*Matéria de: Leandro Domingos, Amanda Krohn e Susi Mello
As marcas da maior catástrofe climática já registrada no Estado ainda são evidentes. A tragédia, que afetou 484 cidades, resultou em 183 mortes e deixou 27 desaparecidos, permanece na memória coletiva, mesmo após oito meses do evento. O impacto é visível em um “esvaziamento” nos bairros mais afetados de Canoas, São Leopoldo e Novo Hamburgo.
Embora metade de Canoas tenha ficado debaixo d’água, nenhum outro bairro registrou tamanha destruição quanto o Mathias Velho. Isso porque o violento rompimento do dique fez com que a força da água arrastasse casas, carros e vidas.
O impacto perdura não somente pela destruição observada em casas, que continuam destruídas, e carros, que seguem abandonados na via pública. Há também a ausência de uma parcela da população que reluta em retomar moradias por medo de novas cheias.
Isadora Cunha, 54 anos, após relutar muito, regressou no início de dezembro para a casa de dois pisos onde viveu nos últimos 14 anos. Ainda não conseguiu se recuperar e o receio com novas chuvas perdura devido à proximidade da residência com o dique e o Rio dos Sinos.
“Fiquei durante muito tempo na casa da minha irmã, mas sabia que teria que voltar um dia”, desabafa a manicure. “Fui resgatada, durante a noite, só com a roupa do corpo, quando a água chegou no segundo piso da minha casa. Isso não se esquece. Se pudesse, não teria voltado nunca mais.”
Também moradora que regressou recentemente ao Mathias Velho, Analice Silveira, 44 anos, reclama que até mesmo a estrutura do bairro desmoronou, com mercados, farmácias e prédios públicos abandonados. “Não há nem estímulo para quem quiser voltar, porque o mercadinho e a farmácia que tinha a duas quadras aqui de casa continuam abandonados”, aponta. “Além disso, os bombeiros e a Brigada Militar sumiram. Até o Banrisul, agora, se eu quiser, preciso atravessar a BR-116, porque fechou a agência.”
Negócios comprometidos
Estudo desenvolvido pela Escola de Gestão e Negócios da Unisinos apontou, ainda no ano passado, que Canoas havia sido a cidade mais afetada economicamente pelas enchentes no Estado, com a perda de R$ 408,6 milhões um mês após a tragédia.
Mesmo sem números oficiais, sabe-se que o prejuízo continua. Passados oito meses, somente em uma quadra na entrada da movimentada Avenida Rio Grande do Sul, principal via do bairro Mathias Velho, é possível notar sete estabelecimentos que fecharam em maio do ano passado para não mais abrir. O encerramento de lojas e comércios pontua a queda da economia local, apontam moradores.
O microempresário João Guimarães Menezes, 37 anos, começou, na última quarta-feira, a limpar um supermercado que desde as cheias permanecia trancado no bairro. Não havia estrutura, ele explica, para retomar o trabalho antes devido à falta de condições. “Acredito que vá levar uns quatro ou cinco anos para o Mathias Velho voltar ao normal”, opina. “O que aconteceu é muito recente e, como a maioria perdeu tudo, ninguém quer passar por isso de novo. Perderam ricos e pobres.”
“Quem conseguiu sair não quer mais voltar”
Proprietária de um pequeno armazém no bairro, Marizete Dornelles, 58 anos, contabiliza, pelo menos, 30 moradores que não regressaram após o período das cheias. Explica que o movimento no estabelecimento não é mais suficiente para garantir as portas abertas.
“A gente nota que quem conseguiu sair, não quer mais voltar”, lamenta. “Se meu marido não conseguisse trabalho, a gente já tinha fechado, porque não tem mais movimento. Povo que vinha e comprava foi embora e não quer mais saber. Tem medo que a água volte.”
Já a empresária Kelli Govelinski, 34 anos, tem uma loja de móveis na avenida. Lembra que após uma retomada em que a maioria da população que retornava para casa buscava mobiliário, o dinheiro desapareceu e a arrecadação nunca mais foi a mesma. “Está muito difícil”, diz. “Houve um salto quando as pessoas começaram a voltar, mas depois parece que o dinheiro sumiu. O movimento é muito pequeno porque muita gente não voltou. A gente tinha esperança que o tempo seco iria estimular o retorno, mas até agora isso não aconteceu”, lamenta Kelli.
Até o supermercado foi embora do bairro Vicentina
Em São Leopoldo, a dona de casa Eva Regina Rodrigues de Rodrigues Blanc, de 69 anos, mora no bairro Vicentina e não se depara apenas com a saudade de amigos de longa data, mas também com uma mudança em sua rotina.
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O supermercado onde antes fazia as compras do mês fechou devido à enchente e, com isso, o caminho que antes era de no máximo, duas quadras, aumentou. “Eu caminho mais de dez quadras para ir até lá, ainda bem que eles entregam o rancho em casa”, comenta.
Eva, que também foi atingida pela enchente e mora ali há mais de 30 anos. “Que eu saiba, umas cinco pessoas se mudaram na minha rua”, diz. “Na época (da enchente), fiquei bem nervosa, bem apavorada. Só aparecia a pontinha da casa ali em cima”, continua.
Também no bairro Vicentina, a auxiliar de cozinha Cláudia Maria Alves dos Santos, de 53 anos, mora logo atrás do dique que sofreu o rompimento em São Leopoldo. Sua casa, que também funciona como a cozinha comunitária Barriguinha Cheia, foi completamente atingida, assim como a da vizinha que mora logo ao lado.
Cláudia conseguiu reparar os estragos e voltar ao lar, mas a vizinha, Noemi, carinhosamente chamada de “Mimi”, não. “Ela saiu na época da enchente e acabou não voltando mais. Não tinha como entrar ali, nem para limpar. Agora tem só o cachorro ali, que o filho dela vem pra cuidar e também cuidar da residência”, conta. “Mas para ela vir é muito difícil, porque ela tá sempre doente. Eu conheço ela desde que eu vim para cá, em 2005. Se tu andar na vila, vê que tem muitas casas caídas, muitas pessoas que não conseguiram vir e não conseguiram arrumar suas casas”, lamenta.
O presidente da Associação de Moradores do Bairro Vicentina (Ambavi), Uilson Andrei Santos da Silva, também sente a diferença. “Muitos moradores antigos foram embora, alugaram, e alguns estão vendendo bem mais barato. É muito triste ver isso porque sou criado aqui, nasci aqui”, desabafa. “É triste ver as pessoas de idade, principalmente as que têm história no bairro, participaram da associação, e ficaram preocupadas, com medo de acontecer de novo… O pensamento deles é só esse”, lamenta o líder comunitário.
“Fuga” de vizinhos em bairros de Novo Hamburgo
Durante uma visita aos bairros mais atingidos de Novo Hamburgo, como Santo Afonso e Canudos, é possível notar que muitos moradores ainda não retornaram. Marcas de barro em muros, madeiras espalhadas pelos pátios e paredes destruídas são comuns em casas que parecem abandonadas.
Esse cenário resulta da migração de moradores para outras áreas ou cidades, na busca por reconstruir suas vidas após as perdas causadas pela enchente. Aqueles que permaneceram enfrentam a difícil tarefa de recomeçar.
No beco São Valério, no bairro Santo Afonso, das 40 casas que se aglomeram, cerca de 20 estão desocupadas. Fabiane Caetano, dona de casa e moradora da região, relata a situação: “A dona Sela, o David lá atrás, a Denise, o Livino e o tio Kiba, que precisa de oxigênio e não pôde ficar aqui porque a casa dele caiu. E tem também a ‘Preta’, a Andressa, a Ketlyn; todas estão de aluguel”, aponta, indicando os locais onde as casas permanecem fechadas devido às condições precárias.
Fabiane é vizinha de dona Beia, como é conhecida a aposentada Juvelina Nascimento Fraga, que organizou uma festa de Natal para distribuir presentes às crianças da Rua Planalto. A “fuga” de moradores do bairro afetou até a proporção do evento beneficente. Em dezembro, foram distribuídos cerca de 140 presentes, enquanto em anos anteriores o número ultrapassava 200. “Até minha filha teve que se mudar”, diz dona Beia.
No bairro Canudos, na Rua San Martin, Ivanir da Aparecida de Carvalho, 62 anos, reside há mais de 40 anos no mesmo local. Após ser abrigada em três lugares diferentes, ela retornou para casa, mas muitos de seus vizinhos ainda não voltaram. “Quem não voltou foi a Ruth, a Leila e um casal que estava começando a construir. Meu filho e minha nora também não voltaram por conta das condições da casa”, explica.
“Antes, havia movimento. Agora, parece uma cidade abandonada”
A dona de casa Loreide Coelho, 61 anos, mora na esquina das ruas Ícaro e Presidente Roosevelt há 20 anos, no bairro Canudos. Agora, decidiu colocar sua casa à venda. O motivo? A enchente deixou marcas de barro nas paredes, nos muros e na grade, além de ter destruído seus móveis. “Antes, havia movimento, crianças brincando na pracinha e pessoas tomando chimarrão. Agora, parece uma cidade abandonada”, lamenta, observando que outros vizinhos também estão vendendo suas casas.
A decisão da família de vender não se deve apenas à catástrofe climática de maio de 2024, mas também ao temor do futuro. “Isso aqui é uma situação que não vai parar. Todo inverno é a mesma coisa. A água vem de outros lugares e a gente acaba perdendo tudo de novo. É horrível”, confessa.
Vínculos comunitários quebrados no pós-cheia
Professora de mestrado do curso de Psicologia da Universidade Feevale, a socióloga Sueli Cabral, que vivenciou a realidade de milhares de gaúchos ao ter sua casa submersa por 30 dias, faz uma análise da situação. “A enchente de maio quebrou vínculos comunitários. Não porque as pessoas quisessem, mas pela insegurança e pela sujeira que se acumularam, levando ao afastamento. O pertencimento comunitário ficou fragilizado.”
Sueli ressalta que reconstruir uma casa não é o suficiente. “Os territórios têm história. Há vínculos afetivos com o quintal, com a casa, com o bar do bairro, com as pessoas que conhecem sua vida. A enchente afetou ricos e pobres, mas os mais atingidos foram os pobres, onde o vínculo comunitário é mais forte.”
Ela enfatiza que a frase “vão-se os anéis e ficam os dedos” não se aplica a quem perdeu sua casa. “A casa é muito mais do que uma estrutura. É repleta de recordações e conquistas. Para um brasileiro, ter uma casa própria é um símbolo de vitória e realização, com um significado cultural e social profundo.”
A dor do luto, embora intensa, pode ser amenizada com o tempo, mas jamais será esquecida. “Se não esquecemos a enchente do começo do século, essa será lembrada com ainda mais força, pois foi muito mais grave. E corremos o risco de que isso aconteça novamente”, alerta, enfatizando a necessidade de ações efetivas do poder público para evitar novas tragédias.