COMIDAS TÍPICAS
Mulheres da comunidade Kaingang de Canela compartilham receitas e ensinamentos ancestrais em livro
Versão digital pode ser acessada gratuitamente e tem intuito de preservar cultura indígena
Última atualização: 19/07/2024 18:00
Conhecimento, sabores e cultura. O resgate de memórias milenares da comunidade indígena Kaingang agora está presente em um livro digital gratuito. É com o que se encontrava pelas florestas que os povos originários se alimentavam e se curavam.
Com o objetivo de preservar essa história, surgiu o “TI SI FAG VÃJÃN - Comida dos Ancestrais Kaingang”, criado por mulheres da aldeia Kógunh Mág, de Canela. As receitas típicas são passadas de geração em geração. Com o calor do fogo, raízes, plantas, grãos e brotos vão se transformando, exalando aromas e garantindo nutrientes para o corpo.
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Quem auxiliou na produção foi Viviane JagFej Farias, de 29 anos. “A gente queria ter isso documentado e também passar para os não-índios, para quem quiser saber mais sobre a nossa cultura”, comenta.
Mas está cada vez mais difícil manter a tradição. Viviane destaca que não encontram os ingredientes com facilidade, principalmente nesta época de frio intenso. “Minha mãe que diz que quando ela fazia a própria comida com o que catava na mata não ficava indo para o hospital. Agora que a gente come comida dos não-índios, vivemos no hospital”, frisa.
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Fuá e pão na cinza
Quando a comunidade faz o trajeto entre a Floresta Nacional (Flona) de Canela, local em que mora, e a área central, fica sempre de olho no que acha pelo caminho. É na beira da mata que colhem o fuá, chamado de maria-pretinha. “É um alimento e um remédio para catarata”, explica Viviane. “Todos os alimentos que a gente colhe da natureza, eles têm um benefício”, complementa.
Outro prato muito comum é o pão na cinza. Ele pode ser consumido a qualquer hora do dia e serve de acompanhamento para carnes, feijão, pinhão. A receita consiste na mistura de farinha de trigo, sal e água morna. Depois de mexer até soltar das mãos, a massa é colocada no meio das cinzas até que fique consistente. “Quando a gente encosta e não afunda mais, está pronto”, frisa Viviane.
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Construção comunitária foi possível por edital
No livro (clique aqui para acessar) há nove receitas em português, que foram preparadas também por Alexsandra Tomais, Cristiane Silva, Estefani Kóvag Tyg Lopes, Marlene Jóg Gr Salvador, Juliana Vn Fej Lopes e Jeseia Povej Feliciano.
A diretora da escola indígena JagTyg Fykog, Jucemari da Silva Corrêa e a merendeira Zoraide Kofei Pinto ficaram responsáveis pela escrita e tradução. As imagens que ilustram o material são da fotógrafa kaingang Marcielly Fuá Salvador, de 12 anos, filha de Viviane. O lançamento oficial do material ocorreu na tarde do domingo, dia 14, na Flona.
O livro e diversos outros projetos culturais da aldeia Kógunh Mág podem ser conferidos gratuitamente no Instagram @kaingangcanela. O projeto foi financiado pelo edital Tem Cultura em Canela, com aporte de R$ 4.250. O valor foi utilizado para compra de insumos e dividido entre as mulheres.
Foram, ao todo, seis meses para a conclusão do livro e quem finalizou o material foi a produtora cultural Amallia Brandolff. Ela conta que a ideia de auxiliar na construção do projeto surgiu quando estava planejando um curta-metragem com as mulheres da aldeia. Além disso, novas edições do livro podem surgir a longo do tempo.
“A gente não está aqui para ser o inimigo de ninguém"
Viviane e a família moram na Flona há quatro anos. Nascida próximo da divisa entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, ressalta que decidiu se mudar para a região para que os filhos vivessem na cultura tradicional Kaingang. Ela é casada com Márcio Kakupry Salvador, de 36 anos. O casal tem dois filhos, Marcielly e o pequeno Lian, de apenas 1 ano.
Na comunidade, há escola e posto de saúde indígenas. Entre eles, somente a língua originária é falada. O intuito é que vivam, na medida do possível, como os antepassados. Para eles, é imprescindível manter os costumes. A principal renda da comunidade é a venda de artesanato. E fazem questão de comercializar somente o que produzem.
Atualmente, vendem os produtos junto à Praça João Corrêa e na Feirinha de Canela. O grupo não está presente nas vendas próximo da Catedral de Pedra e é a única comunidade que aceitou o projeto da Prefeitura de criar um espaço específico para o comércio indígena. “A gente não está aqui para ser o inimigo de ninguém. A gente só quer mostrar o que a gente sabe”, salienta Vivi.
Para o futuro, quer que os filhos tenham curso superior. “Eu queria ter ido para a faculdade, mas tinha medo do que as pessoas iam falar”, lamenta. Marcielly sonha em ser médica.