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História

O caingangue e os Versteg: uma história que sobrevive há 150 anos no Vale do Caí

Os personagens deste conflito são o nativo batizado como Luís Antônio da Silva Lima , que ficou conhecido pelo apelido pejorativo de Luís Bugre, e a família de Lamperto Versteg, que na realidade era colonizador holandês

Débora Ertel
Publicado em: 17/09/2017 às 19h:46 Última atualização: 21/06/2024 às 13h:35
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Há anos uma história povoa o imaginário de quem vive no Vale do Caí, principalmente nos municípios que ficam mais ao norte desta região. Reza a lenda, que não é tão lenda assim, que um índio caingangue foi o líder de um levante contra os imigrantes alemães. O fato aconteceu em janeiro de 1868, na localidade de Forromeco, na época interior de São Vendelino, hoje Carlos Barbosa. Fazia 44 anos que os europeus haviam chegado ao Rio Grande do Sul e muitas picadas ainda eram abertas em locais onde até então somente os índios tinham pisado. Se de um lado os europeus queriam construir um novo lar, do outro, os donos da terra eram surpreendidos pela ocupação do homem branco.

Os personagens deste conflito são o nativo batizado como Luís Antônio da Silva Lima , que ficou conhecido pelo apelido pejorativo de Luís Bugre, e a família de Lamperto Versteg, que na realidade era colonizador holandês. Contam as línguas que Bugre e Lamperto tiveram um estranhamento e, como vingança, o índio teria comandado a destruição da propriedade de seu oponente e sequestro de sua família a esposa, Catharina Bein, e os filhos Lucila e Jacó. O paradeiro da esposa de Lamperto nunca foi descoberto depois que teria sido morta de maneira cruel pelos índios. O mesmo aconteceu com Lucila, que foi retirada do convívio dos índios depois de uma tentativa de fuga. Já Jacó, após dois anos de cárcere, conseguiu fugir e reencontrar o pai na Real Feitoria, em São Leopoldo.

Passaram-se quase 150 anos e apesar disso, não é preciso andar muito por cidades como Feliz, Bom Princípio e São Sebastião do Caí para ouvir alguém dizer “eu conheço essa história”. Se quem conta um conto aumenta um pouco, a fama de Luís Bugre também foi se transformando com o passar do tempo.

O herdeiro da história







Foto por:
Débora Ertel/GES-Especial

Descrição da foto: Valdomiro Sipp diante do túmulo do bisavô Jacó Versteg

Esse relato ganhou força na década de 40, quando o padre Matias José Gansweidt publicou em 1946, pela editora Selbach, o livro “As vítimas do bugre”. A obra, que diz apresentar uma narrativa real de como os fatos aconteceram, teve como base o depoimento de Jacó Versteg, o menino que conseguiu fugir dos caingangues. No entanto, os próprios descendentes concordam que existem algumas contradições no relato. Uma delas é o nome da esposa de Lamperto, no livro chamada de Valfrida, enquanto que seu nome verdadeiro era Catharina. Em São Vendelino, um dos guardiões desse episódio é o professor de biologia aposentado e apaixonado por história, Valdomiro Sipp, 72 anos. Em suas veias corre o sangue dos Versteg e foi assim que conheceu os detalhes do conflito que deixou marcas profundas em sua família. Sipp é filho de Theobaldo Carlos Sipp e de Hilda Versteg, que por sua vez era filha de Guilherme, um dos 14 filhos que teve Jacó Versteg.

Sipp cresceu ouvindo a história sobre o seu bisavô que ele pessoalmente não conheceu. Em 1995, depois de um encontro da família Versteg, o professor decidiu reeditar a obra de Gansweidt com um adendo de dados que foram levantados junto aos familiares. “A minha única satisfação foi o conhecimento cultural com o fato”, conta. De acordo com ele, uma das motivações para aceitar o desafio foi que toda a região comentava sobre o fato, mas na família o assunto era tocado de vez em quando. “Porque tudo era muito triste”, explica.

Segundo Sipp, o bisavô também sempre foi resistente a contar detalhes sobre o tempo de cativeiro. Mas quando o padre tomou conhecimento da história, passou a insistir que o colono relembrasse a tragedia que mudou sua vida. “Foi em Poço das Antas que os dois sentaram juntos e meu bisavô relatou o que ele passou com os índios”, esclarece. Esse depoimento teria acontecido de 1924 a 1927. Na época, Jacó estava com a sua filha em Linha São João, no interior de Salvador do Sul e o padre trabalhava na comunidade de Poço das Antas. Jacó não chegou a ver o seu martírio eternizado, pois morreu em 15 de janeiro de 1935, aos 80 anos.

Quem era o Bugre?

Luís Bugre, que com certeza deveria ter outro nome no idioma indígena, acabou sendo criado pelo colono de origem portuguesa João Rodrigues da Fonseca na localidade da Piedade em Bom Princípio. Se de um lado os colonos tomavam conta das terras que até então eram somente dos nativos, do outro não eram raros os saques dos índios aos galpões dos imigrantes. Foi no ano de 1843, na colônia de Feliz, que os alemães decidiram investir contra os furtos dos indígenas e montaram uma espécie de armadilha. Alguns dizem que o menino caingangue teria ficado para trás enquanto os adultos fugiam da fúria dos colonos saqueados. Há outros que garantem que o garoto foi raptado. O certo é que Fonseca, que vivia em meio aos germânicos, passou a criar o menino, que vivia parte do tempo dentro da colônia e parte no meio da mata. O índio aprendeu a falar alemão, mas, como relata o livro de Gansweidt, apesar de viver em meio aos brancos mantinha as características de homem criado no meio da floresta.

Dessa maneira, Luís Antônio, relacionava-se tanto com os índios como com os colonos e tinha trânsito livre nas duas etnias. No entanto, como até hoje corre pela boca do povo, o índio ficava enfurecido quando era chamado de Bugre, apelido depreciativo.

O índio para a família Fonseca

No município de Feliz, vive o comerciante Renato Froener, 60 anos, descendente de Fonseca, o homem que criou o índio. Ele conta que cresceu ouvindo as histórias que a mãe aprendeu com sua avó, Ana Rodrigues Fonseca, filha de João Rodrigues da Fonseca. Da boca da própria avó, Froener não escutou os relatos, pois Ana nos últimos anos de vida estava doente. “O Bugre vivia fugindo, era um revoltado. Mas no fundo ele não era ruim, mas um injustiçado”, diz o felizense.

Fonseca teria adotado o caingangue com o objetivo de aculturá-lo, de modo que vivesse como os colonos. No entanto, como recorda Froener das lembranças de infância, Luís Bugre não aceitava essa condição, fugia, juntava-se novamente aos índios e depois de um tempo voltava para a colônia. “Eu cresci escutando essa história da minha mãe porque eu nunca li o livro”, diz, fazendo referência à obra de Gansweidt. Conforme o comerciante, a mãe tinha prazer em contar as peripécias do Bugre. Inclusive, quando a criançada aprontava, sobrava para o índio. “Ela xingava em alemão: vocês parecem o Bugre”, recorda. Assim como ele tem viva em sua memória o fato que fez parte da sua família, muitos moradores ainda hoje comentam sobre o personagem. “É difícil encontrar aqui na região alguém que nunca tenha escutado essa história”, finaliza.

O ataque

Dizem que Lamperto teria ido a Brochier, conhecer a colônia, pois tinha intenção de se mudar para lá. Nesta viagem, teria se estranhado com Luís Antônio e, a partir daí, o índio teria arquitetado o plano que aterrorizou a colônia. Não se sabe ao certo o que o colono disse ao índio, no entanto, foi o combustível para alimentar a vingança.

Como conta o professor Sipp, a partir dos relatos do livro e da herança oral deixada para a família, Lamperto tinha recebido uma carta de antigo amigo, chamado Valentin que morava em São Sebastião do Caí. Ele e Valentin viajaram juntos da Alemanha para o Brasil. “Lamperto estava desconfiado que poderia acontecer alguma coisa, mas mesmo assim fez a viagem”, revela.

Diante da saída do patriarca dos Versteg, o Bugre teria conversado com a família e orientando a colocar panos brancos, como se fosse bandeiras, dependurados pela propriedade, como um símbolo de que brancos e índios estavam em paz. Na realidade, esse era que Luís Bugre tinha combinado com os caingangues para que ele e o bando invadisse as terras, colocasse fogo nas benfeitorias, carneasse os animais e levasse os alemães como reféns.

Hoje não existe nenhum resquício no local do que um dia foi o lar dos Versteg. No lugar hoje há um portão e os restos de alicerce de uma casa que não existe mais. No entanto, o paredão de mata fechada, onde provavelmente os índios se esconderam esperando o sinal de Luís Bugre para atacar, pouco mudou. De um lado o verde da floresta e de outro o Arroio Forromeco.

O cativeiro

Do Forromeco, Catharina, Lucila e Jacó são levados para o Salto Ventoso, que fica em Farroupilha. O local hoje é um parque natural aberto aos visitantes, com uma cascata de 55 metros e uma passarela que dá acesso a parte de trás da cachoeira. Não se sabe ao certo por quantos dias os Versteg ficaram neste lugar. “Lamperto chegou em casa e encontrou tudo em cinzas. Deu a maior revolta. Bateram o sino, soltaram tiro de canhão, eles se reuniram e foram atrás deles, mas não conseguiram encontrar ninguém”, diz Sipp.

O professor aposentado conta que Luís Bugre participou da busca que os colonos fizeram para encontrar a família raptada. “Eles ainda confiavam no índio, só que era ele quem entregava todo mundo”, observa.

Em Salto Ventoso, a mãe teria conseguido fugir com os dois filhos enquanto os índios dormiam. No entanto, eles foram recapturados enquanto descansavam. A história conta que os caingangues então, para evitar novas fugas, teriam queimado os pés dos Versteg. Como Jacó foi conhecendo a mata e os animais, teve oportunidades de fugir, mas não escapou porque não conseguia levar a mãe e a irmã. Na obra de Gansweidt, em várias oportunidades o relato apresenta Luis Bugre visitando o lugar onde os índios viviam com os prisioneiros alemães, mostrando que ele sabia do paradeiro da família Versteg.

Depois que a mãe foi morta e a irmã desapareceu, Jacó viu que não tinha mais nada a perder e decidiu se tornar livre. O jovem foi perseguido pelos índios e só conseguiu escapar do cativeiro porque correu rumo à estância de Adolfo Pacheco, nos Campos de Cima da Serra.

O reencontro com o pai

Em meio aos brancos, Jacó foi acolhido pela família do estancieiro, mas ninguém entendia o que tinha acontecido com o jovem, pois ele só falava alemão e a língua dos índios. Um tropeiro alemão, que levava gado para São Leopoldo e Taquara, chegou para fazer negócio com Pacheco, foi quando finalmente alguém conseguiu se comunicar com o fugitivo dos indígenas. O comprador de gado era Cristóvão Horn, que ficou surpreso ao descobrir que Jacó ainda estava vivo. O jovem recebeu informações sobre o possível paradeiro do pai. “Disseram para ele que havia um homem de sobrenome Versteg trabalhando no cais, em São Leopoldo. Então ele pegou carona e foi procurá-lo”, conta Sipp. Lá, Jacó encontra o pai, já envelhecido e relata todo o seu martírio. Os dois passam a trabalhar juntos no cais e pouco tempo depois, Lamperto falece. Jacó retorna para São Vendelino e se casa com Karoline Weirich. Depois de um tempo fixa moradia em Desvio Blauth, interior de Farroupilha, onde vive até o final de sua vida.

O fim de Luís Bugre

Quando Jacó voltou para São Vendelino, o índio teria saído do local e se estabelecido na região da Serra. Ele atuava como um intermediário entre os indígenas e os imigrantes, a maioria deles, italianos, bem como um prestador de auxílios e serviços. Assim, o Campo dos Bugres, em Caxias do Sul, acabou sendo batizado dessa maneira graças à ajuda de Luís Bugre. Ele teria casado e tido três filhos, dois homens e uma mulher. Sobre o seu fim, a história conta que morreu afogado no Rio das Antas, em Poço das Antas, durante uma caçada. No entanto, até hoje há quem duvide desta versão, pois os índios eram hábeis nadadores.

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