EDUCAÇÃO EM PAUTA

Metade dos municípios gaúchos com melhores índices de alfabetização estão na região; saiba quais

Forte presença de imigração alemã e italiana auxilia no resultado, aponta sociólogo

Publicado em: 28/06/2024 19:55
Última atualização: 03/09/2024 14:41

Um dos grandes desafios da educação brasileira ao longo da história foi ampliar o número de pessoas alfabetizadas. Por conta das severas desigualdades sociais e regionais de acesso, o déficit educacional sempre se mostrou um entrave para o desenvolvimento do País, que chegou a ter uma taxa de analfabetismo entre pessoas de 15 anos igual ou superior a 50% até a década de 1950. As últimas décadas, contudo, se mostraram muito efetivas no letramento da população.


Cidades como Dois Irmãos se destacam no estado pelo seu alto índice de alfabetização Foto: Giordanda Valejjos/GES-Especial

Dados levantados pelo Censo em 2022, mostram que a taxa de analfabetismo nessa faixa da população chegou a 7%, o menor da história, mantendo a tendência de queda acentuada vista a partir da década de 1980, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).

“O Brasil saiu de uma educação de poucos para uma educação de massa. Passamos de uma educação elitizada para atender mais pessoas”, aponta o sociólogo e professor da Universidade Feevale Everton Rodrigo Santos. O passo de inserir mais pessoas na escola foi superado, trazendo agora a necessidade de qualificar a educação para uma massa maior de pessoas.

Melhores resultados

Historicamente, as regiões Sul e Sudeste concentram os estados com os melhores índices de alfabetização, o que se confirmou no último Censo. Santa Catarina é o estado da região com o melhor resultado, tendo uma taxa de analfabetismo de apenas 2,7%. Na sequência vem Distrito Federal (2,8%), São Paulo e Rio Grande do Sul, empatados com 3,1%.


Cidades como Dois Irmãos se destacam no estado pelo seu alto índice de alfabetização Foto: Giordanda Valejjos/GES-Especial

Entre os 20 municípios do País com melhor resultado, 11 são gaúchos. E dentro do território gaúcho, seis das 12 cidades com maiores índices de alfabetização estão nos vales do Caí e Sinos, além da região serrana do Estado. São eles: Bom Princípio, que tem uma taxa de alfabetização de 98,7%, seguido por Feliz, Dois Irmãos, Nova Petrópolis, Harmonia e Picada Café, todos com um índice de alfabetização de 98,6%.

Além das cidades da região, os outros municípios que se destacam possuem uma característica em comum: a forte presença de imigração alemã e italiana. “São duas culturas que têm uma forte cultura calcada na educação, e esse é um fator importante”, pontua Santos.

Junto da questão cultural e religiosa, já que ambos os povos possuem como base de doutrina a leitura da bíblia, o alijamento de outras populações do acesso aos bancos escolares também ajuda a explicar, historicamente, este resultado mais positivo.

“Historicamente, pessoas brancas são mais alfabetizadas que pretas (e indígenas)”, sintetiza o professor, ao lembrar que o acesso de pessoas pretas e pardas ao ensino formal chegou a ser vetado ao longo da história.

Mesmo assim, o Brasil consegue olhar para si de uma forma mais positiva quando o tema é acesso. A desigualdade entre pretos e pardos alfabetizados em relação aos brancos vem caindo a cada ano. “Isso pode ser explicado por políticas inclusivas que tivemos nas últimas décadas no País, claro que tem um parêntese ao último governo, Bolsonaro não é um governo inclusivo, mas de qualquer forma por uma inércia de um conjunto políticas que já tinham se tornado quase que políticas de Estado, acabou carregando a inclusão dessas populações que vinham sendo marginalizadas”, avalia Santos.

A imigração trouxe também, de acordo com Santos, um maior capital social para as regiões de imigrantes. Isso significa que as pessoas confiam mais umas nas outras em todas as suas relações. Dessa maneira, com o passar dos anos as relações comunitárias se estreitam e facilitam a criação de instituições, como as de ensino. “Diferente do capital financeiro, o social, quanto mais ele é usado, mais se tem”, explica.

Começando antes

Mas além da chaga brasileira de exclusão, outro ponto, desta vez positivo, conta a favor da região Sul, já que muito antes de outras regiões do País, os três estados conseguiram alcançar melhores resultados de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), o que impactou diretamente na alfabetização.

Com melhores índices históricos de IDH, as cidades da região conseguiram de forma mais rápida dar atenção para o acesso e a qualificação da educação. É o caso de Dois Irmãos, que está entre as cidades do Estado com o melhor resultado. Como a responsabilidade pela educação inicial fica mais concentrada nas mãos do governo municipal, foi possível investir e seguir investindo na melhoria estrutural das escolas e dos professores.

“Anualmente, temos passado por formação”, conta Melissa Knüppe, vice-diretora na Escola Municipal de Ensino Fundamental Primavera, que trabalha na cidade desde 2005. A participação ativa da família no dia a dia das escolas também é visto como um diferencial preponderante para os bons resultados.

“Aqui a comunidade escolar não é apenas de estudantes, é com os pais, avós, que participam, nos cobram também, porque onde não tem cobrança as coisas não funcionam”, conta a diretora da escola, Estefânia da Silva Goulart. Esta participação comunitária é um dos incentivos para a diretora e a vice fazerem há mais de 20 anos o trajeto diário entre Novo Hamburgo, onde moram, e Dois Irmãos, onde está sediada a escola.

Responsabilidade dividida

Quando a Constituição de 1988 foi promulgada, ficou definido que a responsabilidade pela educação brasileira seria dividida entre todos os entes federativos, cabendo uma responsabilidade diferente para cada um deles. De forma genérica, os governos municipais seriam os responsáveis pelos primeiros anos de ensino, enquanto os estados gerem o ensino médio e a União cuida do ensino superior.


Cidades como Dois Irmãos se destacam no estado pelo seu alto índice de alfabetização Foto: Giordanda Valejjos/GES-Especial

Entretanto, a divisão não é tão cartesiana assim, já que todos precisam estar envolvidos de alguma forma na etapa inicial. A divisão tripartite não significa que uma gestão não influencie e interfira no outro.

“Nós participamos do Alfabetiza Tchê que é uma política estadual, que o município recebe material pedagógico, recursos, professores são pagos para serem articuladores para acompanhar o trabalho no município”, exemplifica Melissa, que ainda lembra a participação nas ações do Compromisso Nacional da Criança Alfabetizada gerido pelo Ministério da Educação (MEC).

Soares lembra que essa integração, por menor que seja, é importante para alavancar o desenvolvimento do País como um todo. A partir de um ensino fundamental bem feito, o País poderá impulsionar os estudantes para o ensino superior e a dedicação à pesquisa. Para que essa qualificação seja melhorada e rápido, uma coisa fundamental é dinheiro.

Novos desafios

A experiência de duas décadas como professora mostra que as mudanças tecnológicas do mundo são como uma faca de dois gumes na avaliação de Estefânia. “A tecnologia pós-pandemia, dentro do ambiente escolar é uma ferramenta que nos auxilia, fora daqui a gente sabe que tem essa super exposição a telas, que é algo que nos atrapalha na atenção deles”, relata a diretora.

Soma-se a essa dificuldade maior de captar a atenção dos alunos o bombardeio de informações recebidos diariamente, também uma consequência direta da super exposição a telas. Nesse cenário, os estudantes se tornaram mais questionadores, com mais informações que nem sempre são as mais confiáveis.

Dessa forma, a escola e os professores assumem também um papel de mediação e interlocução do que acontece fora da sala de aula com os conteúdos formais que precisam ser ensinados. “Ele (aluno) te questiona mais, eles têm muitas informações e é aqui na sala de aula que a gente ajuda a organizar essas informações. O professor tem que ser cada vez mais criativo”, relata Estefânia. A diretora resume em uma frase a ligação que o estudo formal precisa ter com a realidade dos estudantes. “Se aquilo (conteúdo) não vai significar alguma coisa, ele não vai ficar.”

Outro dilema que deve se apresentar nos próximos anos é a defasagem gaúcha devido às enchentes de maio. “Em função da hecatombe climática que vivemos, teremos um impacto certamente com a destruição de escolas, empresas e empregos”, projeta Santos.

Professores em contínuo processo de aperfeiçoamento e reconstrução das estruturas de um estado arrasado pela crise climática apenas dois anos depois de o mundo viver a pandemia que obrigou os alunos a ficarem em casa se mostram como os grandes enfrentamentos que precisarão ser feitos no Rio Grande do Sul. Para isso, o investimento do poder público será mais do que necessário para garantir a continuidade dos bons índices de alfabetização.

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