechamento do ano com total equilibro financeiro devido à queda acentuada desses repasses de verbas, a Prefeitura garante que os compromissos com os servidores municipais serão honrados”, informou a administração pela assessoria de imprensa.
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Segundo o secretário da Fazenda de São Leopoldo, Eduardo Peters, a prefeitura já vem trabalhando com cenário de redução de receita desde março de 2023. A partir deste momento, o município adotou medidas de contenção de gastos, preparando as finanças para o segundo semestre. São Sebastião do Caí calcular que recebeu a menos quase R$ 1,8 milhão em repasses.
Famurs faz levantamento
A Famurs realiza uma pesquisa junto às prefeituras para apurar a real situação fiscal dos cofres municipais. Segundo a entidade, no momento há uma mostra parcial, com dado de um terço dos municípios. Destes, 20% afirmam que terão dificuldades, indicando que haverá restos a pagar em suas contas. Esse percentual, segundo a Famurs, aumenta para 36% se não houver o pagamento prometido pela União de antecipação dos valores de compensação das perdas do ICMS pela alteração da alíquota dos combustíveis.
Queda do FPM e ICMS, conforme a Famurs, são as “pedras” nos sapatos dos gestores municipais. Além disso, 54% dos municípios que responderam ao levantamento indicam que houve aumento do custeio da máquina pública acima do que se tinha projetado no orçamento. “Com o aumento do custeio e a queda da arrecadação, forma-se um caldeirão perfeito para dificuldades a serem enfrentadas”, diz Orsi.
Segundo o levantamento, 46% das prefeituras apontam que o fator de despesas não previstas vai dificultar ainda mais o resultado fiscal. Em especial os desastres naturais, que danificaram estradas e pontes, dentre outras estruturas. A Famurs ainda chama atenção para os bloqueios judiciais em razão do atendimento na saúde.
A entidade, conforme Orsi, se diz “descontente” com o texto aprovado da Reforma Tributária, pois o imposto será devido e arrecadado no destino final, no local do consumo, o que vai prejudicar os municípios de produção primária e de menor população.
Por fim, a Famurs informa o Tribunal de Contas do Estado (TCE) alterou entendimento no sentido de que os terceirizados devem constar no cálculo do limite de gastos de pessoal. “Isso está impactando significativamente, pois cerca de 7% dos municípios que responderam a pesquisa já se encontram no limite prudencial e 15% estão acima do limite”.
Brasília é que fica com a maior parte do dinheiro
O doutor em direito tributário e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Unisinos Ederson Garin Porto diz que a situação econômica dos municípios é um problema crítico, uma questão com origens mais antigas, ligadas à estrutura do pacto federativo entre União, estados e municípios. O pacto não deu dinheiro para as prefeituras e o “dinheiro grosso”, como diz o especialista, fica com a União. No entanto, na execução dos serviços públicos a ordem é inversa, com as prefeituras atendendo a população. “Este arranjo está muito mal”, resume.
Segundo o professor, são realizadas algumas compensações para amenizar esta distorção na distribuição dos recursos públicos, sendo o FPM uma delas. “Só que os repasses ficam à mercê de negociações políticas, acordos, ajustes. E aí está a origem da falta de dinheiro para os municípios”, explica Porto.
Nos cofres das prefeituras ficam apenas três tributos: Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU), Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e o ISSQN (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza).
Segundo Porto, situação mais difícil ainda vivem os municípios menores, no interior, onde há poucos prestadores de serviço, com pouca movimentação imobiliária. “Mais da metade das cidades não se sustenta”, diz.
Porto lembra que o município não pode inventar receita, criando novos impostos. “O que ele pode é ser criativo na despesa. Mas existem normas para a prestação da saúde e educação. Ele ainda precisa pagar o funcionalismo. Daí deu, acabou a gestão municipal porque acabou o dinheiro”, descreve. O resultado é que a maioria das cidades não tem receita própria para se manter e para Porto, por mais que se discuta o valor do repasse, FPM e Fundeb são apenas “paliativos” nesta matemática pública.
O especialista também chama atenção para a prática de antecipação de receita, como o pagamento adiantado do IPTU. “É uma pedalada fiscal, pois de acaba gastando o dinheiro que é do outro ano neste”, pondera. Ela ainda lembra que a Lei de Responsabilidade Fiscal impõe uma série de regras, o que impossibilita as prefeituras de contrair empréstimos acima da capacidade de arrecadação. “Só quem pode se endividar ilimitadamente é a União. Então os prefeitos ficam reféns”, comenta.
Efeitos da reforma tributária
Na avaliação do professor, a reforma tributária aprovada no Senado, vai piorar a situação dos caixas das prefeituras, pois o ISSQN vai compor um “bolo” geral de recursos, administrado por com um comitê gestor para os mais de 5 mil municípios. Para Porto, o critério de levar em conta a arrecadação do município, privilegiando quem teve melhor escore nos últimos anos é outro problema. “Essa reforma em termos de arrecadação é seis por meia dúzia. Uma mudança para pior que será compensada por um fundo”, avalia. “Se tiver um desenvolvimento econômico, num futuro talvez se arrecade mais”, analisa.
A solução para pôr fim à “choradeira” pela falta de dinheiro, na avaliação do especialista, é um projeto de emenda constitucional (PEC) para mudar a repartição tributária. “Este é o nó, o ponto central. Sem alterar isso não tem a menor chance, sendo muito franco”, dispara.
Mas Porto é incrédulo de que essa mudança ocorra, pois para isso o Congresso Nacional, proprietário de um orçamento bilionário (em 2023 foram mais de R$ 46 bilhões), teria que abdicar de receita e passar para os municípios. “Isto a gente chama de dilema do prisioneiro. Não tem como desatar este nó, porque quem deveria desatar tem interesse de perpetuar”, analisa.
Por fim, o especialista destaca que a frase já dita no meio político, “mais Brasil, menos Brasília” seria uma solução para a questão fiscal. “Só que Brasília não quer deixar de ser Brasília. A capital tinha que perder a importância que tem em relação aos recursos e deixar de concentrar todo o dinheiro do Brasil”, conclui.