Ataque a tiros

LEI DO ARMAMENTO: Critérios de quem pode ou não ter uma arma protegem a sociedade?

Ministro da Justiça e da Segurança Pública diz que vai rever registros de armas para CAC e governador cobra informações médicas abertas

Publicado em: 24/10/2024 19:11
Última atualização: 24/10/2024 19:11

A tragédia que aconteceu nesta semana em Novo Hamburgo, quando um atirador promoveu 9 horas de terror e matou cinco pessoas, baleando outras oito, acendeu o sinal de alerta sobre a lei que regulamenta o acesso às armas no Brasil.

Tanto que o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, declarou que a partir de 1º de janeiro de 2025 será realizada uma triagem rigorosa em todos os de registros de armas para Colecionadores, Atiradores Despostivos e Caçadores (CACs). Foi por meio do registro de CAC que Edson Crippa, 45 anos, conseguiu ter quatro armas em casa e adquirir farta munição para o ataque que resultou no maior tiroteio da história da cidade.


Casa no bairro Ouro Branco, em Novo Hamburgo, foi atingida pelos disparos Foto: Igor Müller/GES-Especial

A concessão de certificado de registro para registro de pessoa física como CAC é emitida pelo Exército Brasileiro. Quem pediu o registro entre 2019 e 2023 ganhou autorização para usar o armamento por dez anos, sem revisão de documentação durante este período.

Ocorre que Crippa, como informou a Polícia, teve quatro internações psiquiátricas e tinha histórico de esquizofrenia. E, mesmo assim, tinha atestado médico e autorização para ter armamento. Quando a Polícia teve acesso à casa, encontrou com Crippa duas pistolas, uma de 9 milímetros e outra .380, além de duas carabinas e mais de 300 munições intactas.

O governador Eduardo Leite, durante o velório do soldado Everton Raniere Kirsch Junior, 31, uma das vítimas do atirador, foi taxativo ao dizer que “não pode ser aceito” um homem com problemas psiquiátricos ter registro de armas e acesso à munição.

O Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS) afirmou que abriu um procedimento para verificar o processo de avaliação psicológica para concessão do registro e porte de arma de fogo de Crippa, atitude tomada após recomendação da Polícia Federal (PF).

Faltam critérios claros de avaliação

Para o doutor em Ciências Criminais e professor de Direito da Feevale Daniel Kessler de Oliveira, a sociedade precisa discutir sobre a ausência de critérios claros para realizar a análise que permite ou não o acesso à arma de fogo.

“Por que se justificaria uma pessoa ter quatro, cinco, seis, sete, oito armas? São coisas que a gente tem que debater. Se a pessoa quer ter o seu direito de ter uma arma para se defender em casa, ela precisa ter cinco tipos de arma?”, questiona. “São episódios dessa gravidade que podem levar a sociedade a refletir sobre esse acesso à arma de fogo”, avalia.

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Atirador tinha farta munição à disposição Foto: Igor Müller/GES-Especial

Conforme Oliveira, falta comunicação entre os órgãos oficiais na troca de informações sobre as condições atuais das pessoas que têm armas. “Eu vejo, inclusive, caso de pessoas que começam a responder processos criminais e não perdem o seu registro”, comenta.

O governador defendeu, em razão da proteção da sociedade, o fim do sigilo médico quando há problemas psicológicos. Leite também ressaltou a importância do histórico de informações médicas ser cruzado com dados da Justiça quando há solicitação de registro de armas.

O que o governo promete

Em entrevista à imprensa, Lewandowski* declarou que o Ministério da Justiça e da Segurança Pública vai reexaminar a emissão de registros e fiscalização para controle de armas para CACs. A ação será realizada a partir de 2025, quando a PF passará a ser responsável pelos Cacs, atividade atualmente feita pelo Exército.

A PF vai controlar o registro de pessoas físicas e jurídicas; autorização de compra e venda de armas; concessão de guias de tráfego; fiscalização das atividades; e fiscalização e controle do comércio para pessoa física.

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“Vamos reexaminar, reavaliar a situação de cada um dos CACs e vamos fazer uma triagem rigorosa para saber se a pessoa que se diz filiada a esses CACs tem antecedentes, se tem condições psicológicas e técnicas para portar uma arma”, garantiu o ministro.

Para Lewandowski, a tragédia hamburguense é o resultado “da proliferação indiscriminada de armas de fogo no País”. A reportagem procurou o Ministério da Justiça para saber mais detalhes sobre a triagem prevista, mas não recebeu retorno.

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Governador Eduardo Leite falou durante velório de PM morto em Novo Hamburgo Foto: Isaías Rheinheimer/GES-Especial

Já Eduardo Leite informa que determinou investimentos em novos sistemas informatizados para cruzar dados de órgãos diferentes, de modo a gerar alertas para as equipes de segurança que estão em atendimento de ocorrência. "De outro lado, vamos pedir que sejam analisadas providências no âmbito legislativo", disse, fazendo referência aos laudos que atestam saúde mental de portadores de armas.

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Mudanças na lei impactam nos registros

O Instituto Sou da Paz, organização sem fins lucrativos com 25 anos de atuação pela redução da violência no Brasil e pela preservação de vidas, explica as mudanças na legislação ocorridas a partir da posse de Jair Bolsonaro.

Até 2019, o proprietário da arma era obrigado a comprovar requisitos (idoneidade, ocupação lícita, residência certa e teste psicológico) a cada cinco anos para poder renovar o seu certificado de registro.

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No governo Bolsonaro, esse prazo aumentou para dez anos. A mudança teve impacto direto na quantidade de armas no Brasil. Em 2018, havia 350 mil armas registradas em nome de CACs. O volume passou para 1 milhão em julho de 2022, segundo dados do Sou da Paz.

Desde julho de 2023, um decreto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva estabeleceu novos prazos. São cinco anos para armas registradas por civis na PF para defesa pessoal, e três anos para armas de CACs. Ou seja, os novos prazos de validade contemplam apenas quem registrou depois da data de publicação do decreto do ano passado. 

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Armas Foto: Agência Brasil


O prazo menor para as categorias dos CACs foi definido pelo motivo de acesso a quantidades maiores e calibres mais potentes de armas e munições.

De acordo com a lei, se o proprietário da arma não renovar o seu registro no prazo estabelecido, após ser notificado é instaurado procedimento para cassar o certificado de registro da arma (CRAF), com determinação de apreensão do armamento.

Caso o proprietário não se manifeste após a notificação, não poderá comprar novas armas ou munições e obter ou renovar passaporte até regularizar a situação.

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Conselho orienta validade de dois anos para laudo psicológico

Como afirmaram as autoridades policiais, o atirador tinha laudo psicológico comprovando condições de ter armas em casa. O laudo de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo é fornecido por psicólogo credenciado pela Polícia Federal.

Conforme resolução de 2022 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), a avaliação psicológica é um fator primordial para se “evitar que pessoas que não reúnem as características psíquicas e cognitivas tenham acesso à arma de fogo”, um instrumento que pode ser letal à vida.

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No entanto, o documento do CFP orienta que o laudo não ultrapasse a validade de dois anos. A orientação do Conselho não foi levada em conta pelo governo Bolsonaro, que estendeu o prazo para dez anos, e nem por Lula, que no caso dos CACs estipulou limite de três anos.

A renovação a cada dois anos, como destaca a resolução do Conselho, leva em conta as particularidades em cada ciclo da vida adulta, onde “sua organização psíquica sofre mudanças e, ainda que por algum tempo, o funcionamento psíquico permaneça relativamente estável, parece equívoca a ideia de que com as interferências sociais e culturais ao longo do tempo não afetará o funcionamento psíquico de uma pessoa”.

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Sociedade escolheu ser armada

O professor da Feevale lembra que foi realizado um referendo sobre o desarmamento da sociedade em 2005. “A população brasileira foi contra a proibição de comercialização, de aquisição de arma de fogo. Então nunca foi proibido adquirir arma. O que aconteceu foi uma maior restrição”, recorda.

Na eleição de 2018, tendo o armamento da população como uma das bandeiras de campanha, Jair Bolsonaro venceu o pleito com 55% dos votos. “A população escolheu legitimamente e manifestou a sua vontade de querer ter mais acesso às armas”, diz.

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No entanto, a flexibilização a partir de 2019 pôs fim a uma série de critérios mais restritivos. “Não vamos proibir que pessoas tenham armas, tudo bem. Mas quem pode ter arma? Isso é uma coisa que precisa estar extremamente definido, porque uma pessoa despreparada, ela é sempre um risco, sempre uma ameaça”, conclui Oliveira. 

*Com informações de Estadão Conteúdo

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