VALE DO SINOS
Embaixo da linha do trem: Histórias de vida de pessoas em situação de rua
Vendedor de livros, jardineiro, dependentes químicos e quem perdeu tudo para a enchente figuram sob a linha férrea
Última atualização: 07/08/2024 15:12
Na travessia entre Novo Hamburgo e São Leopoldo, a linha do trem revela um cenário muitas vezes invisível para os passageiros que usam o trem diariamente. Quem está dentro do transporte público, não consegue ver o que se passa abaixo da estrutura, e quem passa pela Avenida das Nações Unidas, Rua Primeiro de Março e Avenida Mauá, muitas vezes não quer enxergar a forte presença dos moradores em situação de rua.
Sob os trilhos do trem, nos 12 quilômetros entre o início da linha, em frente ao Colégio Pio XII, em Novo Hamburgo, até a Estação Unisinos, já em São Leopoldo, ao menos 30 pontos com moradores em situação de rua foram registrados pela reportagem no final do mês de julho. Ao longo do trajeto, é possível observar uma série de barracas e improvisações que servem como abrigo para aqueles que, por diferentes razões, encontraram sob a linha férrea, um local para chamar de “lar”. Assim, os trilhos não só marcam a divisão geográfica, mas também uma linha de segregação social, revelando um contraste entre os mundos dos que têm acesso ao transporte público e dos que vivem abaixo dele.
Entre os moradores, muitos dependentes químicos, pessoas que foram parar nas ruas devido a problemas familiares, uso de drogas e, mais recentemente, vítimas da maior enchente da história do Rio Grande do Sul. Contudo, também são encontradas pessoas com o desejo de saírem das ruas, que buscam no lixo o sustento da família, e até mesmo aqueles que prestam serviços à cidade transformando um local tomado pela sujeira, em um ambiente limpo e colorido, cercado de plantas. Dentre estes personagens da vida real, também está um vendedor de livros, que busca espalhar a educação enquanto ele mesmo divide o colchão com a literatura.
Aposentadoria para deixar as ruas
“Geraldão da 1º de Março”. Assim é chamado Luis Carlos da Silva Goulart, de 64 anos, que desde 2020 é conhecido por cuidar do canteiro central abaixo da linha do trem entre as ruas Corumbá e Amarante, no bairro Industrial. Em 2023, recebeu da Câmara de Vereadores de Novo Hamburgo o Prêmio Primavera, pelos cuidados que dedica ao local.
Natural de Ijuí, está há mais de 50 anos vivendo nas ruas e passou por algumas cidades até se estabelecer em Novo Hamburgo. Inclusive foi aqui que ganhou o apelido de Geraldão. Após assistir a uma partida entre Novo Hamburgo e Internacional, pelo Campeonato Gaúcho de 1983, no Estádio Santa Rosa, Luis Carlos ganhou a camisa do atacante colorado Geraldo. Saiu do antigo estádio anilado usando o presente, e desde então tornou-se o “Geraldão”.
Para se proteger do frio, o idoso pregou tábuas e restos de materiais até formar um barraco junto a uma das colunas da estrutura do trem. Mas, se tudo correr como quer Geraldão, este será o seu último ano nas ruas. Isso porque, no dia 11 de novembro deste ano, ele completará 65 anos e poderá se aposentar.
Com o salário mínimo que receberá, quer alugar uma casinha e, finalmente, deixar as ruas após mais de cinco décadas. Atualmente, sua renda é de 600 reais provenientes do Auxílio Brasil, e usa esse valor para alimentação e “pagar uma continha ou outra”. “Eu só preciso de uma casinha com um fogão, geladeira e uma cama pra dormir.”
Por residir sob os trilhos, é afetado pelo barulho do trem que passa logo acima de si, mas isso já não o incomoda. “O meu medo é que algum carro desgovernado me acerte aqui”, preocupa-se. Ao lado do barraco, colocou um tonel que usa para captar água da chuva e poder regar as plantas do canteiro. Mas há também um item que mostra com orgulho: o quadro referente ao Prêmio Primavera.
Um câncer, a perda de um filho, a separação e as drogas
Uma sucessão de dramas familiares levou Daniel Orestes, hoje com 53 anos, a viver pelas ruas. O mais recente dos golpes que a vida lhe deu foi a enchente de maio, que lhe tirou o pouco que tinha e o jogou mais uma vez às calçadas de São Leopoldo. Pai de seis filhos, Daniel busca, entre os lixos que se acumulam após a baixa das águas, encontrar algo que lhe permita vender e levantar algum dinheiro.
Sua vida começou a sair dos trilhos quando um câncer acometeu seu filho de 4 anos. A doença acabou vencendo a batalha e levou sua criança quando ela tinha 7. Não muito depois, sua esposa há quase 20 anos pediu o divórcio e, desde então, há oito anos ele vive nas ruas. “Paguei por uma casa de R$ 25 mil, e nunca morei nela porque, no divórcio, acabou ficando com minha ex-mulher. O juiz disse que eu tinha direito à metade, mas se a casa fosse vendida, meu outro filho não teria casa. Então, resolvi sair e deixar com eles”, relata.
Além do menino vítima de câncer, Daniel é pai de um adolescente de 15 anos, para quem paga pensão, e outras quatro garotas, além de uma quinta menina que é adotada e vive com a mãe dele. “Ela perdeu os pais para as drogas, então, eu adotei, e todo o dinheiro que consigo, eu mando para eles”, explica.
“Estava bem, ia na igreja e não usava mais drogas. Achei que ia cuidar dos netos e tomei essas pauladas. Depois da separação, entrei em depressão, tomo remédios para dormir e fiquei cheio de dívidas. Eu só trabalhava para dar estudo para os meus filhos, mas não dava atenção. Acabei virando a cabeça, caí na bebida e hoje eu vivo assim, catando lixo”, detalha.
Daniel trabalhou 28 anos em uma pedreira, trabalho que hoje não tem mais condições de exercer o ofício devido às condições físicas. Quando a enchente veio, ele estava vivendo no terreno de um amigo, no bairro Rio dos Sinos, e apenas seus documentos foram salvos. “A enchente levou minha cama, meu colchão, fiquei sem nada.” Na metade de julho, após passar semanas na Estação Rio dos Sinos, conseguiu abrigo no Centro de Eventos São Borja, onde passa as noites e sai pela manhã para procurar algum trabalho.
Daniel quer sair das ruas e aguarda o auxílio da Prefeitura de São Leopoldo para um aluguel social. “Não tenho estudo, mas sempre fui trabalhador, nunca roubei, e fui morar na rua.”
Dependentes químicos na Vila dos Trilhos
Comum entre os desabrigados, está o uso frequente de álcool e drogas. É o caso de Everton, 41, Thomaz, 41, e Franciele, de 26 anos. O trio compartilha barracas improvisadas sob a estrutura do trem na Avenida Mauá, próximo à ponte do Rio dos Sinos, em São Leopoldo. O local conta com diversas pessoas que, juntas, têm formado a “Vila dos Trilhos”, como denomina Everton.
Usuário de drogas, Everton pede para não mostrar o rosto, mas aceita falar. Segundo ele, a nova moradia sob os trilhos deve-se à enchente. “Nós morávamos em áreas que foram inundadas, o rio levou as casas. Outros moravam de aluguel e os proprietários pediram as casas para que seus parentes, que também perderam tudo, pudessem morar. Então viemos para cá, a gente fica junto e se protege”, detalha.
Por ali, se encontram verdadeiras residências improvisadas com colchões, cobertores, lonas, cadeiras, roupas estendidas em varais e até fogão improvisado para preparar alimentos. Mas, também, muito lixo. “Nós somos todos dependentes químicos, isso é verdade, por isso estamos aqui, mas tudo piorou depois das enchentes”, acrescenta Thomaz.
Ao receberem a reportagem, a desconfiança também vem junto. “Tu é da polícia? Não quero embaçar para o meu lado”, questionou um outro morador em situação de rua que saía da “Vila dos Trilhos” com um carrinho de supermercado para catar lixo.
Nas ruas desde a adolescência
Eduardo tem apenas 22 anos e mora nas ruas desde os 14 devido a problemas familiares. Atualmente, vive em São Leopoldo, a 600 metros da Estação Santo Afonso, em Novo Hamburgo. E pela proximidade, transita entre as duas cidades. Sob os trilhos, sua “casa” tem as paredes formadas por boxes de colchões que foram jogados fora durante a enchente.
Até um berço e uma sapateira são vistos no local, mas por ali não há nenhum bebê ou calçados para preencher o móvel. As mobílias são usadas como escoras para as “paredes”. “Na verdade, quem montou esse barraco foi um conhecido, mas ele teve que ir embora e eu fiquei no lugar. Agora tô dando uma limpeza. Tô dividindo com uma outra mulher, que também dorme nesse lugar”, afirma.
Eduardo é mais um que admite o uso de drogas e aceitou conversar com a reportagem, mas quase sem voz, não conseguia dizer muito. “Obrigado”, foi o que conseguiu pronunciar a um motorista que lhe ofereceu um pouco de comida que tinha dentro do carro.
Adenir Leal veio de longe
Conforme a Prefeitura de Novo Hamburgo, a Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS) tem observado que, após as enchentes, houve um aumento das pessoas em situação de rua no município. “No entanto, esse aumento deve-se ao fato de muitos terem vindo de outras cidades, pois, segundo informado por eles próprios, em Novo Hamburgo haveria condições melhores de sobrevivência, bem como pela facilidade de poderem se utilizar do trem quando este voltou a operar”, diz a SDS, em nota.
Um destes casos é o de Adenir Leal, de 57 anos. Ele é natural de Canela e está na rua há cerca de dois anos. Dependente químico, não se deixa fotografar e prefere se manter recolhido em seu barraco improvisado, construído também a partir de descartes da enchente. Um colchão de solteiro plastificado serve como cama, enquanto um de casal virou parede.
“A SDS têm chegado aos moradores em situação de rua por meio das equipes de abordagem para encaminhá-los para algum serviço ou ainda encaminhá-los a um abrigo. No entanto, importante frisar que este encaminhamento só pode ocorrer quando é da vontade do abordado e este concordar com o regramento do abrigo, o que nem sempre ocorre”, acrescenta a prefeitura.
Perde-se um carro, ganha-se uma casa
José Juarez Alves tem 65 anos. Mora em uma casa na Avenida Mauá, ao lado do Arroio Gauchinho, em São Leopoldo. Trabalhando como jardineiro e paisagista, há 25 anos usava uma Kombi para o serviço. Contudo, nas enchentes, o veículo que já era bem velho, foi tomado pela água e estragou completamente.
Por conta disso, José colocou sua Kombi na rua, no canteiro central sob os trilhos do trem, ao lado da Estação Santo Afonso. Com o veículo parado, uma mulher pediu para usá-lo como abrigo. “Eu deixei. Nessa hora nós temos que ajudar da forma que a gente puder. Perdi muita coisa, gastei dinheiro pra refazer o motor da moto, mas não valia à pena tentar consertar a Kombi, já estava muito velha. Então, essa moça pediu e eu deixei”, conta.
José pensava em vender o que sobrou em um ferro velho para juntar dinheiro e comprar outro veículo para seu trabalho, mas a solidariedade falou mais alto. “Ela não tem onde ficar, descobri que ela tem problema com drogas e conheço o pai dela também”, acrescenta. A reportagem tentou contato com a mulher, mas não a encontrou nas vezes que foi ao local.
"A leitura me faz ir onde os meus pés não podem me levar"
Entre as estações São Leopoldo e Unisinos, há um personagem já conhecido de quem passa por ali. O vendedor de livros Claiton, “vulgo Tchê”, não revela seu sobrenome nem sua idade, mas conta que mora nas ruas há mais de 40 anos. Seu amor pela leitura começou aos 7 anos, quando sua mãe vendia enciclopédias. “A cada dez que ela vendia, uma ela ganhava”, conta.
Com um monte de livros dentro de casa, começou a “virar as páginas”, e está assim até hoje. Já nas ruas, vendia artesanato para sobreviver, mas cansou de sofrer com furtos e roubos e decidiu mudar para os livros. “Roubavam brincos, pulseiras, então parei. Como já tinha alguns livros, fiquei só neles. As pessoas não se interessam em roubar livros”, argumenta.
Em seu acervo há centenas de exemplares, desde infantis a religiosos. Livros de história, fantasia, bíblias e cultura estão na sua mesa. Inclusive títulos como Harry Potter, Percy Jackson e Crepúsculo. “As pessoas me dão um livro ou um tema, e eu indico. O Código Da Vinci, tenho da capa vermelha, da verde e da preta.”
Além de vender, o que ocorre entre 7 e 19 horas, Tchê tem uma preocupação: “O que eu quero é educar através da literatura. Hoje em dia, todo mundo está grudado nos celulares e esquece de ler. Tenho uma frase que gosto muito e que pedi para que pintassem no pilar. ‘A leitura me faz ir onde os meus pés não podem me levar’”.
Na enchente, Tchê perdeu muitos livros e outros pertences. Mas costuma ler enquanto aguarda a chegada dos clientes, e dessa forma já consumiu grande parte de seu material. Separa dois momentos do dia para ir comer alguma coisa, ir ao banheiro e fazer a higiene.
Nessas horas, pede para um conhecido ficar cuidando, mas, se não encontrar, ele arrisca deixando os livros no local e saindo. “Eu durmo dentro da barraca quando sobra espaço, porque a prioridade são os livros. Ou então durmo sobre o sofá. Se alguém puder me ajudar com uma barraca nova, eu fico muito feliz”, finaliza.