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HERANÇA DE ZUMBI DOS PALMARES

Está viva a luta nos quilombos da região metropolitana: "Pela nossa existência"

Povos remanescentes falam sobre a batalha enfrentada hoje pela terra na região

Taís Forgearini
Publicado em: 20/11/2023 às 11h:23 Última atualização: 20/11/2023 às 12h:22
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A herança de Zumbi dos Palmares passa pela região metropolitana de Porto Alegre. Remanescentes de quilombolas das cidades de Canoas e Gravataí são exemplo de união e luta pela efetivação de direitos, em especial, ao da terra. Em Gravataí, o Quilombo Manoel Barbosa, foi certificado como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares no ano de 2003, após décadas de existência.

Tânia Ireno de Freitas (à  esquerda) busca por titulação de  terra em Canoas. Família descendente de Manoel Barbosa, em Gravataí (centro da imagem)



Tânia Ireno de Freitas (à esquerda) busca por titulação de terra em Canoas. Família descendente de Manoel Barbosa, em Gravataí (centro da imagem)

Foto: COMPOSIÇÃO SOBRE FOTOS PAULO PIRES/GES

Nesta segunda-feira (20) é comemorado o Dia da Consciência Negra. A data oficializada em 2011, por meio de lei, foi escolhida para homenagear Zumbi, líder do Quilombo de Palmares, que morreu nesse dia, no ano de 1695. Considerado uma das grandes personalidades negras da história brasileira, o alagoano liderou o Quilombo dos Palmares, comunidade livre formada por escravos fugitivos das fazendas no Brasil Colonial.

Iara Maria Goulart Ireno, de 61 anos, é bisneta de Manoel Barbosa dos Santos, de Gravataí. “Meu bisavô [por parte de mãe] foi escravizado. Ele foi um dos últimos escravos da nossa linhagem. Nossa luta segue pelo título das nossas terras. Há 20 anos conseguimos o reconhecimento da área como quilombo, porém, a documentação de que a terra é nossa continua em processo”, afirma a veterana.

Iara foi a primeira coordenadora da comunidade negra, fixada há mais de 120 anos no local. “Meu bisavô e a esposa dele [Maria Luiza Paim de Andrade] deixaram essas terras como herança, mas ao longo do tempo, a maioria dos hectares foi ocupado por posseiros”, afirma.

São considerados posseiros, famílias que ocupam um pedaço de terra e passam a viver e trabalhar no local como fosse dela. “Estamos no aguardo por uma definição dos títulos das terras, ainda não há prazo. Gostaríamos que mais hectares fossem contemplados. Nossa luta segue. Ela é constante pela nossa existência e pelo nosso direito à terra”, salienta a remanescente de quilombola.

Memórias de terror

O Quilombo Manoel Barbosa fica localizado a 18 km do Centro de Gravataí. Terras próximas ao quilombo também denunciam as marcas dolorosas da escravidão. A bisneta de Manoel Barbosa relembra com aflição o dia que visitou uma construção próxima das terras do quilombo.

“Ela serviu como senzala para os escravos. Era um espaço pequeno com apenas uma janelinha. Foi uma sensação horrível ver aquilo. Os escravos ficavam acorrentados. Era impossível fugir. Os relatos são todos de tentativas sem sucesso”, conta. “Eles tentavam passar pela pequena janela, mas havia um poço do lado de fora. Quando não caíam no poço eram atacados por cachorros até a morte.”

Trabalho escravo: um período nefasto da história

O pesquisador e historiador Israel Tavares Boff, fala sobre a dificuldade da quantificação de escravos na história de Gravataí e Canoas.

“Não é possível precisar um número. No período da escravidão no Brasil [de 1500 a 1888], as pessoas negras não tinham direitos e nem documentos. Os registros eram feitos em inventários porque os escravos eram tratados como bens semoventes [bens constituídos por animais selvagens, domesticados ou domésticos], ou seja, eles eram tratados como um pertence que se move, como um bicho. Algo totalmente abominável”, frisa.

Boff ressalta a importância do Dia da Consciência Negra para os descendentes da escravidão. “Eles não tinham voz, não tinham vez, não tinham nada. A memória precisa ser lembrada para não ser repetida. Tivemos um período medonho, nefasto em nossa, relativamente, recente história”, conclui.

Segundo quilombo certificado em Canoas

No começo do mês, a comunidade Maria Luiza Ireno, no bairro Niterói, recebeu a certificação de segundo quilombo urbano de Canoas. Cerca de 120 quilombolas remanescentes da comunidade comemoraram o esperado reconhecimento.

Família da Maria Luiza Ireno no quilombo canoense



Família da Maria Luiza Ireno no quilombo canoense

Foto: PAULO PIRES/GES

“Foram anos de luta em busca da validação oficial do nosso povo perante a sociedade”, destaca Lisiane Ireno Corrêa, de 44 anos, vice-coordenadora da comunidade. “Nossos parentes estão há 53 anos na cidade. Com o passar dos anos a comunidade aumentou. A família da minha avó [Maria Luiza Ireno] se expandiu.”

De acordo com Lisiane, a comunidade possui diversos tipos de profissionais. “Temos orgulho de contribuir para a sociedade. Temos desde professores a advogados. Infelizmente o preconceito ainda existe, salienta. A partir da certificação como quilombo urbano do município, a vicecoordenadora espera concluir o processo de titulação de terra, localizada na rua Santos Dumont.

“Estamos há muitos anos na batalha pela regularização da situação da nossa habitação. O processo está parado na DPU [Defensoria Pública da União]”, explica a presidente da comunidade, Tânia Ireno de Freitas, de 69 anos.

Tânia é filha de Maria Luiza Ireno (já falecida). O nome da comunidade é uma homenagem à matriarca da família originária quilombola. “Ela lutou muito por nossos direitos e pelo reconhecimento oficial diante das autoridades. Seguimos firmes no propósito dela”, diz. Para a secretária especial da Coordenadoria da Igualdade Racial, Povos Originários e Imigrantes, Ednea Paim, a certificação é resultado de um longo processo.

“Foram tempos de muita espera, de muita luta, de muito esforço, de muito choro, e também de muito medo desse reconhecimento não acontecer. A comunidade trabalhou muito por esse momento, nós só ajudamos no processo. É muito gratificante poder ver essa primeira conquista”, evidencia.

Futuro da comunidade

Para o próximo ano, a comunidade quilombola deseja colocar em prática projetos de infraestrutura.

“Dependemos de dinheiro. Nossa comunidade é carente. Ninguém aqui é rico. Aguardamos recursos para ser possível termos uma sede oficial, por exemplo. É uma luta constante, em especial, por moradia. Parte das 120 pessoas que compõem a nossa comunidade estão morando em outros espaços”, explica Janaína Santos, de 36 anos, membro da comunidade.

Segundo a presidente da comunidade, nas próximas semanas será feita uma reunião com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). “Vamos apresentar nossas demandas em relação à terra. Nosso objetivo principal é receber a demarcação e a certificação [título] do terreno na rua Santos Dumont o mais breve possível”, finaliza Tânia.

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