PREVENÇÃO DE ENCHENTES
Novo canal na Lagoa dos Patos? Saiba como especialista avalia alternativa que quer amenizar cheias do Guaíba
Proposta ventilada pelo governo federal precisa de estudos
Última atualização: 10/06/2024 21:55
Ainda em meio ao caos instaurado no Rio Grande do Sul devido às enchentes de maio, o governo federal anunciou a realização de estudos para avaliar a construção de um canal entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico.
Em sua última visita ao Estado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) reforçou a perspectiva de construção de algum tipo de estrutura que permita o extravasamento mais rápido das águas de rios, lagos e lagoas para o oceano.
Eivadas de boas intenções, as propostas são vistas com desconfiança por especialistas, que entendem as medidas como feitas sem o embasamento necessário.
“Essas ideias têm surgido sem nenhuma base técnica, são completamente sem fundamento, digamos, a partir da técnica”, sintetiza o diretor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IPH-UFRGS) e também coordenador do Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres (CEPED-RS/UFRGS), Joel Goldenfum.
Inicialmente, Goldenfum aponta o risco de a abertura de um novo canal ou ampliação do atual na Lagoa dos Patos ter um efeito reverso ao desejado. “Pode causar efeito contrário, porque se a lagoa baixar e o mar subir, ao invés da lagoa mandar água pro mar, o mar pode mandar água para a lagoa. Se tiver um vento sul, ele não vai conseguir funcionar”, explica o especialista.
Outra possibilidade vista com ceticismo pelo especialista é a utilização de bombas de água ao longo da Lagoa dos Patos. “O tamanho dessa lagoa é muito grande, a vazão é enorme. Para se ter uma ideia, foram medidas vazões da ordem de 30 mil metros cúbicos por segundo, são 30 milhões de litros por segundo. Não tem bomba no mundo capaz de bombear essa água.”
Cuidado com dragagens
Também tem ganho força o incentivo às dragagens de rios, o que na avaliação de Goldenfum também precisa ser feito de forma racional. “Simplesmente sair dragando é criminoso de novo. Então vamos, em primeiro lugar, pedir equipamentos para medir o nível do fundo dos rios e dos lagos e lagoas e a partir desse levantamento analisar se existe ou não deposição, quanto que tem depositado, de que maneira se poderia retirar e se essa retirada vai conseguir melhorar o escoamento.”
Goldenfum diz que mesmo vendo com desconfiança as propostas, especialmente a de aumento do canal da Lagoa dos Patos, aceita se debruçar sobre o tema com estudos técnicos mais aprofundados dos que já foram feitos. “Não dá pra fazer uma coisa dessas sem um estudo muito detalhado. Essa é uma ideia que tem surgido de pessoas que não são da área técnica, bem intencionadas, evidentemente, mas elas têm que ouvir os técnicos.”
O próprio IPH já realizou as primeiras simulações a respeito da abertura de um novo canal para a passagem da água que vem dos lagos e lagoas para o mar. Os ensaios mostraram uma efeito pouco animador, com uma mudança mínima na vazão.
Apesar disso, Goldenfum afirma que caso seja solicitado, o Instituto poderá fazer o estudo reduzido, uma etapa na qual se testa a alternativa em uma escala menor. “Um estudo não é simplesmente sair dizendo, 'olha, nós temos a solução, vamos abrir um canal'. Muito provavelmente vai ter efeito muito irrisório. Mas tudo bem, se é esse o desejo, o IPH pode fazer um estudo detalhado”, afirma.
Mais espaço para ouvir cientistas
Em meio ao caos instalado no Rio Grande do Sul ao longo do último mês, autoridades voltaram sua atenção para os estudiosos das universidades, protocolo que nem sempre foi seguido antes da tragédia.
“A universidade é ouvida quando ela tem a oportunidade de se manifestar, mas é que nem sempre nós temos essa oportunidade. Muitas vezes, não chegamos nem a ser consultados, mas é que, na verdade, o sistema era para ser operado pelas autoridades, não era para ser operado pela universidade”, justifica, em partes, Goldenfum.
De acordo com o coordenador do IPH-UFRGS, atualmente as reuniões com prefeitos se tornaram frequentes e as lideranças parecem mais interessadas e atentas ao que os representantes de universidades têm a dizer.
O que é possível fazer
Para o futuro, Goldenfum aponta que a redução do impacto de novas enchentes passa por diferentes medidas de acordo com cada local. “Temos problemas bem diferenciados. Quando a gente passa para a parte mais alta da bacia, temos que repensar o uso do solo. Infelizmente, parte da população vai ter que ser deslocada para áreas seguras para evitar que isso aconteça.”
Já, ao avaliar o caso da região Metropolitana, as ações apontadas são um pouco diferentes. “Tem que recuperar o sistema [de diques] para que ele possa funcionar adequadamente e tem que também se reavaliar o sistema, porque ele foi projetado a partir de um histórico que tinha corrido no passado. A frequência no passado representa a probabilidade no futuro. Acontece que os eventos estão se tornando, devido a mudanças climáticas, cada vez mais intensos e cada vez mais frequentes. Isso implica que nós temos que rever, por exemplo, cotas [de inundação]”.
Esse processo passa por repensar a ocupação das cidades, que cada vez mais precisarão entender a necessidade de ter áreas capazes de serem alagadas sem causar grandes estragos físicos e humanos.
Goldenfum lembra o caso de Lajeado, com o Parque dos Diques ou a Orla do Guaíba, em Porto Alegre. Áreas de menor ocupação humana e comercial, nas quais é possível prever uma enchente, mas evitar a perda de vidas e tragédias semelhantes ao que foi visto nos últimos meses no Rio Grande do Sul.