HISTÓRIA
ENCHENTE NO RS: Excesso de chuva causa transtornos desde o tempo dos conflitos entre portugueses e espanhóis
Registros históricos pesquisados pelo Grupo Sinos apontam que em 1767 o mau tempo atrapalhou os planos na disputa por território no sul do Estado
Última atualização: 06/05/2024 01:52
Enchentes e vendavais como os dos últimos meses, que devastaram municípios e mataram pelo menos 64 pessoas, reescrevendo a história climática do Rio Grande do Sul, desafiam os gaúchos há muito tempo.
Embora tragédias naturais como as de 1941 e 1959 estejam marcadas para sempre, há registros bem mais antigos de transtornos causados pelo clima. Oficialmente os dados meteorológicos do Estado têm pouco mais de cem anos.
Depois do setembro mais chuvoso desde o início do século passado no RS, o Grupo Sinos vasculhou registros públicos e de veículos de imprensa em busca de informações e apurou que em 1767 o mau tempo já atrapalhava os planos por aqui.
Era tempo de conflitos entre portugueses e espanhóis em busca de território. A demarcação de limites decorrentes do tratado de 1750 foi bem mais tensa que o previsto. Povoados onde hoje ficam as cidades de Rio Grande, Viamão, Porto Alegre e Rio Pardo eram os únicos da província.
Texto publicado em 1839 por Fernandes Pinheiro nos "Annaes da Provincia de S. Pedro", impressos "na Typographia de Casimir", relata que em 27 de maio de 1767 "copiosas e descompassadas chuvas tornaram invadiáveis" os rios Guaíba, Camaquã e seus arroios, impedindo a marcha de militares entre a região central (Rio Pardo) e o Sul do Estado (Rio Grande). Um dia depois foi a densa neblina daquele inverno gaúcho que atrapalhou o deslocamento das tropas portuguesas.
"A tropa mantinha o moral elevado e esperava atacar a vila (de Rio Grande) ao amanhecer. No meio da noite, no entanto, foi surpreendida por forte ventania e densa cerração, que dispersou as embarcações", conta o texto de Fernandes Pinheiro, sem revelar mais detalhes das condições climáticas da época.
O coronel José Marcelino levou horas para reorganizar a tropa e o imprevisto forçou mudança de planos. "Sentiu que a aproximação seria percebida pelos inimigos, ainda mais que os espanhóis tinham um barco guarda-costas, o Santa Matilde", narra o texto.
E o mau tempo continuou desafiando a tropa luso-brasileira, como conta texto do Exército Brasileiro. Aos gritos de "viva o rei" os combatentes convenceram o coronel José Marcelino a retomar o plano de avançar para Rio Grande, mas não contavam com o avanço da água para além das margens do rio.
"A tropa atolou-se no mangue e oficiais e praças não conseguiram voltar para as embarcações nem prosseguir na marcha", relata o texto.
Presos na enchente, os lusos-brasileiros viraram alvo de um forte ataque espanhol. Com três mortos e seis feridos, o coronel determinou a retirada e, dessa vez, contou com uma ajuda do clima: "Não sofreu perdas mais pesadas graças àquela mesma cerração que prejudicara a execução de seu plano inicial", informa o texto Forças Terrestres no Sul, do Exército Brasileiro.
"O fracasso foi mais devido às condições meteorológicas locais do que à reação do inimigo, cujos efetivos eram muito pequenos. O comandante espanhol havia deslocado grande parte de suas forças para a margem do canal de São Gonçalo, na altura de Pelotas, a fim de enfrentar as tropas de Rio Pardo", acrescenta, evidenciando que os humores daquele inverno eram decisivos para a construção da história gaúcha em meados do século XVIII (1º de janeiro de 1701 a 31 de dezembro de 1800).