EXCLUSIVO
Padre é acusado de assédio sexual contra adolescente da paróquia em Canela
O sacerdote, que se diz vítima de vingança, empregou a menina e a mãe dela de forma irregular na igreja
Última atualização: 10/03/2024 18:58
Aos 16 anos, a estudante de família pobre ganhou a oportunidade do primeiro emprego na secretaria da igreja. O convite veio do pároco, conselheiro espiritual do Curso de Liderança Juvenil (CLJ), que ela frequentava com devoção. O entusiasmo se transformou em decepção, medo e depressão. Segundo a adolescente, o padre passou a insistir para que namorasse com ele, a perseguia e “passava a mão”. Conta que a chantagem do chefe se acentuava na medida em que a mãe, de 39 anos, também era funcionária da paróquia. Afirma que não cedeu. As duas foram demitidas. Denunciaram. O sacerdote virou réu de ação penal por assédio sexual. Nega o crime. Diz que é vítima de armação e vingança.
O processo tramita na 2ª Vara Judicial de Canela e tem a primeira audiência marcada para 13 de dezembro. “Vanderlei Barcelos de Borba constrangeu a vítima com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se da sua condição de superior hierárquico, inerente à sua função de responsável pela casa paroquial”, despachou o promotor Paulo Eduardo Vieira, ao denunciar o padre de 49 anos, em maio deste ano.
E prosseguiu: “Valendo-se do temor reverencial inerente ao cargo de sacerdote católico, responsável pela secretaria paroquial, assediou a ofendida, a qual desempenhava a função de secretária do local, quando, após segurá-la pelo braço, tocou em seu seio. Ato contínuo, o denunciado passou a fazer-lhe propostas constrangedoras, oportunidade em que ofereceu uma ‘vida de luxo e viagens’ a fim de obter vantagem ou favorecimento sexual”.
Juíza recebe denúncia
Em junho, a juíza Simone Ribeiro Chalela aceitou a fundamentação do Ministério Público e abriu processo. “A denúncia se encontra formalmente regular, contendo a exposição do fato criminoso, com todas as circunstâncias, a qualificação do acusado e a classificação do crime, de modo que atende aos requisitos. Pelo exposto recebo a denúncia.”
Em paralelo à ação penal, há um processo indenizatório por danos morais contra a Diocese de Novo Hamburgo, em razão do suposto assédio sexual, e outro trabalhista contra a Paróquia Nossa Senhora de Lourdes, de Canela, como empresa jurídica responsável pelo emprego irregular de mãe e filha. Na audiência de conciliação, no fim de agosto, não houve acordo.
Do convite à demissão
Pelo envolvimento com a igreja, a mãe da adolescente foi empregada como governanta da casa paroquial de Canela em 8 de fevereiro de 2021. O salário: R$ 2,5 mil, sem carteira assinada. “O padre Barcelos fez a oferta. Era bem acima do que as paróquias pagam. E com duas filhas para criar com o salário mínimo do meu marido no campo.”
O trabalho era fazer limpeza, comida e compras do dia-a-dia. “Eu gostava do trabalho. Era na paróquia da minha família.” Um mês depois, segundo ela, o pároco ofereceu emprego de secretária da paróquia à filha adolescente, assídua do CLJ . “Pediu se eu concordava, por ser menor. Consultei meu marido e aceitamos.”
A menina começou a trabalhar no dia 23 de junho. “Pedi que fosse assinada carteira de trabalho e o padre concordou. Mas foi passando o tempo e nada. O que vi, com o tempo, foi o padre se passando com minha filha. Ela afastava ele, tentava se impor, mas ele insistia.”
A mãe conta que a menina evitava se abrir pela preocupação que o pai ficasse sabendo. “Imagina a situação. Precisávamos do emprego e havia o medo de que meu marido, homem simples do campo, fosse tirar satisfação. A (filha) temia que o pai fosse matar o padre. Fui pedir para o Barcelos parar. Ele fazia pouco caso. Tentava manipular. Falei com outros padres e recebi alguns conselhos, mas pouca ajuda.”
A situação, conforme ela, foi ficando insustentável, apesar do contrato de experiência formalizado com a filha no dia 9 de fevereiro deste ano. “A (nome da adolescente) estava diferente, abatida. Até que, na noite de 23 de fevereiro, desabafou de vez. Chegou em casa da aula e disse que não aguentava mais. Que não conseguia mais dormir. Que o assédio estava demais. Chorava.”
A mãe recorda que foi decidida ao trabalho, no dia seguinte, para resolver de vez. “Chamei o padre para conversar. Disse a ele para não se meter mais à besta porque minha filha não estava à venda. Ele respondeu: ‘Manda me prender. Eu sou um padre’. Fui embora.”
Conforme ela, a discussão foi às 13 horas. “Às 16h30, uma advogada, a mando dele, me chamou para conversar. Disse que o padre não queria mais meus serviços. Mandou eu e minha filha embora. Também a retirou do CLJ.”
A ex-governanta relata que, desorientada, foi aconselhada por amigos da paróquia a procurar um advogado. “Uma família indicou um, que nos orientou a fazer boletim de ocorrência e assumiu a questão da Justiça.”
Ela frisa que buscou amparo na Diocese de Novo Hamburgo, que abrange a paróquia de Canela. “Expus a situação da (nome da filha) em depressão, recebi promessa de apoio e nunca mais obtive retorno, apesar das várias mensagens que enviava.”
E a fé na igreja? “Começamos a frequentar a igreja em 2018 e isso transformou nossa vida para melhor. Esse padre não vai tirar nossa fé. Continuamos indo à missa, porque a igreja é de Deus, não dos homens.”
Como fica quando é ele no altar? “Sentamos na primeira fila. Ele fixa ela (filha) com olhar apaixonado. Não sou burra. Tenho quase 40 anos.”
Advogado aponta dano moral e fraude trabalhista
O advogado das vítimas, Pedro Schuch, frisa que, apesar de a igreja oferecer pagamento de 50% a mais que a dívida trabalhista com as ex-funcionárias, ele diverge do alicerce da proposta. “Estamos diante de assédio sexual e fraude trabalhista. Quando a ré se propõe a pagar mais que o direito puro por não ter assinado a carteira da mãe e ter feito um contrato de experiência com a filha somente após seis meses de trabalho, o que é irregular, é porque assume o assédio. Porém, quer resolver tudo na causa trabalhista, com a intenção de livrar a Diocese do dano moral.”
Schuch observa que não atua na área criminal, mas afirma que o assédio sexual está caracterizado. “O comportamento do padre era de verdadeira fissura pela menor.” Destaca a situação de vulnerabilidade da adolescente que, ao mesmo tempo que repelia as insistentes investidas do chefe, precisava do emprego. “O tipo de perseguição, com constante presença, olhar e tentativa de aproximações corporais exercidas pelo pároco foram ainda mais gravosos, pois acompanhados do poder patronal.”
Acrescenta que o cenário também fragilizava a mãe. “Da mesma forma que a filha, precisava do emprego e do salário para sua manutenção e para colaborar na manutenção do lar da família.”
Diocese diz que não pode ser responsabilizada
Defendida por uma banca de Brasília, a Diocese de Novo Hamburgo argumenta que não pode ser responsabilizada. Mesmo que Canela seja uma de suas 49 paróquias. “A conduta descrita pelas requerentes consistente nos supostos assédios sexual e moral praticados pelo agente não tem qualquer relação com o fato dele ser padre. Logo, não há como responsabilizar a Igreja, nos termos do Código Civil, pelo simples fato do possível causador de eventual dano ser padre”, consideram os advogados Lucas Maia e Lorena Cunha.
Ao acrescentar que mãe e filha trabalhavam na paróquia, os advogados salientam, que “o temor ocasionado nas requerentes pelas condutas do padre consistiu na intimidação em razão da sua condição de superior hierárquico, em razão do receio de demissão, e não pelo fato de ser padre. Vale dizer, as supostas condutas do padre não possuem qualquer relação com o exercício da sua função religiosa, que possa justificar a responsabilização da Diocese”.
Os defensores ainda questionam a denúncia criminal. “A prova documental anexada aos autos é, além de confusa, parca. Conforme se demonstrará, sequer fica claro que o padre efetivamente importunava sexualmente a jovem autora. Se as condutas fossem reiteradas e os convites para saídas com intuito sexuais fossem frequentes, por certo teria maior acervo documental a apresentar nestes autos e às autoridades competentes.”
“Me sentia abusada, humilhada, um objeto à venda”
Hoje com 17 anos, sob tratamento psiquiátrico e medicação de uso controlado, a adolescente fala em tom de constrangimento e chora em vários momentos. A mãe, ao lado, mostra uma pilha recente de laudos médicos e receitas de remédios para depressão e ansiedade.
Como começou o assédio?
Vítima - Pelos olhares, pelos toques e principalmente por palavras.
Que palavras?
Vítima - Dizia que eu era muito bonita, que chamava muito a atenção, que qualquer homem gostaria de ficar comigo. Disse que gostaria de ter 20 anos novamente para poder namorar comigo. Falava coisas indecentes, que estava com o zíper da calça aberto.
Como você se sentia?
Vítima - Eu não queria acreditar, pela crença que sempre tive na igreja. Eu via a igreja como um mar de flores. Me sentia abusada, humilhada, um objeto à venda. Ele me via como se fosse uma garota de programa. Propostas de dinheiro, viagens, presentes, joias. Convidava para sair. Queria me comprar.
Você aceitou algo?
Vítima - Não sou um objeto à venda. Tenho os meus pais, minha família. Jamais pensei que isso pudesse vir de um padre, uma pessoa que eu via como alguém que pudesse me aconselhar. Ele dizia que queria que o visse como homem, não como padre.
E os toques?
Vítima - Na secretaria, tem uma parede atrás do balcão onde dá para ficar de corpo sem que consiga ver o do outro lado. Ele vinha, passava a mão (pausa) nos meus cabelos, seios. Chegou a passar a mão em outras partes minhas também.
Houve reação mais forte?
Vítima - Uma vez me chamou para conversar e trancou a porta. Me abraçou e quis me beijar. Repetiu que queria voltar a ter 20 anos, que estava encantado por mim. Empurrei ele e saí correndo de volta à secretaria. Ele veio atrás fazendo sinais para eu me acalmar, para não falar nada.
Sofria ameaças?
Vítima - Me ameaçou várias vezes. Dizia que eu não era para contar, pelo que meu pai poderia fazer, e falava que nada ia acontecer com ele, porque é padre. Até já me mostrou foto de pistola. Eu dizia que só queria trabalhar.
Sua fé foi abalada?
Vítima - Sei diferenciar o padre da igreja. Não era Deus que estava li. Era só aquele homem. O que ele fez, tento esquecer, mas não é fácil. Me tirou muita coisa. O convívio no CLJ, meu trabalho. Perdi minha auto-estima, perdi vontade de viver, vontade de conhecer outras pessoas.
“Não devo e não existem provas”
O padre Vanderlei Barcelos de Borba afirma que foi enganado pela mãe da adolescente ao empregá-la. Garante que ela não queria assinar carteira de trabalho e que criou a história do assédio após a demissão. Barcelos está desde agosto à frente da paróquia de Canela, uma das mais movimentadas da Diocese em função do turismo.
O senhor passava a mão na funcionária, convidava para sair, namorar?
Vanderlei Barcelos de Borba - Imagina se eu faria propostas dessas, eu que vou fazer 50 anos, para uma moça. Algo muito imaturo. Nunca passei por uma situação dessa na minha caminhada toda. É pura vingança e busca de dinheiro. Imagina meu sofrimento nesses sete meses. Veio uma auditoria canônica, fizeram uma averiguação, 40 páginas, não comprovaram nada, não existe prova. É a palavra de mãe, de uma moça de hoje 17 anos. A Justiça vai provar. Meu advogado disse para eu ficar tranquilo porque não devo e não existe provas. O tempo vai dizer.
Qual o motivo da vingança?
Barcelos - Porque tive que afastá-la do trabalho. Ela não quis permanecer nas condições que propus. Ela não queria assinar a carteira por causa de aposentadoria rural. Passou um tempo, a diretoria e a Mitra me alertaram que não era permitido. Que não podia ter funcionário sem os direitos. Então falei a ela, que não aceitou. Lembro bem. Foi no dia 24 de fevereiro que a afastei depois de ter me insultado. E agora está acontecendo isso. Estou muito tranquilo. Quem não deve não teme. A verdade vai vir à tona. Incorri no erro de trazer para a paróquia essas pessoas.
O senhor propôs acordo por mensagem de celular?
Barcelos - Olha, isso é uma questão do advogado.
Por que não assinou carteira de trabalho?
Barcelos - Tive o erro de trazer para a paróquia essas pessoas. Essa senhora não aceitou eu assinar a carteira dela. Acolhi essa mulher. Me pediu trabalho. Era catequista, vendia queijo, leite para nós.
Ela recebia salário nos padrões das paróquias?
Barcelos - O salário médio é 1.600. Eu colaborava com 2.500. Ela disse que tem família miserável, mas anda com carro do ano. Eu pagava por causa da gasolina e claro, não tinha carteira assinada, Ela quer cobrar não só da paróquia, mas da Mitra também. É um absurdo.
A filha adolescente também não tinha carteira assinada.
Barcelos - Ela tinha.
Após a demissão, o senhor proibiu a adolescente de participar do CLJ?
Barcelos - Não. O que aconteceu: para eles sou uma pessoa perigosa. Então consta no processo que não devo me aproximar. Onde acontecem os encontros, é um ambiente do sacerdote.
O que sente pela adolescente ex-funcionária?
Barcelos - Sinto pena. Inclusive soube que até doente está. A mãe usou a filha, de certa forma. Uma moça que tinha trabalho, uma moça que estava na igreja. Me aprontaram isso, dizendo que eu era uma pessoa perigosa. Logo, tiveram que afastar a moça desse meio. E os meses foram passando e é claro, que eu como pessoa, como ser humano, me abalei. Mas graças a Deus estou tendo força para superar. Para se ideia, se sou tão mau assim, por que no fim de semana usam o primeiro banco da igreja, numa espécie de confronto com minha pessoa?
Como se sente com essa acusação?
Barcelos - Vou ser sincero. Não é nada agradável. Tudo que tentei foi fazer o bem, acolher, e olha tudo o que fizeram com a minha pessoa. É horrível, mas o que me deu forças é a questão divina. O que me dá força é a comunidade. Isso vai passar. A verdade vai ser desvendada. A verdade divina.
Mensagens de religiosos serão usadas como prova
Em mensagens por aplicativo de celular, membros influentes da paróquia demonstram saber do assédio, lamentam as demissões, dão apoio e orientam a ex-governanta a denunciar o caso. Seis meses depois de dispensá-la, também por WhatsApp, o acusado entra em contato com ela por mensagem.
Em uma conversa com a mãe da adolescente, um religioso diz ter pensado que o padre havia parado quando a menina tinha começado a se impor.
Uma paroquiana elogia a mãe pela postura em relação à filha e por continuar indo à missa, além de emitir opinião sobre o padre.
Em diálogo com outro religioso, a ex-governanta recebe mensagens de solidariedade e conselhos.
Na tarde de 4 de agosto, com todos os processos em andamento, padre Barcelos chama a ex-funcionária para “possível acordo”.
Bispo diz que a verdade é apurada
O bispo João Francisco Salm, que assumiu a Diocese de Novo Hamburgo no dia 27 de março deste ano, comenta que não tem informações precisas para falar sobre o caso específico. “O que posso dizer é que tudo o que acontece relativo a leis, tanto da parte civil como canônica, segue o caminho normal com responsabilidade e avaliação. A gente não pode se precipitar. Em qualquer fato, qualquer denúncia, tem que ir atrás. A igreja vai verificando a verdade e tomando decisões.”