CLIMA EXTREMO

O que é preciso fazer para evitar que novas catástrofes climáticas se repitam no RS

Especialistas avaliam que Rio Grande do Sul não está preparado para encarar novos padrões causados pelas mudanças no clima

Publicado em: 15/09/2023 03:00
Última atualização: 13/02/2024 15:49

Desde a semana passada, o assunto que domina as rodas de conversa e preocupa muitos gaúchos são as condições climáticas. A fúria da natureza que se manifestou no Rio Taquari e devastou cidades inteiras, ceifando a vida de dezenas de pessoas, trouxe muitos questionamentos.


Prevenção é fundamental para reduzir consequências de fenômenos climáticos como o que atingiu o Vale do Taquari Foto: Mauricio Tonetto/Secom

Dentre eles, o funcionamento dos serviços de alertas para desastres, a capacidade das equipes de resgate e proteção à vida e as estruturas e equipamentos públicos disponíveis para enfrentar cenários como esse.

Tudo isso diante de um quadro que deve se agravar, pois são inúmeros os alertas da comunidade científica de que episódios extremos tendem a se repetir com mais frequência por conta das mudanças climáticas.

Na terça-feira, o Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) divulgou nota na qual afirma que "era possível saber, com quase 24 horas de antecedência, que a cheia do Rio Taquari em Lajeado seria de grande magnitude", isso porque a bacia do Taquari já havia recebido 287 milímetros de chuva no dia anterior ao desastre.Doutora em Qualidade Ambiental e coordenadora do Laboratório de Vulnerabilidades, Riscos e Sociedade da Feevale (LaVuRS), a pesquisadora Danielle Paula Martins aponta a necessidade de mudança em três pontos principais, pois o País tem a cultura de reagir aos desastres e não de preveni-los, não há política habitacional efetiva e ainda não há um enfrentamento das mudanças climáticas que já acontecem.

"O desastre não é um evento. É um processo construtivo, pois historicamente as ocupações ocorrem em áreas de proteção ambiental, de inundação ou deslizamentos. É um problema sério que o Brasil enfrenta", aponta.

O padrão mudou. Tudo o que se sabe do passado tem que se colocar uma interrogação.

Fernando Meirelles, doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental, é um dos pesquisadores que assinou a nota do IPH da Ufrgs. Ele defende mais investimentos na Sala de Situação do Estado, órgão responsável por fazer a previsão do tempo e o monitoramento hidrometeorológico no Rio Grande do Sul, com o intuito de identificar a ocorrência de eventos extremos.

Para Meirelles, o que se conhecia no passado sobre o comportamento do clima necessariamente não será verdade no futuro. "O padrão mudou. As pessoas diziam 'eu moro aqui há tantos anos e nunca vi isso'. Tudo o que se sabe do passado tem que se colocar uma interrogação."

De acordo com ele, recentemente o IPH fez um estudo sobre mudanças climáticas. De dez cenários analisados, nove mostram que mais eventos como o que os gaúchos presenciaram semana passada voltarão a acontecer. "Este tipo de comportamento do clima talvez seja o nosso novo normal", avalia.

População em zona de risco

A pesquisadora Danielle Martins lembra que a lei que instituiu a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil é de 2012, criada depois que a região serrana do Rio de Janeiro, em 2011, teve 900 mortos vítimas de deslizamentos. Ela pontua que falta regramento urbano para ocupação e que as pessoas mais pobres são empurradas para zonas de risco, pois não têm condições de pagar imóveis em regiões mais seguras.

Meirelles comenta que há um importante custo social, cultural e econômico, por isso é preciso denominar cotas seguras para ocupação. "Há conjuntos habitacionais em zonas que podem alegar. É preciso melhorar a estrutura legal, pois os municípios aprovam os planos diretores. Que eles façam os zoneamentos e atendam a essas restrições", diz.

Milhões de pessoas no Brasil são obrigadas a viver em áreas vulneráveis ao clima Foto: Vandré Brancão/GES-Especial

Mudanças climáticas e incredulidade na ciência

Tanto Danielle quanto Meirelles destacam a necessidade uma mudança cultural da sociedade em relação aos dados científicos. O planeta enfrenta uma nova realidade que são as mudanças climáticas e a população, como pontua a pesquisadora, precisa aprender a conviver com isso. “Não vai ter como desviar o ciclone ou construir estruturas suficientes para conter uma inundação”, alerta Danielle.

O pesquisador do IPH chama atenção para um “conservadorismo muito forte” no Rio Grande do Sul. Danielle lembra ainda da cultura de se procurar um culpado para a situação ou soluções imediatas.

De acordo com Danielle, não há problemas em ter crenças, mas é preciso compreender outras dinâmicas, como por exemplo, os efeitos do El Niño, fenômeno climático que agora atua no Rio Grande do Sul.

Os pesquisadores defendem que se invista em educação nas escolas sobre o tema, de modo que as crianças sejam instruídas a compreender o clima e o ambiente onde vivem.

“Se tivesse uma cultura de prevenção a desastre, talvez não teria sido tão feio quanto foi”, diz Meirelles, referindo-se à tragédia no Vale do Taquari.

Déficit habitacional é problema no País

Não há dados oficiais sobre a falta de moradias para a população brasileira. A última pesquisa da Fundação João Pinheiro, especialista no tema, apontou que o Brasil tinha um déficit habitacional de 5,876 milhões de moradias em 2019. A fundação divulgou nota recentemente chamando atenção para os dados preliminares do Censo 2022, que serão utilizados pelo governo federal para a tomada de decisões relacionadas às políticas públicas.

Em 2010, o censo constatou 106.710 domicílios particulares improvisados, número que foi de 66.012 em 2022. No entanto, a quantidade de pessoas no CadÚnico, voltado para famílias de baixa renda, é muito diferente. Em 2010, eram 870.112 e, no ano passado, 1.094.341. Para a entidade, o conceito de lares improvisados precisa ser revisto pelo IBGE.

Estudo expõe fragilidades da Defesa Civil no Sul do País

Em relação à cultura de prevenção, a pesquisadora da Feevale lembra que ela não é tarefa exclusiva da Defesa Civil. “O poder público tem uma responsabilidade grande, mas é preciso chamar a academia, a comunidade que reside nestas áreas. A Defesa Civil deve ser a integradora e não quem dá respostas quase que sozinha”, defende Danielle.

A Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec) divulgou no ano passado o diagnóstico das necessidades e capacidades dos órgãos municipais de Proteção e Defesa Civil. Da região Sul do País foram ouvidos 569 municípios, sendo 161 do Rio Grande do Sul.

A pesquisa constatou que 47% das equipes se sentem pouco capacitadas para fiscalizar áreas de risco. Quase metade (48%) das defesas civis afirmaram não participar de iniciativas em redução de risco de desastres com municípios vizinhos. Pouco mais da metade também informou não utilizar sistema de alerta antecipado (59%) e cadastro de população em áreas de risco (53%).
A pesquisa identificou que o maior obstáculo dos órgãos se divide em quatro principais fatores: equipe reduzida (30%), falta de oferta de cursos (25%), disponibilidade de tempo (23%) e custos (20%).

Daqueles que responderam o levantamento, em 74% das cidades a Defesa Civil conta com apenas dois integrantes na equipe.

"A gente não pode errar"


Destruição alerta para necessidade de se preparar Foto: Mauricio Tonetto/P. Piratini

A nota do IPH sobre o desastre no RS, destacou o fato da população não acreditar nas previsões de chuvas com volumes para potencial de desastre. Sobre isso, Meirelles comenta que, em muitas situações, a sociedade já recebeu alertas que não se confirmaram. Isso corre porque os modelos climáticos têm limites e os equipamentos disponíveis não permitem precisão. “Temos que melhorar a qualidade dos dados fornecidos para os modelos. As redes de informação em tempo real têm que funcionar. Muitas estações estão fora do ar. Tem que saber por quê.”

Meirelles, que já foi diretor de Recursos Hídricos do Estado e, inclusive, inaugurou a Sala de Situação, em 2016, relata que os equipamentos disponíveis fornecem dados de hora em hora. “Em um evento como esse que aconteceu, ficar uma hora às cegas não dá. Uma hora pode ser decisiva para salvar alguém”, defende.

Segundo ele, a Sala de Situação tem corpo técnico, mas precisa de estrutura e capacidade para informar a população. “A gente não pode errar. A população tem que acreditar. É preciso obtenção de dados em tempo real e não de hora em hora. É necessário investimentos em equipamentos e em manutenção”, defende. Conforme o pesquisador, Santa Catarina já conta com equipamentos capazes de monitorar a situação climatológica em tempo real.

Novas tecnologias em avaliação pelo Estado

Conforme a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema), o Estado conta com um sistema eficaz de monitoramento e alertas para casos de eventos climáticos “extremos considerados dentro da normalidade”. No entanto, para situações climáticas como a que atingiu o Vale do Taquari, “o governo já havia iniciado um mapeamento de novas tecnologias e sistemas utilizados em outros estados e países, para verificar a viabilidade da implantação o mais breve possível com o objetivo principal de preservar vidas humanas”, diz a nota.

A Sema informa que estão previstas no plano plurianual a contratação de serviço de satélite para monitoramento meteorológico, a ampliação do número de áreas de risco a serem monitoradas pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB) e a criação do Centro Estadual de Gestão Integrada de Riscos e Desastres.

Sobre a Sala de Situação, a Sema diz que a equipe, composta por meteorologistas e hidrólogos, trabalha em regime de plantão permanente. De 28 de agosto até as 12h44 de 8 de setembro, a Sala de Situação produziu e enviou 20 boletins, três avisos hidrometeorológicos e 19 alertas que geraram mensagem via SMS à população.

A Sema informa ainda que o SGB realiza o levantamento de áreas vulneráveis para deslizamentos, conforme classificação geológica e capacidade de resistência a eventos climáticos severos. No Rio Grande do Sul, o SGB já realizou mapeamento de áreas de risco em 59 municípios.

No ano passado, em entrevista ao Grupo Sinos, a coordenadora da Sala de Situação, Cátia Valente, disse que o Rio Grande do Sul era apontado como “bastante deficitário” com relação à instrumentação de radares meteorológicos para nowcasting, a previsão de curtíssimo prazo. O Grupo Sinos questionou a Sema se de lá para cá houve melhora no sistema, mas não recebeu retorno sobre este tema em específico.

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