A votação do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a constitucionalidade da demarcação de terras indígenas, proposta pelo projeto de lei do marco temporal, foi o motivo que levou milhares de índios e apoiadores para as ruas, na quarta-feira, dia 7. Em Canela, cerca de 50 se reuniram na frente da Catedral de Pedra.
O ministro Alexandre de Moraes votou contra o projeto e, logo depois, o ministro André Mendonça pediu vista, o que paralisa o processo por até 90 dias. Na prática, o marco temporal afirma que só terão direito às terras os povos indígenas que ocupavam ou já disputavam essas áreas em 5 de outubro de 1988, ou seja, data da promulgação da Constituição.
Para o cacique da aldeia Kaingang Kógunh Mág, Maurício Salvador, que ocupa a Floresta Nacional (Flona) de Canela, o projeto desconsidera a história dos povos originários no Brasil.
“É como se a história que começou com o descobrimento do Brasil não existisse. Desfaz questões históricas e pontos específicos em locais que realmente existiam terras indígenas. Esse marco não dá a visibilidade e importância histórica do nosso território”, destaca Maurício. “Muitos dos povos abandonaram os territórios não porque quiseram, mas porque foram obrigados. Ficamos inseguros com o que vai acontecer”, aponta.
A aldeia Kaingang luta pelo território da flona, pois, de acordo com ela, o local já foi uma terra indígena. “Nossos antepassados tiveram conflito com os madeireiros da região. Então, muitos desses conflitos tiveram vítimas que foram sepultadas aqui. Nas nossas pesquisas, já encontramos vestígios de sepultamento e também de casas subterrâneas, que é a nossa habitação tradicional, em Gramado, Canela e São Francisco de Paula”, esclarece o cacique.
“A gente quer o que está na Constituição, que é o direito do povo originário e o direito à terra dos povos indígenas”, frisa.
Cerca de 50 pessoas vivem na flona
A comunidade Kaingang está na flona de Canela desde o início de 2019, conforme explica o cacique. Ele afirma que a história para a reivindicação do território iniciou ainda em 1998, com o pai, o já falecido pajé Zílio Salvador. Depois de pesquisas sobre a presença de índios antes mesmo da colonização, foi em 2008 que chegaram em Canela pela primeira vez.
“Mas a gente percebeu que havia muito preconceito na época com a questão indígena. Então, retornamos para uma comunidade em São Leopoldo. Depois, em 2015, a gente voltou para reivindicar o território e fizemos a primeira moradia na flona. Naquela época, foi determinada a reintegração de posse, tivemos que sair e ficamos nas margens da rodovia entre Canela e São Francisco de Paula”, relembra o cacique.
Com a morte do pajé, em 2017, Maurício assumiu o comando da aldeia e retornou para a Serra em meados de 2019. No primeiro momento, montaram barracas na flona, mas depois passaram a ocupar as casas que eram de uso do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) porque, devido ao clima frio e chuvoso, as crianças estavam ficando doentes.
Hoje, são 13 famílias que ocupam o espaço, cerca de 50 pessoas, incluindo idosos e crianças.
Atualmente com 28 anos, Maurício assumiu como cacique aos 23. Ele conta que sentia insegurança, mas percebeu que o pai o preparou durante toda a vida para o momento, que é de luta pela preservação da história dos povos originários do País.
Ervas que não são encontradas em outras localidades
Nos últimos meses, quatro mulheres ficaram grávidas na flona, com isso, conforme o cacique, receberam um tratamento com ervas medicinais para que pudessem sentir menos dor no parto. E a força desses remédios é de extrema importância para a cultura dos povos originários.
“Temos ervas aqui que não são encontradas em outras comunidades, mas elas estão em pouca quantidade por causa do plantio dos pinus e eucaliptos, que não são bons para o solo. As ervas não crescem ao redor, estão na parte mais fechada da floresta. Estamos conservando e fazendo o replantio para suprir a nossa necessidade”, comenta Maurício.
Conforme a crença indígena, há ervas utilizadas em casos de diabetes e até câncer. “Durante a pandemia, nos cuidamos somente com as ervas até a chegada da vacina e ninguém da aldeia ficou doente”, pondera.
Conhecimento de geração para geração
Uma parte importante da cultura é passar os conhecimentos e tradições de geração em geração. Por isso, Maurício tem feito um trabalho de registro. Um documentário e livros foram produzidos pela comunidade.
“Temos um livro infantil, que fala sobre a araucária e a gralha azul, e um do nosso artesanato, que mostra como é a confecção do nosso produto, tanto em taquara quanto em cipó”, adianta.
O cacique também comenta que uma vez por semana fazem comidas típicas para que as crianças tenham acesso à cultura Kaingang.
"Queremos manter uma questão mais turística'
Em um processo conturbado, outro ponto que envolve os índios que vivem em Canela é a concessão da Floresta Nacional do município. Desde 2019, a ideia do Ministério do Meio Ambiente é que a gestão das flonas não seja mais feita pelo ICMBio e sim por uma empresa.
A iniciativa prevê investimentos milionários – incluindo também a flona de São Francisco de Paula. Quem ganhou o processo foi o Consórcio Parque Sul, tendo 30 anos para incrementar e potencializar o turismo nas duas unidades. O grupo tinha expectativa de iniciar a gestão em 2022, mas o processo foi parado, após processos na Justiça.
Com o novo governo federal, os empresários esperam retomar tratativas. Segundo o representante do consórcio, Hélio Jr., apesar de assinado, o contrato foi paralisado para que se encontrem outras terras que possam ser ocupadas pelos indígenas.
Hélio pondera que está tentando agendar um encontro com o novo presidente do ICMBio, Mauro Pires, para saber como poderá seguir o processo. Ainda, diz que quer caminhar junto com os índios, criando algo que possa ser comum entre ambos.
O cacique Maurício, contudo, fala que não foi isso que foi apresentado a ele. “É preciso trabalhar pelo meio ambiente e pela mata. Querem construir um hotel e isso não é bom. Queremos uma questão mais turística, de pesquisa das universidades”, cita. “A gente quer mostrar o verdadeiro conhecimento do povo Kaingang”, completa.
Maurício destaca que a ideia é que seja feito um reflorestamento da flona e que árvores frutíferas sejam plantadas. “Se a gente reflorestar, os animais vão poder se reproduzir, ter alimento e vamos ter uma fauna e flora muito boas”, atesta.
Outra ideia do líder da aldeia é ter um espaço de cultura para que possam realizar os rituais, danças, pinturas. Esse espaço, inclusive, pode ser utilizado para receber turistas, assim como nas casas subterrâneas que ele gostaria de construir.
Até uma escola bilíngue está nos planos para que possam ensinar às crianças a língua materna. E isso é regra na comunidade, entre eles, somente a língua Kaingang pode ser dita.
“Na aldeia, a gente pensa sempre no coletivo. Todos precisam trabalhar, consideramos o outro, respeitamos e não desejamos o mal”, salienta.
Contra a venda de produtos que não são próprios
A comunidade vive do dinheiro que arrecada com a venda dos artesanatos que produzem, de cestas básicas entregues pela Funai e doações. Entretanto, para o cacique, o recurso não é o suficiente.
E aí entra outro impasse, mas, desta vez, entre a comunidade canelense com as de outras cidades. Maurício enfatiza que é totalmente contra a venda de itens que não são produzidos pelos índios, mesmo que isso represente conseguir menos dinheiro com as vendas. Para ele, é uma forma de perder a identidade.
Por isso, não gosta de estar junto com quem não segue os costumes. “A gente quer mostrar a forma verdadeira da arte indígena e tem outras comunidades que não querem mais isso. É complicado”, reforça. De acordo com Maurício, é preciso delimitar o que pode ou não ser vendido pelos índios.
O cacique também reforça que há matéria-prima disponível para a confecção das peças, como balaios, colares, pulseiras. “A gente tira aqui da flona, do Parque Pinheiro Grosso, de áreas perto do Caracol”, conta.
Novos espaços para a comercialização
Em Canela, não há um espaço destinado para a venda de arte indígena. Assim, bancas são montadas no entorno da Catedral de Pedra.
Entidades e associações há tempos se reúnem com o poder público para buscar uma solução. Segundo esses representantes, a concorrência é desleal, pois os índios estão vendendo produtos industrializados, assim como os comerciantes que precisam arcar com impostos e outros custos. A reportagem esteve no local, na manhã da terça-feira, dia 6. Em nenhum dos espaços havia produtos de características indígena.
Dessa forma, a Prefeitura quer elaborar um projeto para construir um espaço específico para que os índios façam as vendas, na área central, mas não junto à igreja. Até o momento, o local não foi aprovado pelas comunidades, que incluem não somente a que vive em Canela.
“A administração municipal deve elaborar um plano de ação e buscar alternativas para solucionar esta questão. Novas reuniões serão realizadas com o Ministério Público Federal, com a Funai e com a Receita Federal com o objetivo de firmar um acordo entre as partes envolvidas”, atesta a Prefeitura por nota.
Como é em Gramado
Já em Gramado, desde 2016, existe um espaço, junto ao Lago Negro, que é próprio para a venda do artesanato indígena. Cinco comunidades ocupam a área, nenhuma da região. Aldeias de Farroupilha, Iraí e Lomba do Pinheiro, por exemplo, estão na localidade. Mesmo assim, conforme a Secretaria da Cultura, ainda há venda fora do espaço destinado. “Quando a gestão assumiu, em 2021, indígenas estavam em espaços como a Praça das Etnias, vendendo o artesanato. A maioria era da aldeia de Canela. Então, começamos a construção de um acordo nesse sentido, já que eles não tinham um espaço dedicado”, frisa Ricardo.
Ainda em 2021, chegou-se na conclusão provisória de que mais duas casinhas seriam construídas. Elas seriam divididas em quatro pontos. A execução somente ocorrerá quando todos os indígenas assinarem e aceitarem uma comunidade a mais. No acordo também consta que eles não poderiam comercializar fora destes pontos.
“Contudo, em novembro de 2021, um cacique de Bento Gonçalves entrou em contato e disse que queria estar junto nas casinhas. Ele entrou com ação no Ministério Público Federal. Hoje, o promotor que cuida do caso entende que a gente precisa achar um jeito de colocá-lo. E aí chegamos num imbróglio, porque cada um quer dois espaços”, explica o secretário da pasta, Ricardo Bertolucci Reginato.
A ideia inicial é que um ponto fosse dado para Canela, um para Bento e dois itinerantes. “Sempre vêm índios de outros locais. A ideia é que venham, façam um cadastro conosco e tenham um prazo para que possam utilizar o espaço. Estamos estudando deixar o deque para os itinerantes e esperamos resolver isso em breve”, finaliza o representante da Cultura.
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